Pelo visor eu vejo Gill. Ultimamente meus personagens têm vindo me visitar com frequência e felizmente suas aparições são em forma humana, exceto Mansfield. Gill está estranhamente trajada, o que é normal para ela em seu fetiche por cosplay.
– Oi Gill. O que você veio fazer aqui?
– Senhor escriba! Eu venho lhe trazer a Revelação!
Eu fiquei preocupado com Gill. Ela pode ser um personagem secundário, mas ainda é uma de minhas garotas. Eu tinha que fazer algo, eu tinha que resgatá-la das garras desta seita que a dominou. Tirando sua expressão esquisita, ela estava uma graça com aquele vestido cheio de laços e babados. Assim que ela sentou, eu lhe ofereci chá e biscoitos e, enquanto ela comia, eu fui expondo minhas diatribes.
– Gill, você tem que superar isso. Não acredite neste falso Messias. Não acredite nesse falso Deus.
– Hm? Do que está falando, senhor escriba? Eu sou esquisita, eu sei, eu vagueio entre o puro ceticismo, a crença ateísta, o budismo e o cristianismo asiático, mas eu não vim aqui para falar do Verdadeiro Cristo ou do Verdadeiro Deus.
Pedaços de biscoito e chocolate voam pelos ares com gotículas de chá. A coitadinha estava morrendo de fome. Eu fico um pouco aliviado por saber que eu não tinha perdido minha Gill.
– Ah… desculpe pelo equívoco. A senhorita falou em Revelação e eu de imediato pensei nas pobres criaturas que se deixam enganar por piedosas fraudes.
Ela vira o rosto, em sinal de desgosto. Ela não gostou do meu tom de voz, como se eu fosse seu irmão mais velho. Ela fica deliciosamente sensual fazendo essa expressão enfezada.
– Eu esperava mais do senhor, senhor escriba. Afinal, o senhor me conhece muito bem. Como meu criador, o senhor devia saber que eu não faço coisa alguma sem ter certeza.
– Perdoe-me por minha indelicadeza, Gill.
– Sua sorte é que eu sou uma dama de educação refinadíssima. Mas eu pensarei em um castigo apropriado para reparar seu erro.
Eu faço a prostração típica da cultura japonesa, colocando meus joelhos no chão, estendendo as mãos espalmadas no chão diante de mim e flexionando levemente a cabeça em direção ao solo.
– Eu me coloco em suas mãos, senhorita Gill Kurage.
Quando eu retorno para a postura vigilante, eu percebo que ela está ruborizada, embora tente disfarçar.
– Bo… bom, eu vou abrir uma exceção para o senhor, mas só dessa vez. Mas que isto não se repita. O que eu tenho a te dizer é muito mais importante.
– Minha atenção é somente sua, senhorita Kurage.
O cabelo de Gill, curto e preto ao cúmulo de reluzir tons de azul, arrepiam e ficam parecidos com as asas de um corvo.
– Nã… não tente me confundir, me distrair nem me desviar de minha missão, senhor escriba. Fique quieto e ouça a minha Revelação.
Ela coloca a xícara de volta no pires e passa um guardanapo para tirar as migalhas do biscoito de sua boca. Tanta delicadeza para limpar as migalhas dá muito foco em sua boca carnuda e eu tenho que me contorcer para esconder minha excitação.
– Veni Vere Venus Verum Veneram Venereae.
– Senhorita Kurage, latim há tempos é língua morta e não é ensinado.
– E… está dizendo que não viu a Revelação?
– Eu lamento dizer que está além da minha compreensão.
– Não lamente. Isso é esperado. Mas alegre-se, pois o senhor estava na ignorância e agora será esclarecido.
– Eu imagino que a senhorita irá me ajudar.
– N… não que eu deva, nem que eu me importe… mas talvez se o senhor vir a estela, o senhor tenha uma faísca.
Gill apanha a bolsa de couro que pendia em seu lado, algo incrivelmente incoerente para sua vestimenta, considerando o aspecto cru e rústico da bolsa. Se olhar brilha e um sorriso é esboçado quando ela consegue encontrar o objeto. Com pompa e formalidade, Gill tira uma placa de madeira com as palavras que ela havia recitado formando um desenho. A madeira é de um tom de castanho e as palavras parecem ter sido escritas em tinta vermelha. Depois de alguns minutos de silêncio constrangedor, Gill guarda a plaquinha, visivelmente irritada.
– Humpf! Não tem jeito. Eu sinceramente não sei por que a Deusa ainda insiste com o senhor.
– Hã… isso veio… da Deusa?
– Dã… está na sua cara! Isso vai ficar ruim para minha ficha, mas eu vou ter que voltar e dizer que eu fracassei.
– Senhorita Kurage, eu te rogo que me conceda mais uma chance! Eu não posso permitir que a senhorita fique sujeita a tal sacrifício por minha causa!
Eu até soltei algumas lágrimas sinceras. Eu não me importo em ser castigado, rejeitado, chutado, escorraçado, apedrejado. Eu estou acostumado. Eu estou calejado. Mas eu não posso permitir que qualquer de minhas garotas sofram por minha causa. Eu segurei na barra daquela saia rodada e enfeitada com fitas de cetim com a ponta dos dedos, como se aquele fosse o manto de uma santa. Eu não saberia dizer o que se passa na mente e sentimento de Gill, mas eu sinto que, no fundo, ela gosta dessa posição dominadora. Fingindo indiferença e desinteresse, ela repensa sua decisão.
– E… eu não deveria… mesmo! O senhor não merece sequer segurar a barra de minha saia. Ma… mas… eu acho que eu não tenho escolha… todas gostam tanto do senhor… e Riley ficaria muito chateada comigo. Além do que… o senhor sempre é tão gentil conosco… sempre foi gentil, desde quando nos manifestamos ao senhor, o senhor nos recebeu sem restrições.
– Eu te agradeço, senhorita Kurage. Eu aceito qualquer castigo que a senhorita quiser me aplicar.
– Na… não faça promessas assim, sem mais nem menos. Aqui está, olhe com bastante atenção, porque eu não te darei outra chance!
Eu tomei a plaquinha nas mãos e comecei uma detida análise. Suas dimensões não devem ser meras coincidências. A estela tem um cheiro resinoso, o que pode indicar que esta é uma madeira sagrada. A tintura também parece ser oriunda de uma antiga alquimia e a cor oscila entre vermelho sangue e púrpura. Eu notei que cada palavra está disposta em uma posição que simula a de um hexagrama. Isto é um belo enigma, pois a Deusa, Vênus, assim como o planeta que leva seu nome, tem o pentagrama como símbolo. A associação de Vênus com Verdade, Veneração e Venérea sugere algo profano, herético e perigoso de ser declamado nos dias de hoje.
– Hm. Vinde e Veja.
– Isso! Isso! A mensagem de Revelação está convidando! Quer que a ação seja individual, particular e voluntária! Você conseguiu ter uma faísca!
Gill ficou tão satisfeita que me abraçou intensamente, mas soltou-me e se afastou, envergonhada, assim que se deu conta do que tinha feito.
– Bo… bom… isso não quer dizer que eu te perdoei… nem que o senhor está livre do castigo. Eu apenas fraquejei em um momento de alegria e satisfação.
– O que me faz feliz, pois eu quero sempre te dar alegria e satisfação.
A coitada da Gill ficou roxa como berinjela e começou a falar aquele japonês truncado com inglês e português, dizendo o quanto eu era pervertido. Adorável.
– Humpf! Deplorável! Eu irei te denunciar para a Deusa! No lugar dela, eu teria te substituído há tempos!
– Eu sei que eu sou impuro e não mereço tais bênçãos. Por isso mesmo que eu tenho que te agradecer por sua ajuda misericordiosa. Eu sei que, pelo meu ofício e condição, eu não sou merecedor sequer de ter recebido suas manifestações. Eu sou o pior e mais vulgar escriba que existe neste mundo. Eu devia estar grato até pelos castigos que eu hei de receber.
– Po… pois devia mesmo! Imagina! Um ser tão rastejante como o senhor! Como pode uma dama como eu perder tempo com… isso! E… eu tenho que voltar agora, mas aguarde que em breve eu hei de trazer seu justo castigo!
Gill puxa o tecido suave e macio de sua saia de meus dedos e anda até a rua como se estivesse em uma passarela… não… em um baile de gala, cheia de nobres e reis. Antes de ir, dá um último volteio e aponta o leque em minha direção, fingindo rigidez.
– Quando eu voltar, eu quero ouvir o seu relatório. Seu castigo, minha misericórdia e o seu futuro na Sociedade podem depender disso! Passe bem!
