Mesmo com sua economia em dificuldades, a Irlanda está no meio de uma rápida e revolucionária transformação: o país está revendo sua relação com a Igreja Católica, uma instituição que tem tido grande influência em quase todos os aspectos da vida no país há muitas gerações.
A Irlanda é um país onde o aborto é contra a lei, o divórcio se tornou legal apenas em 1995, a igreja gerencia mais de 90% das escolas primárias e 87% da população se diz católica. Mas a admiração, o respeito e o medo antes sentidos pelo Vaticano se transformaram em um novo leque de sensações - aversão, raiva e descontentamento - depois de uma série de revelações sobre décadas de abuso de crianças deixadas aos cuidados da igreja por uma grande parte da população.
Enquanto situações parecidas vêm manchando a imagem do Vaticano em outros países, talvez em nenhum outro lugar tais acusações tenham mexido com toda uma sociedade de forma tão intensa como na Irlanda. E assim, quando o primeiro-ministro Enda Kenny usou um discurso no Parlamento nesse verão para criticar a igreja, ele estava falando não apenas sobre seus próprios sentimentos reprimidos, mas sobre os sentimentos de toda uma nação.
Seus comentários demonstraram a supremacia do Estado sobre a Igreja, com palavras de indignação e revolta que nunca antes tinham sido utilizadas publicamente por um líder irlandês.
"Pela primeira vez na Irlanda, um relatório sobre o abuso sexual infantil expôs uma tentativa por parte da Santa Sé de frustrar um inquérito da república, soberana e democrática, há cerca de três anos, e não há cerca de três décadas", disse Kenny, em referência ao Relatório Cloyne, que registra uma queixa detalhada e demonstra a tentativa de encobrir tais acontecimentos por oficiais da igreja no sul da Irlanda antes de 2009.
Reiterando a afirmação do relatório de que a igreja teria encorajado os bispos a ignorarem as diretrizes que eles mesmos deveriam adotar, o primeiro-ministro atacou "a disfunção, a desconexão e o elitismo" que, segundo ele, "dominam a cultura do Vaticano".
Kenny continuou: "O estupro e a tortura de crianças foram subestimados ou 'administrados' com intuito de defender a instituição - seu poder, a sua posição e a sua reputação". Ele disse que, em vez de ouvir com humildade as evidências comoventes de "humilhação e traição", "a resposta do Vaticano foi de verificar a veracidade de tais acontecimentos com um olhar frio e analítico ". O efeito colateral de seu discurso foi instantâneo e chocante.
"Foi um momento de grande importância", afirmou Patsy McGarry, correspondente de assuntos religiosos do jornal The Irish Times. "Nenhum primeiro-ministro irlandês alguma vez se dirigiu à Igreja Católica dessa forma. A subserviência do Estado irlandês ao Vaticano desapareceu. A deferência acabou. "
Embora ambos os lados estejam conversando de uma maneira mais calma ultimamente, não há dúvidas de que a declaração de Kenny irritou profundamente o Vaticano, que retirou seu embaixador de Dublin em resposta - o embaixador foi transferido para a República Checa.
A posição de embaixador do Vaticano na Irlanda está em aberto, e fala-se também de fundir sua função com a do embaixador da Itália. Embora oficiais do governo digam que a questão é parte de uma reavaliação geral do orçamento diplomático, tal medida é vista como uma afronta contra a Santa Sé, um Estado soberano ao qual países em geral dedicam embaixadas separadas.
Enquanto isso, a última comunicação formal da igreja com Dublin - em 24 páginas - reclamou tanto do Relatório Cloyne quanto das observações feitas por Kenny, dizendo que um documento fundamental tinha sido "mal interpretado" pelo inquérito e alegou que a afirmação de Kenny "não tinha base" para dizer que o Vaticano tentou "recusar um inquérito" sobre o escândalo de abusos.
Simpatizantes da Igreja dizem que o Vaticano fez argumentos válidos. Eles afirmaram ainda que Kenny foi longe demais. "Pessoalmente, eu acho que ele foi excessivo ", disse David Quinn, fundador do Instituto Iona, um grupo de defesa religioso de direita.
Em uma entrevista, Quinn disse que a relação entre o Vaticano e o governo irlandês estava em uma "maré muito baixa." A situação das coisas não melhorou devido ao que jornais da China escreveram em editoriais usando citações de Kenny como um argumento de "por que a Igreja deve permanecer sob o controle do Estado".
Kenny, que assumiu o cargo em março após o partido Fianna Fail, que dominava a Irlanda, ter ruído devido à crise financeira, foi acusado de oportunismo por alguns críticos. Mas sua posição como um católico praticante de uma área conservadora ajudou a dar peso moral ao seu discurso. E o