Ela bate a porta e eu respiro um tanto mais aliviado. O conteúdo da mensagem parece evidente, então o real desafio consiste em saber por que a Revelação veio apenas agora. Vinde e veja a verdadeira Vênus e venere o prazer venéreo. Saber o que a mensagem diz não parece difícil. O difícil é saber o que se fazer com isto, o que isto pode e vai alterar a forma como vemos o mundo e a nós mesmos.
Segunda feira, nove da noite, cansado e dolorido. Mal iniciou a semana e eu estou nesse estado. Eu abro a porta de casa e me deparo com minha esposa, deslumbrada e encantada, conversando com Gill, enquanto elas tomam um café com bolo.
– Nossa, meu amor, essa garota é incrivelmente educada! Ela é uma de suas personagens?
– Sim, querida, esta é Gill. Eu te tinha dito que um escritor não “inventa” personagens, não te disse?
– Sim, sim, eu ouvi algo dessa bobagem que você fala que um escritor é como um médium. Bom, vocês devem ter o que conversar. Fiquem à vontade.
Antes de subir pelas escadas em direção aos quartos, minha esposa faz aquele sinal com as mãos dizendo “eu estou de olho”. Eu rolo os olhos e tento ver, inutilmente, se tem bolo para mim.
– Eu custo acreditar que esta mulher seja sua esposa.
– Eu também custo acreditar. Foi um milagre dos Deuses. O que eu posso fazer pela senhorita?
Gill levanta o dedo indicador enquanto acaba de mastigar o bolo para então dizer o propósito de sua visita.
– Eu realmente não deveria, mas eu prometi que voltaria para ouvir seu relatório.
– A senhorita Kurage é muito gentil. Eu te agradeço por sua paciência.
– Na… não adianta tentar me agradar. Desembuche.
– Diz a estela: “Vinde e veja a verdadeira Vênus e venere o prazer venéreo”. Mas isso não é tudo. As dimensões da estela devem ter um significado. Seu comprimento de 42 cm se refere às 42 Leis de Maat. Sua largura de 22 cm se refere aos arcanos do tarô. Sua espessura de 33 milímetros se refere aos graus das ordens nas sociedades iniciáticas.
Conforme eu expresso minhas impressões, Gill esbugalha cada vez mais seus olhos. Ela não tinha percebido nem pensado nesses aspectos.
– Eu estou intrigado com a disposição do texto na estela. Aparentemente o diagrama insinua um hexagrama, mas não há um alinhamento geométrico, o que me faz suspeitar de que o texto está coligado a alguma posição astronômica ou de que o texto pode ser lido em qualquer ordem, indicando um hipertexto.
A cerâmica da xícara emite um leve som de trincado, tal é a tensão que Gill empenha com seus delicados dedos. Eu prefiro não prosseguir com minha análise, para não chateá-la ainda mais. Eu deixarei para outra oportunidade comentar sobre a madeira e a tinta utilizada.
– Aham. Bom, muito bom. Eu detesto admitir, mas o senhor fez um bom trabalho. No entanto, eu também vim para aplicar o seu castigo.
– E eu estou pronto e disposto para aguentar o castigo.
– Você vai participar da estória que eu irei escrever e protagonizar.
– Eh?
– Eu tive essa ideia inspiradora, o senhor devia se sentir lisonjeado e honrado por eu permitir que faça parte da minha estória.
– Eu estou, senhorita Kurage. Eu até tenho certa ansiedade. Esta será uma estória que será escrita pela protagonista. Eu não terei trabalho algum senão atuar conforme o roteiro.
– Na-na-ni-na-não. Seria fácil demais. Seu segundo castigo será transcrever minha estória.
– Eu serei um escritor terceirizado. Eu acho que não tenho escolha. Qual é o tema da estória e qual é o meu personagem?
– Eu te dei uma pista ao te trazer a estela. Minha estória utilizará a Revelação. O tema é uma abordagem alternativa ao clássico “A Profecia”. Seu personagem é o do estudante delinquente.
– Opa, devagar. O que uma abordagem alternativa a um clássico do horror baseado no Apocalipse tem a ver com o gênero “vida escolar” de anime?
– Ahem. Tem tudo a ver. Deixe eu ler a sinopse que eu fiz. “Fim do Mundo, Juízo Final. Milhares de pessoas pensam nisso. Todos temem a chegada do Anticristo. Mas e se o Anticristo não for o inimigo da humanidade? E se Cristo não for este que dizem ser? E se a verdadeira Revelação for outra? Kinjo Hoshikazu é apenas um típico delinquente juvenil, mas a chegada de uma aluna nova irá mudar completamente sua vida. O mistério que ronda essa garota irá mudar completamente a vida de toda a humanidade”.
– Isso vai fundir a cabeça dos leitores.
– Você está é com medo de que eu tome seu lugar. Será que eu devo apelar para “instâncias superiores”?
– Isso não é necessário, senhorita Kurage. Este é o castigo que escolheu, eu aceito. Qual o seu papel em sua estória?
– Evidente que eu serei a melhor estudante, representantes de classe e presidente dos alunos. E você será meu capacho.
– Isso não faz sentido. Você é a protagonista. Quem fará o papel de Anticristo?
– Is-so-é-sur-pre-sa. Vamos, que todos estão nos aguardando.
Gill me agarra o braço e me puxa através do portal dimensional. Eu fico algum tempo desorientado pelo clarão. Eu estou diante da minha cena. Um roteiro aparece na minha mão. Não deve ser difícil. Eu só tenho que seguir o roteiro.
– Ahem. Eu não acredito que eu estou de volta. Minha velha escola. Será que eu encontro algum conhecido?
Eu esbarro com dois garotos que estão esperando atrás do portão da escola para pregar peças aos novatos. Mesmo no multiverso as pessoas são cruéis. Os valentões largam os objetos que iriam utilizar para zoar os novatos e saem correndo.
– Senhor Kinjo! Mal voltou para sua velha escola e está causando confusão?
– Representante de classe, presidente Kurage! Eu acho que eu evitei que novatos tivessem uma péssima primeira experiência. Acredite, eu espantei alguns valentões.
– Isso é o que veremos! A Comissão de Disciplina irá investigar e decidir sobre esse evento. Agora me siga sem protesto e resistência!
Pelo roteiro, apesar de eu ser um “típico delinquente juvenil”, eu sou amigo de infância da senhorita Kurage, o que me torna obediente e submisso às vontades dela. Eu aposto que Gill está vibrando fazer esse papel de dominadora. Evidente que a minha turma é a mesma dela.
– Pst! Senhorita Kurage! Quem fará o papel de nossa professora?
– Silêncio! Sem conversas paralelas durante a atuação! Além do que se eu falasse, estragaria a surpresa.
O cenário imitando uma classe escolar está disposto, cada ator e atriz aguardando o sinal para tomar suas posições e iniciarem a encenação. Nesta cena, eu não tenho diálogos, eu apenas tenho que ficar sentado “folgado” na última carteira do fundão. Para dar mais “realismo” ao meu personagem, eu bagunço o uniforme e ponho meus pés na carteira, fazendo cara de paisagem enquanto a “presidente” organiza os demais atores.
– Oquei, pessoal. Todos em suas posições. Cena três, take um. Nós faremos a reverência e a saudação imediatamente depois da entrada de nossa “professora”. Prontos? Ação!
Eu devo ter assistido milhares de cenas parecidas como essa em animes. A classe levanta, faz uma reverência e saudação com a entrada da professora ou do professor. Eu mantenho meu personagem e improviso com um bocejo enquanto os demais parecem ovelhinhas.
– Atenção! Em pé! Saudação! Reverência! Bom dia, Matoi sensei!
Eu sinto meus olhos quase pular de minhas órbitas. Gill segura a risada. Ela tinha aprontado comigo. Diante de mim está Ryuko Matoi que, em uma realidade alternativa, foi minha professora na Academia Honnouji, minha sensei no Caminho da Espada e também minha amante. Ela olha para mim com espanto. Será que eu fui descoberto? Ou será porque eu estou em pé, fazendo reverência?
– Eh… bom dia pessoal. Eu fico feliz que todos estejam animados. Eu vou aproveitar e apresentar à vocês nossa nova aluna. Por gentileza, Leila Etienne, adiante-se e apresente-se para a classe.
A encenação tem que fazer um intervalo, pois Gill não consegue mais segurar a risada e a piada sou eu que fico com minhas pernas tremendo e meu rosto enrubescido de vergonha. Eu não esperava ver madame contracenando comigo. Eu fico intrigado e ressabiado de como madame concordou em encenar essa estória.
– Ah, por meus parentes divinos! Eu imaginei que esta seria uma peça de nível e cultura. Como eu posso atuar nesse pardieiro?
– Ma… ma… madame?
– Hm? Ah, é você escriba. Ainda bem. Ao menos uma pessoa razoável.
– Eu peço desculpas, madame. Eu sou responsável.
– Como se sente, escriba? O criador sendo manipulado pela criação?
Madame não está sequer indisposta. Eu fico surpreendido quando ela sorri.
– E… corta! Valeu! Mande para a edição! Captaram toda a cena? Isso é cinema, é teatro, senhoras e senhores!
Sentada na cadeira de diretor eu vejo Riley. Gill levanta como se coisa alguma tivesse acontecido. Os atores que encenavam atores no hiato relaxam as posições e começam a conversar. Eu devo ser o único que está em choque.
– Oh, escriba, deveria ver a sua expressão.
– Tudo isso foi… encenação?
– Não fique chocado, escriba. Não há diferença alguma entre ficção e realidade. Todos encenam papéis.
O intervalo estende-se enquanto eu tento me recompor. Outros funcionários desta estranha companhia de teatro rondam de um lado a outro, distribuindo lanches e roteiros. Eu dou uma boa mordida no meu sanduíche enquanto eu leio o meu roteiro. Parece uma comédia, humor leve, tem boas piadas. Uma forma no mínimo inusitada para transmitir o conhecimento esotérico.
– Durak kun? Está tudo bem com você?
– Se… se… sensei…
– Apenas Ryuko chan, oquei? Desculpe por aproveitar desse momento, mas eu aguardo a estória de sua época como estudante na Academia Honnouji.
Sim, eu tenho muitos personagens e tenho muitas pontas soltas que dão boas estórias. Eu posso aproveitar o samurai dos ossos como nome nessa estória. O sorriso de Ryuko chan me tranquiliza ao mesmo tempo em que faz meu sangue ferver.
– Ryuko chan… não está brava comigo pelas cenas que fizemos na estória Neon Genesis?
– Claro que não, Durak kun. O anime Kill la Kill foi um sucesso e nós estávamos paradas no meio do cenário nos perguntando o que faríamos a seguir. Quer dizer, ninguém imagina como uma estória continua depois do último episódio. A sugestão de que nós continuaríamos a Academia Honnouji era a mais evidente. Também gostamos da ideia de receber mais alunos e de treiná-los no Caminho da Espada. Mas você ficou devendo uma estória contando melhor sua chegada ali e como eu e Kiryuin acabamos nos apaixonando por você.
– Eu prometo que farei em breve. Não foi gentil de minha parte colocá-las imediatamente em uma cena ecchi.
– Quando nós recebemos o convite da Sociedade, outros membros nos tinham alertado sobre suas… excentricidades, digamos. Kiryuin disse “por que não”, afinal nós tínhamos sensualizado durante o anime inteiro, mas sem qualquer ação mais… física, digamos. Eu confesso que eu fiquei assustada quando eu vi… aquilo… e aposto que Kiryuin não tinha sequer ideia do que fazer, mas ficou tudo mais fácil e natural assim que a cena ecchi se desenrolou. Eu diria até que nós gostamos. O que te deixa nessa situação. Nós queremos mais cenas.
Ryuko chan se inclina e me beija ternamente e a campainha do teatro soa três vezes indicando o fim do intervalo.
– Eu vou aguardar ansiosamente pelo roteiro, Durak kun. Eu sei que você vai cumprir com sua promessa.
Os atores tomam suas posições no cenário, a equipe de cena fica preparada para os sons e efeitos. Eu tenho que me levantar e disfarçar minha excitação para as próximas cenas. Eu sinto um puxão na manga por trás.
– Se… senhor escriba… o senhor não está chateado comigo?
– Ah, oi, Gill. Claro que não. Eu jamais conseguiria ficar chateado com você.
– E… eu… mesmo assim… eu te peço perdão. Eu fiz isso porque a senhorita Etienne me garantiu que isso me ajudaria a me aproximar do senhor, iria me ajudar a me tornar mais… íntima do senhor.
– Eu entendo, Gill. Eu também escreverei uma estória com você e meu outro eu, o senhor Nestor Ornellas, que fez o papel de seu professor na estória que eu escrevi para a Riley. Você gostaria disso?
– A… a Riley pode fazer parte dessa estória?
– Eu vou conversar com ela e fazer o convite formal.
– Obrigada, senhor escriba.
Eu reassumo minha posição, na carteira do fundão, relaxadão e com as botinas em cima da escrivaninha. Gill saltita, feliz e contente, até sua marca. Riley estala seus dedos e profere sua linda voz, forte e firme.
– Muito bem! Todos em suas posições? Excelente! Vamos retomar a partir da Ryuko chan. Câmera! Luzes! Ação!
– Aham… bom dia pessoal. Eu fico feliz que todos estejam animados. Eu vou aproveitar e apresentar a vocês nossa nova aluna. Por gentileza, Leila Etienne, adiante-se e apresente-se para a classe.
– Bonjour. Mon nom est Leila Etienne. S’il vous plaît prenez soin de moi.
– Ai que chique! Ela fala francês!
– Presidente Kurage, indique uma carteira para a senhorita Etienne.
– Sim, sensei Matoi. Senhorita Etienne, por favor, aceite sentar ao meu lado.
– A senhorita presidente é muito gentil. Se não se importa, eu vou sentar-me aqui.
Madame puxa a cadeira da escrivaninha ao meu lado. Eu tento fazer uma expressão completamente indiferente e desinteressada. Eu faço aquela expressão típica do delinquente juvenil, fazendo aquele olhar enfezado, como se saíssem adagas de meus olhos, encarando madame.
– O senhor Kinjo não se opõe em ser meu vizinho de carteira, eu espero.
– Tsk! Como se eu tivesse tempo para me incomodar com isso! Tanto faz! O azar é todo seu! Depois não se queixe das consequências!
Eu viro o rosto para o lado para enfatizar meu desprezo. Os demais atores que fazem o papel de estudantes fazem aquele burburinho típico dessas cenas nos animes ambientados em sala de aula.
– Eu não acredito! Uma dama vai sentar ao lado desse… lixo!
– Coitada da senhorita Etienne! Esse… animal… não vai demorar para acabar com a virtude dela!
Os diálogos são bem superficiais, a enquete tem que improvisar fazendo o “som” dos pensamentos dos “alunos” para mostrar a inveja e o ciúme que eles escondem. Sim, a Arte imita a vida e reflete de volta a hipocrisia do ser humano.
– Muito bem, classe, chega de fofoca. Peguem seus livros e abram na página 13, título inicial.
– Senhor Kinjo… eu sou nova nessa classe… eu ainda não recebi meu material escolar…
A mão de madame coberta por uma delicada luva pousa suavemente em meu braço que, rapidamente, se arrepia por inteiro. Com muito esforço, eu seguro meu nervosismo, apesar de estar suando frio e sentindo toda minha pele pipocar. Felizmente o roteiro indica que eu fico ruborizado, embora tente manter minha fama de mau.
– Humph! Patricinha mimada! Mal chegou e está ficando folgada!
– Kinjo kun, seja gentil e compartilhe o livro com sua colega.
– O… oquei… mas só porque sensei Matoi pediu. Não acostuma não.
Madame puxa a cadeira para próximo de mim e, propositadamente, encosta o corpo dela no meu. A maciez e o perfume daquela pele são mais do que suficientes para me deixarem “ligado”. Madame sorri discretamente e sussurra algo que não está no roteiro.
– Não é momento de ficar encabulado, escriba. Deixe que seu “volume” apareça.
– Na… não tem problema, madame?
– Humph! Esquece das estórias que escreveu para mim? Eu não tive problema algum em ficar completamente nua na sua frente e não fiquei nem um pouco impressionada com o seu… talento.
– Pessoal, sem conversas paralelas durante a atuação, por favor! Equipe de edição! Marque o tempo e cortem essa parte! Ryuko chan, sua linha, por favor.
– Eh… ora, ora. Eu vejo que vocês se darão muito bem juntos. Muito bem. Senhor Kinjo, como veterano, o senhor será o senpai da senhorita Etienne. Senhorita Etienne, a partir de hoje, o senhor Kinjo é o seu responsável.
As atrizes encenam um desmaio coletivo e os atores esmurram suas carteiras em protesto. Eu sei que é encenação, mas está real demais. Madame está curiosamente tranquila e satisfeita, esboçando um leve sorriso. Ryuko chan segue o roteiro, encenando o desespero de uma professora atrapalhada. Gill faz a parte dela, ficando zangada e questionando a decisão de Ryuko chan.
– Vamos lá, pessoal! Quem de nós não foi encrenqueiro? O senhor Kinjo só precisa de um bom motivo para ser uma pessoa melhor. Vamos dar uma chance. Quem sabe a senhorita Etienne seja o motivo que o senhor Kinjo precisa. Que tal, senhorita Etienne?
– Eu peço aos meus colegas que acreditem em mim. Eu irei modificar a vida do senhor Kinjo. Aliás, eu irei mudar a vida de todos aqui. Apenas confiem em mim.
Conforme o combinado no roteiro, a classe vai cessando o burburinho e retoma a calma, para a felicidade da professora.
– Eeee… corta! Valeu! Mande para a edição! Oquei, pessoal, bom trabalho!
Riley faz aquela pose de diretora enquanto a trupe suspira aliviada. Apesar do ar condicionado, os holofotes aquecem bastante o ambiente. O pessoal relaxa e não demora para passar vários garçons com água, suco, refrigerante.
– Muito bom, escriba. Como se sente na pele de um personagem?
– Madame me perdoe a ousadia, mas madame também encena, faz um personagem?
– Mas é evidente que sim! Eu aposto que você está louco para ver o meu verdadeiro eu.
Madame se inclina e volteia os braços em torno de meu pescoço. Eu engulo seco, pois ela pode me “comer” em muitos sentidos. Como se estivesse pedindo um copo de água, madame faz uma pergunta capciosa.
– Diga, escriba… eu não estou exagerada nessa forma? Eu não gosto de ficar com seios inchados desse jeito.
Madame praticamente esfrega o decote diante de meus olhos, sem a menor vergonha em expor suas belas formas naturalmente sensuais e femininas. Eu gostaria de poder respondê-la, mas agora quem desmaia sou eu.
Eu recobro a consciência em um leito de enfermaria, com a luz do dia pousando suavemente na cortina que envolvia o leito. Eu devo ter sido colocado nesse cenário de ambulatório médico bem típico de animes do gênero vida escolar. Eu só tive um desmaio momentâneo, mas é perturbador pensar que provavelmente me jogariam aqui, mesmo se eu tivesse algo mais sério, só para fazer uma boa cena. Eu me ergo para ficar sentado e as molas do leito rangem, uma voz familiar soou do outro lado da cortina.
– Durak kun, você acordou?
A cortina se afasta e a mão revela que quem está “do outro lado” [piada intencional] é Rei Ayanami.
– R… Rei chan…
Rei abaixa os olhos enquanto fica envergonhada e cruza seu outro braço na altura do peito.
– Durak kun… Etienne chan me pediu para eu fazer parte dessa peça. Eu espero que isso não seja problema. Vai ficar ruim para minha carreira se você ficar de paixonite comigo.
– A… ah… tudo bem, Rei chan. Eu acho que superei isso…
Rei relaxa o braço e esboça um leve sorriso.
– Que bom, Durak kun. Eu vou avisar a todos que você está bem.
– Eeee… corta! Valeu! Mande para a edição! Dublagem, regrave em cima do diálogo para sair o nome do personagem.
A equipe de teatro aparece de todo canto, desmontando o cenário. Rei é cercada de suas assistentes que tentam manter afastados os paparazzi.
– Excelente atuação, senhorita Ayanami.
– Gostou, senhorita Marlow?
– Foi um primor!
– Eu sou obrigada a concordar.
No meio de tanta gente, com a visão borrada por causa da iluminação de cena, ao fundo eu consigo ver Asuka Langley com um barrigão e com Shinji Ikari ao seu lado.
– Asuka chan, Shinji kun, vocês também vão fazer parte dessa peça?
– Oh não, Durak kun. Nós estamos aqui como parentes de Rei chan. Foi difícil no começo entender que Shinji e Rei são irmãos, embora ela seja tecnicamente um clone, mas ela é uma boa cunhada. Ah, eu e Shinji estamos juntos e em breve teremos companhia.
– Eh… eu percebi.
– Muito bem, senhoras e senhores, não temos tempo para eventos sociais. Vamos para a próxima cena. Equipe de cena, equipe de encenação, todos em suas posições.
Uma figurinista arranca o pijama de enfermaria de meu corpo e me enfia em um uniforme escolar, muito parecido com aquele que eu tinha usado na estória Neon Genesis. Eu olho meio contrariado para Riley que rola os olhos.
– Sim, nós estamos reaproveitando equipamento. Verba curta. Está pronto para a próxima cena?
Eu balanço a cabeça afirmativamente. Eu sei que isso é coisa de madame, embora seja desnecessário. Eu jamais afrontaria Riley diretamente, não porque ela pode fazer picadinho de mim, mas porque eu realmente gosto dela.
– Muito bem! Cena externa! Cenário de pátio de escola! Todos prontos para a cena do lanche! Ação!
Eu saio e fecho a porta da claquete que está com uma placa muito mal feita escrita “enfermaria”. Eu caminho pelo “pátio da escola” com os “alunos” me encarando, como se eu fosse um animal perigoso. O pessoal de efeitos sonoros solta um ronco e eu coloco minha mão no estômago para reforçar que eu estou faminto.
– Kinjo kun, está com fome?
Madame está sentada sozinha debaixo de uma macieira há poucos passos de mim, vestida e com a postura de uma dama inglesa. Desnecessário, redundante e contraditório, considerando que madame é uma dama francesa.
– Tsk! Quem se importa? Isso não é da sua conta!
– Desculpe, Kinjo kun, mas o senhor é meu senpai, eu não posso permitir que meu senpai fique com fome. Venha, sente-se ao meu lado e coma o bento comigo, eu tenho bastante!
Os “alunos” começam com burburinhos típicos de cenas assim, onde um aluno delinquente é visto lanchando com uma beldade. No padrão do anime, somente se compartilha comida com uma pessoa com quem se tem algum tipo de relacionamento. A coisa é mais séria, até mais íntima, quando se dá comida na boca é evidente que madame encena com satisfação esse ato que insinua que nós estejamos íntimos assim.
– E… eu não acredito! Como isso é possível?
– E… Etienne kun… está… namorando esse… lixo?
– Está gostoso, Kinjo kun? Se quiser, eu também tenho sobremesa. A não ser que o senhor prefira comer “outra coisa”.
Eu faço o meu papel, engasgo, cuspo parte da comida no chão e deixo minhas bochechas avermelhadas. Eu devo ter assistido milhares de cenas parecidas nos animes. Para a mente ocidental, esse diálogo de duplo sentido é considerado humor; para a mente oriental, chega a ser pornográfico.
– Ei, o que você pensa que eu sou? Algum tipo de cachorrinho? Eu não sou conhecido como Hoshikazu Burēkārūru à toa não!
Eu fico na postura de delinquente juvenil, pernas firmes, punho em riste, cabelos eriçados e expressão zangada.
– Oh, senpai Kinjo, não foi esta a minha intenção! Por favor, castigue-me! Faça o que quiser comigo!
Madame rasga uma peça da blusa revelando boa parte do volume de seus belos seios em formato de pêssego enquanto eu recebo a ajuda da claquete para fazer a clássica cena do sangue jorrando do nariz.
– Eeee… corta! Muito bem, pessoal, intervalo. A próxima cena é mais complexa. Gill e Rei, estão prontas? Ótimo! A turba de cristãos fanáticos fundamentalista está pronta? Ótimo! Quinze minutos de descanso, senhores!
Eu limpo meu rosto da tinta e sacudo a poeira. Alguns releem o roteiro e repassam as falas e as marcas. Os sucos e sanduíches voltam a circular. Gill está visivelmente animada com a próxima cena e parece pedir dicas com Rei que está com um uniforme de freira. Ela deverá liderar a “turba” para a cena seguinte que envolverá madame e eu. Riley está com um brilho de confiança no olhar o que me dá algum alento. Eu minto para mim mesmo dizendo que não será ruim. Distraído, nem percebo que sensei Matoi está bem atrás de mim.
– Oi Durak kun. Você tem um minuto?
– Ah… sim, sen… sim, Ryuko chan.
– Pediram para que eu me certificasse de algumas coisas. A presença de Rei te perturba?
– Não, Ryuko chan. Talvez, alguns anos atrás, eu ficaria perturbado. Mas eu cresci, eu amadureci. Não faz mais sentido manter paixonites infantis.
– Então você não vai pirar se na próxima cena a Rei estiver nua?
– E… eu vou me controlar, Ryuko chan.
– Eu acredito em você, mas eu tenho que fazer esse teste assim mesmo…
Ryuko chan abre completamente a sua blusa desnudando seus seios perfeitos, maravilhosos, deliciosos… controle… controle… eu sinto as pernas bambearem, meus olhos arderem em chamas, mas eu consegui disfarçar minha excitação.
– Sua força de vontade é impressionante, Durak kun. Eu quase fico envergonhada em ter tentado te provocar. Mas cá entre nós… entre eu e Rei… quem ganha?
– Ryuko chan… isso… não pergunte… não é uma competição.
– Eu sei que não, seu bobo. Eu não sou insegura. Digamos que eu quero que você pense neles como estímulo para a estória que fará para mim e Kiryuin.
Ryuko chan sai rebolando de tal forma que é impossível para qualquer mortal resistir. Ela percebe, sorri de forma safada e manda um beijinho no ar.
– Hei, escriba, está em condições de fazer a próxima cena?
Riley, como diretora de teatro, tenta transparecer seriedade e rigor, mas ela não consegue ficar sem babar enquanto olha para minhas partes baixas.
– S…sim, Riley… sem problemas.
– Se estiver muito difícil, eu posso te ajudar com uma “rapidinha”.
Cinco minutos de intervalo pessoal. Nós não vamos demorar muito.
Todos estavam apreensivos e concentrados para a sequência da cena, certamente por sua complexidade e profundidade. Todos estão em suas posições enquanto eu e Riley voltamos de algum ponto obscuro, com as pernas bamboleando e um enorme sorriso de satisfação.
– Mu… muito bem, pessoal. Agora é para valer. Essa é a cena mais difícil. Estão todos prontos? Ótimo! Etienne chan, está pronta?
– Eu nasci pronta, senhorita Marlow.
– Oquei, retomando a partir da tomada anterior. Escriba, expressão de delinquente juvenil. Coadjuvantes, fazendo arruaça. Etienne chan, expressão de vítima inocente. Eeee… ação!
Gill entra em cena com Rei e um grupo de pessoas portando cruzes e tochas. Podiam ter sido menos óbvios. Cristãos fundamentalistas portam cartazes e armas nos dias de hoje.
– Ali está, Irmã Clarice! Ali está o Anticristo!
– Não vencerá, maldita criatura do Diabo! Em nome do Senhor, eu te repreendo!
A turba de fanáticos fundamentalista faz aquilo que costuma ser feito enquanto Rei segura com suas mãos uma Bíblia, diante do olhar aprovador de Gill. Madame ergue-se com classe e estilo, acompanhada de fumaça cenográfica para dar mais dramaticidade ao discurso.
– A quem chama de Senhor? Se soubesse com quem fala, beijaria os meus pés.
– Está escrito: adorarás apenas ao Senhor, teu Deus!
– Quem é teu Deus? Eu conheço a todos.
– Está escrito: Eu sou o Senhor de Israel e não há outro Deus além de mim!
– Irmã, está adorando um Deus que pertence a outro povo que não o teu. Também está escrito: façamos o Homem à Nossa imagem. Portanto, há mais de um Deus e eu estou diante da Assembléia dos Deuses.
– Você mente, como teu Pai! O Homem foi feito à imagem e semelhança de Deus Pai, Filho e Espírito Santo!
– Você tropeça em sua própria crença, Irmã. Não é compatível a Trindade onde Deus diz que só há Um. O Homem foi feito à Nossa imagem, Deus e Deusa, o Homem é reflexo da União Divino, Hiero Gamos, onde Deus é Transgênero, então o Homem é o Divino Hermafrodita.
– Mais mentiras! Deus criou primeiro o homem e da costela de Adão se fez a mulher, Eva.
– Pode o homem sem ventre dar à luz? Ou esta foi a saída dos rabinos para recontar na forma deles o Mito da Queda do Homem? Nem nisso teus padres foram originais, pois fraudaram a partir de uma fraude. Eu sei, porque fui eu quem deu ao Homem o Fruto da Luz.
– Ah, então admite que é o Diabo!
– A quem chamas de Diabo? Eu sou a Serpente Primordial, também chamada de Cristo e Lúcifer. Eu dei ao Homem o Conhecimento para que cumprisse com o propósito de sua existência. Como quem trouxe a Verdade, a Luz e a Liberdade pode ser o Diabo?
– Deus te condene, maldita! Pela tentação, mentira e enganação, você provocou a queda do homem ao oferecer a ele o Fruto Proibido!
– E no entanto, o Homem não morreu ao comer do Fruto do Conhecimento, então quem mentiu não fui eu, mas este que você chama enganosamente de Deus. E o mais engraçado é que vocês vivem elogiando esse Deus pelo Livre Arbítrio. Como podem chamá-lo de Deus se nem esta primeira escolha Ele lhes permitiu?
– O que adveio não foi liberdade, mas prisão, a prisão do pecado, por causa da desobediência do homem ao comer do Fruto Proibido!
– Não é o Fruto Proibido igualmente criação deste que chama de Deus? Não sou eu igualmente uma criatura criada por Ele? Não foi o Homem igualmente criado por Ele? Então que péssimo Criador é este que se revolta com sua obra por agir conforme a natureza e essência com a qual foi concebido? Não estive eu no Jardim do Éden oferecendo a Verdade, sem que este suposto Deus se interpusesse, ou impedisse minha intromissão, interferência, interação? Como pode chamar de Deus a este que é negligente, ausente e omisso?
– Nós fomos expulsos do Jardim do Éden por causa desse crime que você ajudou a acontecer! Agora nós vivemos nesse mundo cheio de dores e sofrimentos que é a consequência do pecado!
– Uma gaiola, mesmo que seja de ouro, ainda é uma prisão. Onde pode haver Livre Arbítrio quando o pecado é uma ameaça diante da escolha? Aquele que é Juiz e Carrasco não pode ser chamado de Deus.
– Deus é justo e misericordioso! Deus nos enviou seu Emissário, Cristo, para nos salvar da morte do pecado!
– Ah, sim, convenientemente o Usurpador encontra humanos com quem se associar e inventaram a maior fraude piedosa de todos os tempos. Os descendentes de Israel cometeram esse engano e os padres refogaram este erro para suas agendas pessoais. Este que você chama de Deus não me enviou e aquele que este enviou não é Cristo. Eis a Revelação que o Homem não quer entender, pois desde o início dos tempos eu tenho estado entre vocês, dentro de vocês, ao redor de vocês.
– Mas foi Deus quem nos enviou o Cristo!
– Então não é Deus, pois precisou enviar um emissário para completar a obra que começou. Este que é tido por Cristo não o pode sê-lo, porque não preenche os pré-requisitos das profecias e não poderia cumpri-las, pois ajuntou consigo os Gentios, povos que o Usurpador não reconhece como sendo seu Santo Povo.
– Deus nos enviou o Salvador para que se cumpra a Lei e as profecias!
– E, no entanto, este que chama de Deus não cumpriu a Lei e eu mesma quebrei a Lei porque é absurda. Em todas as vezes que eu estive entre vocês, eu rompi com suas crenças equivocadas, eu aboli suas organizações religiosas e eu lhes dei os instrumentos para sua Revolução. Eis a Revelação que o Homem tem que entender: vocês são nossos filhos e filhas. Despertem desse sono, dessa ilusão, rasguem os véus da ilusão de Maya e tornem-se Deuses.
Fogos de artifício estouram em diversos pontos do palco, provocando muita fumaça, estrondos e fagulhas luminosas. Rei cai no chão, completamente nua, com suas roupas rasgadas, derrotada. A turba milagrosamente desaparece e Gill é destacada com um holofote para fazer o arremate.
– E… eu não entendo! Você é sensual, lasciva, provocante e exuberante. Como pode a Grande Meretriz ser Cristo?
– Azul, púrpura e carmim não são cores associadas ao divino por coincidência, senhorita Kurage. Cristo, Lúcifer e Babalon vestem roupas com essas cores porque são a mesma pessoa. Eis a Revelação que o Homem tem que experimentar: Veni Vere Venus Verum Veneram Venereae. Vinde, Vede e Venere a Verdadeira Vênus pelo Prazer Venéreo. Tornem o corpo, o desejo, o prazer e o sexo suas ferramentas de autoconhecimento, iluminação e transcendência. Não há necessidade de templos, sacerdotes, textos sagrados ou de fórmulas. Tudo que vocês precisam é Amor. Amor é a Lei.
Trovões, relâmpagos e nuvens são providenciados pela equipe de claquete e de efeitos. A equipe de som de fundo providencia uma música clássica tocada em órgão, provavelmente retirada de um velho filme de terror.
– Eeee… corta! Valeu! Mande para a edição! Oquei pessoal, folga para todos. Nos vemos semana que vem.
Os holofotes vão sendo desligados, as janelas do estúdio são abertas e a luz do sol ilumina todo o ambiente. A equipe de cenário desmonta as peças, a equipe de luz recolhe cabos de força, a equipe de som desmonta os equipamentos. Os atores e atrizes trocam de roupa ali mesmo, tomam café, bebem algum tipo de bebida alcoólica ou vão se dispersando.
Rei está cercada de suas assistentes e dos indefectíveis paparazzis, como se ela não estivesse vestida parcamente por um roupão de banho. Madame parece feliz com a peça, então eu estou feliz. Meu corpo está dolorido, mas Riley dá um tapão nas minhas costas, alegre com o resultado.
– Faaala, escriba! Ficou bom, não ficou?
– [Ai] Eu acho que foi exagerado o espetáculo pirotécnico.
– Eu exagerei mesmo… que bom que ninguém se machucou e não houve um princípio de incêndio. Esse foi o piloto. Acha que a Sociedade vai aprovar o projeto?
– Eu não sei. Kate… aham… Venera sama… tem seus mistérios.
– Bom, se Etienne chan gostou, eu estou satisfeita. Vê se aparece lá em casa hem?
Eu junto o que sobrou do meu braço e percebo que madame não está mais presente. Enfim, eu respiro mais aliviado.
– Senhor escriba… a Riley foi embora?
– Ah, oi, Gill. Ela acabou de voltar para Nayloria.
– E… eu posso ir embora também?
– Claro, querida.
– O…oquei… tchau.
Gill me surpreende me abraçando e beijando antes de sair saltitando através do portal dimensional. Bom, acho que só restou eu.
– O pessoal foi embora? Que bom. E aí, Durak kun, que tal aproveitarmos para tomar várias cervejas e ensaiarmos algumas cenas da estória na Academia Honnouji?
Com os braços de Ryuko chan envoltos em meu pescoço, eu não tenho escolha senão acenar positivamente. Quando eu voltar para casa, se eu conseguir voltar, eu vou estar um bagaço.
A multidão estava diante do templo tentando falar ou ver Cristo e não se deram conta que ali estava entre o povo. O santarrão não viu, o pastor não conheceu e o apóstolo negou. Não procure Cristo em livros, templos, sacerdotes, lá não encontrará. Não creia que Cristo esteja entre ladrões, pobres, mendigos, escravos, ali não há verdade.
Dentre tantos ali presentes, Cristo falou com o escriba porque, como a bruxa, ele está entre dois mundos.
– O que te incomoda, escriba?
– A língua dos homens, Verdade. Porque te elogiam ao mesmo tempo em que te distorcem e manipulam conforme o interesse de quem profere.
– Pois que mintam até o Fim dos Tempos. O extremo da Falsidade toca o extremo da Verdade e em tudo Eu Sou. Não se pode chegar na Verdade senão através do erro, da mentira, da falsidade, do engano, pois a luz só é percebida melhor da sombra.
– Santo Corpo, Vias Sagradas da Iluminação, por que a Revelação veio somente agora?
– Não revele meu nome, escriba, por mais que te torturem. Oculte em títulos e honoríficos, pois Buda, Profeta, Cristo, são meros títulos, nada dizem de mim. Aos que buscam a Verdade, que calculem, pois em breve será celebrada a minha data.
– Qual evento tem tal privilégio de sediar Vossa celebração?
– Eis que todo ano eu anuncio o início do ano. Chamam esta estação de Primavera e o mês de Abril, porque tudo se abre, tudo está receptivo para as bênçãos que eu derramo.
– As estações do ano vos pertencem?
– O tempo de arar o campo, semear a terra, cultivar a plantação e segar a colheita são meus.
– As fases de uma vida vos pertencem?
– Nascer, crescer, envelhecer, morrer e renascer são meus.
– Vós sois o Berço e a Tumba?
– De mim todas as coisas vem e para mim todas as coisas voltam. Mas não me temam, pois Eu Sou a Taça de Vinho da Vida e a Porta da Juventude.
– Vós sois a natureza, abundante e fértil. Mas quem pode arar o campo, quem pode entrar no ventre?
– Para quem sabe, o arado e a lança são a mesma ferramenta. Quem, senão o Rei, o Senhor, possui o cetro? Este é o Touro, meu consorte, cuja ferocidade e vitalidade são necessários para que haja fecundidade.
– Dizem que tal virilidade é selvageria.
– Viver é violento. A natureza é violenta. Uma flor não desabrocha com gentileza. Um ventre não pode ser preenchido sem romper o véu. Tudo que vem a este mundo nasce envolvido em líquidos, fibras, tecidos, dores e prazeres. Sem o incesto, o adultério e o estupro, sua gente não existiria.
– Então Cristo abençoa e bendiz este mundo, o corpo, o desejo, o prazer e o sexo?
– Se tua gente tivesse me ouvido… mas como tu mesmo percebeste, distorcem e manipulam o Conhecimento conforme os próprios interesses.
– Onde o buscador pode encontrar Vossas reais palavras? Onde podemos encontrar a Verdade?
– Não estou eu diante de ti? Não estão teus olhos voluptuosamente cobiçando minhas curvas? Eu estou onde eu sempre estive, desde o início dos tempos, entre o ser humano, dentro dele, ao redor dele. Quem tiver olhos que veja, quem tiver ouvidos que ouça, quem tiver entendimento que entenda.
– Mas Santa Voz, no meio de tamanha multidão, por que somente eu vejo, ouço e entendo?
– Diante da Verdade, três reações são possíveis. Negação e este é digno de misericórdia. Diluição e este é digno de rejeição. Aceitação e este é digno de usufruto.
– Em qual das três categorias ficam os sistemas de ordens secretas, as organizações religiosas e os caminhos iniciáticos?
– Fórmulas, equações e esquemas são indicações do caminho, não são a Verdade. Quando se toma o caminhar pelo caminho, o buscador fica perdido no fundamentalismo e não avança na direção da Verdade. Por isso eu abomino o proselitismo tanto quanto graus, hierarquias e postulados. Aquele que se exalta por causa de seu papel em uma comunidade, assembleia ou congregação é o que está mais perdido.
– Ah, Supremo Êxtase, por que então ainda nos afastamos do mundo e negamos ao corpo sua divina procedência?
– Entre tua gente existem aqueles que desejam influência, poder e riqueza. Sociedade, Governo e Igreja são os melhores métodos para conseguir tais coisas. Tais empreendimentos dependem da obediência, do conformismo e da alienação do povo. O homem comum nega o corpo e rejeita o mundo, para que o Estado legisle sobre o corpo e a Empresa explore o mundo. O que vemos senão ódio, guerra, pobreza e miséria? No entanto, o homem comum alegremente permanece como ovelha enquanto o pastor engorda.
– O que a Revelação diz da Verdade?
– Oh, meu querido, meu muito amado, não arme uma armadilha ao buscador. Como todo e qualquer outro texto sagrado, a Revelação é um instrumento, não é uma relíquia nem um totem, esse é um meio que conduz ao objetivo. Como tu disseste, o meio não é a mensagem, o mensageiro não é importante, mas somente quem é verdadeiro pode portar a Verdade, somente quem é puro pode portar a Luz.
– Então não sou eu digno de estar diante de ti, Amor.
– Oh, jamais diga isso! Esta é a maior das mentiras que dizem ao longo dos tempos. Eu encarnei tantas vezes entre vós, muitos me amaram e eu os amei plenamente. Não sente teu sangue pulsar forte em tuas veias só por ouvir minha voz? Eu sou o desejo que arde em teu coração, jamais duvide disso. Você é meu instrumento e eu te usarei. Você será proscrito, banido, maldito, até por aqueles que se dizem meus sacerdotes. No entanto, não tens tu pleno acesso aos meus mistérios mais profundos? Então que te importas o que dizem de ti? O que desejais, consumir seu amor dentro do meu templo ou desperdiçar seu talento entre estultos?
– Pedi e eu mesmo arranco meu coração para te oferecer.
– Ah, bem que tu gostas de ter um pedaço teu pulsando dentro de mim.
– A celebração do Mistério assim pede. Embora há quem tenha ojeriza do Hiero Gamos.
– Maldito seja aquele que vilipendia as Sagradas Vias. Sexo é natural, sadio e saudável. Todo ser nasce e tem uma sexualidade. Fosse o ser humano mais sincero com seu sentimento, não existiriam tabus, regras e proibições.
– O que dizer de outras formas de sagrações?
– Apenas isto: todos os atos de amor e prazer são meus rituais.
– O Amor é incondicional?
– Eu te restrinjo ou te condeno em qualquer de teus atos e rituais?
– Não, por ti eu ouso ir além.
– E foste além?
– Eu declaro a origem da humanidade no adultério, incesto e estupro. Eu defendo que a família dê educação sexual aos seus descendentes. Eu defendo que sejam mantidos os ritos de passagem para a idade adulta, onde aquele que pleiteia sua maturidade receba a iniciação por um adulto, nos papéis de Tutor/a e Tutelado/a. Eu pleiteio para que todos tenham o direito e liberdade de se expressarem sexualmente, para que todos possam amar quem quiser, quantos quiserem.
– E o fizeste magistralmente. O que nos faz voltar ao ponto inicial. O que te incomoda, escriba? Tens muito mais do que qualquer um ousou, sonhou ou realizou.
– Este é o meu povo, a minha gente. Não me agrada vê-los feito ovelhas.
– O que espera? Vá na praça e pregue a palavra…
– Eu me tornaria imagem, reflexo e semelhança do que abomino.
– Então quer que eu tome forma novamente e que sua gente me sacrifique porque sempre é mais fácil escolher um carneiro ou um bode expiatório?
– Eu estou mais inclinado em oferecer minha vida para tal ato de vilania.
– Eu tenho certeza que isto te satisfaria, mas mesmo esse sacrifício heróico é falsa humildade. Nisto eu te posso afirmar. Quando, como Cristo, eu dei minha vida, trocaram meu nome, trocaram meu corpo, trocaram meu gênero e deturparam todo o Conhecimento. E mesmo assim o ser humano persistiu e piorou o erro, criando mais um sistema que servia apenas para escravizar a humanidade.
– Oh, Sophia, tua intenção era libertar a humanidade…
– O meu mais Alto Ideal é fazer com que a humanidade cumpra com o propósito de sua existência. Para isso é necessário Verdade e Liberdade, desde que seja feito pela Vontade, pois Amor é a Lei, Amor sob a Vontade.
– Quem souber, desvende o nome: I.E.A.O.U.
Navarra, ano do Senhor de onze de abril de 1307.
Por ordem do Bispo de Voyeur e pelas bênçãos do Rei Filipe I e Joana I, por designação do Papa Bento XI, a Arquidiocese de Pamplona e Tudela declara aberta o Tribunal Eclesiástico com o intuito de averiguar as acusações e denúncias contra o penitente aqui declinado pelo nome de Nestor Ornellas.
Presidindo esta sessão, o bispo Arnaldo de Poliana, acompanhado do cardeal César Bórgia e do Cura Miguel Valdonese. Na condição de Inquisidor, Frei Alabardo e na condição de Defensor, Abade Coligny. Que os verdugos tragam o acusado diante deste Santo Ofício.
– Que conste nos autos, eminente presidente, que o acusado não apresenta marcas ou sinais de injúrias. Os ingleses e os franceses nos acusam de torturas contra os acusados, como se estes não fizessem uso dos instrumentos de inquisição.
– Anotado. Muito embora eu deva aconselhar ao Inquisidor que tenha mais preocupação em agradar a Santa Sede. Prossiga com a audiência.
– A preferência é minha. Como representante desse Sagrado Colégio, eu abro a rodada perguntando ao acusado se tem conhecimento dos motivos pelos quais nos foi trazido.
– Eu escutei certo ou o doutor da Igreja não sabe por que eu estou aqui neste tribunal?
– Que conste que o acusado não declarou sua ciência sobre os fatos a ele imputados. O acusado tem inimigos ou desavenças?
– Seria constrangedor a este tribunal se eu o declarasse.
– Que conste nos autos que o acusado ignora possíveis adversários ou interessados em sua condenação. O acusado disse ou proferiu algo que ofendesse a Igreja, a Doutrina ou ao Santo Nome?
– Ofende a meretriz chamá-la de adúltera? Quem vive de comercializar indulgências não merece outra consideração se faz usando tal “doutrina”, este compêndio não é melhor do que os livros do libertino. Muito espanta este tribunal acusar-me de ofender ao Santo Nome quando seus padres o fazem amiúde nas missas. Que situação, senhores! Eu quem os devia julgar, sentenciar e condenar!
– O acusado alega que este colégio não é digno de seu sacerdócio? Por acaso tem algum diploma de um seminário?
– Oh, não, eu que não quero nem preciso estar entre mafiosos para saber que cometem crimes.
– Este tribunal não permitirá tal ousadia. Que o escrivão omita esta declaração do acusado dos autos. Prossiga com as questões.
– Perfeitamente, eminente presidente. Eu peço apenas que se registre que o acusado demonstra por ações e palavras sua recalcitrância diante da Igreja.
– Anotado. Próximas, questões, por favor.
– O acusado reconhece a autoridade da Igreja?
– Não.
– Ahem. O acusado reconhece a autoridade das escrituras?
– Não.
– O acusado deve estar ciente que estas respostas constituem elementos suficientes para sua condenação.
– Como podem me condenar se não possuem nem o poder e nem a autoridade?
– Escrivão, omita esta declaração.
– Continuando, o acusado reconhece que Deus enviou Cristo para nos redimir dos pecados e nos dar a vida eterna?
– Este que vocês cultuam não é Deus e nem aquele que foi enviado é Cristo.
– Ora, essa é muito boa. O acusado, homem secular, sabe mais das escrituras, de Deus e de Cristo, do que todos nós, doutores da Igreja.
– Isso você o diz, não eu, mas agradeço seu reconhecimento.
– Este é o seu intento? Reconhecimento, aceitação, aplauso e popularidade?
– Se fosse esse meu intento, eu estaria entre vocês, “doutores da Igreja”.
– Então que tal isto? Se nos convencer de que seu conhecimento é maior do que o nosso, será libertado e nós nos converteremos ao seu credo.
– Não prometa o que não pode cumprir, Inquisidor.
– Ora vai desperdiçar uma oportunidade assim para esclarecer os ignorantes? Diga-nos porque aquele que adoramos não é Deus?
– Isto que vocês chamam de Deus é um mosaico, um monstro feito de retalhos de teologia. Com muita boa intenção, isto é uma mistura do Deus de Israel com Mithra e César. César foi divino, não o é mais. Mithra é um de muitos dos Deuses Persas, os quais, pela origem e raiz que vocês possuem, seriam muito mais adequados. O que resta é o Deus de Israel, apenas um dos Deuses que fazem parte do Elohim e não possui qualquer vínculo com seus ancestrais.
– Está querendo nos convencer de que somente é Deus aquele que era conhecido por nossos ancestrais?
– Eu digo mais, pois se vocês conhecessem suas origens e raízes, chegariam a um Patriarca Mítico, cuja linhagem e procedência estão ligados a uma família de Deuses.
[risadas] – Oh, esta é uma boa piada. Vai nos divertir por algum tempo. Mas agora eu estou curioso. Quem nosso Deus enviou e quem é Cristo?
– Este que chamam de Deus ainda não enviou seu emissário e mesmo que o faça, esta salvação com a qual abarrotam seus cofres de dinheiro não chegará aos seus concidadãos simplesmente porque assim afirmam os sermões dos profetas de Israel.
– Entretanto, o acusado reconhece que Cristo veio e esteve entre nós. Como pode Cristo vir sem que não venha de Deus?
– Vocês dizem ser doutores da Igreja e não viram o Conhecimento? Os sábios souberam esconder nos textos sagrados, mas vocês só leem o significado literal, mostrando o quanto são ignorantes.
– Ora então diga onde está o segredo, pois o que não falta neste tribunal são os textos sagrados.
– Está escrito: que pai mandaria serpentes quando os filhos pedem pão? O que fez o Deus de Israel quando o dito “Povo Eleito” clamou por pães? Mandou-lhes serpentes, pois eis o segredo, Cristo não pode ter sido mandado por tal Deus.
[burburinhos] – Isso… isso é absurdo. Os textos sagrados dizem que Cristo viria.
– E pela sanha de “encaixar” Cristo, os Profetas mentiram e enganaram tanto quanto senão mais do que esta Igreja que distorce os textos sagrados. A própria letra é pedra de tropeço, pois está escrito que Cristo viria da raiz de Davi e Jessé. Esta é a linhagem de Boaz e Rute, uma mulher moabita que, pela Lei de Deus de Israel, é maldita. Como pode Cristo vir de uma linhagem maldita? O segredo é que a linhagem e a procedência nunca foram determinantes. Vocês se prendem muito ao título ao invés de desvendarem quem é Cristo.
[vozes ruidosas] – O que o acusado diz é blasfêmia, heresia e sacrilégio. Antes de receber sua sentença, declare então quem é Cristo?
– Dizem serem doutores, mas não sabem nem percebem? Eu devo falar em títulos e honoríficos, pois não se deve pronunciar o Santo Nome. Nós conhecemos como a Serpente Primordial, Tiamat, Typhon, Pithon, Górgona. Recebeu diversos títulos como Prometeu, Zoroastro, Buda, Cristo, Profeta, Lúcifer. O povo de Israel entoava cânticos com bolos em formato de lua enquanto adorava o Santo Nome ao lado do Consorte Divino. Todo o trabalho e doutrinação de vocês são em vão, porque eu conheço o Porteiro que tem as chaves da Porta da Juventude e eu conheço o Vinicultor que preenche a Taça de Vinho da Vida. Vem o tempo quando o Conhecimento será desvelado e ai de vós, doutores da lei, que tirastes a chave da ciência; vós mesmos não entrastes, e impedistes os que entravam.
[discussões altercadas e tumulto de briga]
– Ordem! Ordem no tribunal! Defensor do acusado, tem algo a declarar em favor dele?
– Não é ele quem precisa ser justificado.
– Que conste nos autos que o Defensor desertou da advocacia do acusado. A mesa se retira para decidir a sentença.
[as autoridades presentes discutem abertamente as declarações]
– Ordem! Ordem no tribunal! Após deliberação, esta mesa decide degredar o acusado para a prisão em Desmoyne e que Deus tenha piedade de sua alma. Esta sessão está encerrada.
A lua cheia de abril marca em muitos povos antigos uma celebração com único propósito que é festejar o começo do ano, o começo do trabalho no campo, a estação da primavera. Para nós que vivemos em um país tropical, no hemisfério sul e regidos pelo Cruzeiro do Sul, parece que está tudo invertido, mas somos nós que estamos de “cabeça para baixo”. Mesmo assim nós nos mantemos em pleno outono, por nossas raízes culturais e religiosas, um feriado religioso cuja origem remonta a Antiguidade.
– Ainda está chateado, escriba?
Uma mulher deslumbrante de cabelos prateados e olhos vermelhos começa a conversar comigo enquanto eu estou no ônibus em direção ao serviço.
– Venera sama?
– Pode me chamar de Kate. Eu achei melhor tomar uma forma mais adequada para este mundo, eu não quero que você seja linchado somente por reconhecer e admitir o absurdo dos tabus dessa sociedade.
– Perdoe minha ousadia e curiosidade em perguntar, Kate, por que veio ao mundo humano?
– Você sabe como é chato ser Deusa! Além do que é mais divertido estar entre vocês.
– Eu posso declarar que domingo é seu dia?
– Adianta alguma coisa dizer que o Natal é o dia do meu Consorte?
– Não… e o engraçado é que até tem cristãos que confirmam isto apenas para criticar o Catolicismo sem que se deem conta que mesmo Cristo não é este que eles acreditam ser.
– Eu deixei tantos sinais e indícios, mas só se atêm ao valor literal das palavras.
– Eu diria que você foi bem explícita ao se identificar como a Estrela da Manhã.
– Isso também ficou mal compreendido. Sua gente não vai conseguir perceber que Vênus e Lúcifer são a mesma divindade.
– Este é o ensinamento original quando esteve entre nós como Cristo?
– Entre outros títulos e honoríficos com os quais sua gente me nomeava, para ocultar meu nome dos profanos. Eu cheguei à conclusão que não me serve mais escolher quem recite meu Conhecimento, nem separar o profano do iniciado. Eu sinto que eu deva falar diretamente com toda sua gente.
– Eu acho que o ser humano não está preparado para ver-vos em vossa plenitude.
– Infelizmente não há outro meio. Vai ser interessante e engraçado ver os governos, as sociedades e as crenças ruírem.
– Isso é… caótico.
– Na perspectiva do divino, vocês estão vivendo em um estado caótico. Tudo bem, vocês são teimosos e turrões, vão ficar perdidos e em choque, mas rapidamente se adaptarão. Esta é a maior qualidade do ser humano, sua incrível capacidade de se adaptar.
– Mas nós temos também o péssimo hábito de nos mantermos arraigados aos nossos medos e preconceitos.
– Efeitos da ignorância. Que se desmanchará diante da Luz.
– Ainda há um grande obstáculo. Minha gente acredita que Vênus é uma Deusa do Amor e Lúcifer é um Diabo do Conhecimento.
– Apesar de eu dizer tantas vezes que Amor, Luz e Conhecimento não estão separados? Aliás, para ser sincera, eu fico contrariada quando sua gente ainda fala no Diabo enquanto adora um Deus fajuto.
– Minha gente sequer entendeu a metáfora iniciática no Mito da Queda do Homem.
– Sua gente sequer entendeu a metáfora iniciática que está nos Evangelhos.
– Que tal tentar com algo menos complexo? Por exemplo, por que a senhora aceitou figurar como um personagem de anime na série Sekai Seifuku Bouryaku no Zvezda?
– Você se apaixonou por mim, não é mesmo? Você percebeu a sutileza do autor do anime, eu esperava que sua gente tivesse essa percepção. Uma animação engraçada que fala de uma garota de oito anos e seus planos de dominação mundial por intermédio de uma sociedade secreta. O ocidental vive tendo pesadelos e teorias de conspiração sobre a Nova Ordem Mundial, Governo Mundial Oculto, mas riu dessa comédia. Vocês são, realmente, intrigantes.
– O humor é uma ferramenta iniciática?
– A existência de vocês neste mundo é uma ferramenta iniciática. Parece bastante simples e evidente, mas vocês gostam de complicar. Eu tive que vir, nascer e viver entre vocês, em diversas formas e nomes, para lembrá-los de que vocês tem a fagulha divina. Vocês nunca precisaram de crenças, religiões, templos, sacerdotes ou textos sagrados, porque eu habito dentro de cada um de vocês. Eu estou bem diante de vocês, ao redor de vocês e eventualmente me ouvirão pelas palavras dos mais simples ou em conversas frugais. Todo e qualquer sistema de crença é morte, é escravidão. Eu os criei para que vivessem livres. Eu os projetei para que cumprissem com o propósito de suas existências que é o de serem Deuses e voltar a conviver no seu lar verdadeiro.
– Ainda deve ser confuso ao profano de como Amor e Conhecimento podem ser uma coisa só.
– Ah… vocês ainda devem acreditar nesse outro tipo de crença, o Ateísmo, onde sacerdotes da matéria e os monges da razão entoam litanias para a Ciência, piedosamente apregoando um universo estéril e asséptico como os laboratórios de onde eles extraem a “divina revelação” da verdade. Apolo, meu tio e irmão, certamente aplaude, mas a existência, a vida, envolve coisas carnais. Não há Conhecimento ou Iluminação possíveis sem que haja carne, sem que haja corpo. Então o corpo deveria ser igualmente uma ferramenta que os conduza ao Conhecimento e a Verdade. Os cinco círculos do Caminho das Sombras versam exatamente sobre usar o corpo, o desejo e o prazer como vias de autoconhecimento, transcendência e iluminação. Então eu acho que fica evidente a conexão entre Conhecimento e Amor. Eu digo mais, há tal necessidade de refinamento e arte no Amor, que as técnicas de Eros e Afrodite constituem um Conhecimento.
– Meus leitores devem pensar que eu sou apenas um bruxo tarado que inventa sistemas mágicos e ensinamentos esotéricos para justificar e explicar minhas perversões.
– Você fala isso como se isso fosse ruim. O que são os padres, sacerdotes ou líderes religiosos senão um bando de pervertidos? Cada um escolhe seu objeto ou corpo de prazer. Eu vou omitir sua preferência para evitar escândalo, mas acredite, eu gosto de você pela coragem e sinceridade em expressar suas taras.
– Eu fico feliz em saber disso. Mas porque você está aqui comigo?
– Ora, daqui a pouco será a Páscoa, uma péssima imitação do Pessach. Os americanos chamam de Easter, o que tem mais a ver comigo. Para celebrar o que antigamente era chamada de Ostara pelos seus ancestrais, eu preparei uma surpresa para você, em agradecimento por tudo que tem feito.
Kate virou para frente e ficou com um sorriso enigmático no restante do trajeto. Eu percebi que tinha algo de estranho acontecendo em minha casa, era possível ouvir, ainda que abafado, sussurros e risinhos. Eu abri o portão e depois eu abri a porta. As luzes da sala foram acesas e todos gritaram surpresa. Todas as minhas garotas estavam ali, vestidas de coelhinha. Quando eu me virei para agradecer Kate pela surpresa, ela tinha sumido.
– Não se preocupe, escriba. A Deusa volta daqui a pouco. Ela foi se preparar para o seu presente de Páscoa.
Eu nem perguntei onde foi parar minha esposa. O bar que fica ao lado estava fechado e os vizinhos estavam ausentes. Eu aceitei a cerveja que Riley me trouxe e fui aproveitando a festa. Eu não sei se foi Osmar ou Leila quem anunciou, afinal são gêmeos transgêneros idênticos. Alguém apagou as luzes e, pelas luzes das lanternas dos celulares, eu vi o presente para a Páscoa. Kate estava inteira coberta com chocolate [pintura corporal], orelhas e rabinho de coelho e uma fita de cetim envolvendo seu corpo.
– Feliz Páscoa, feliz Ostara, escriba. Pode vir, abrir e “comer” o seu presente.
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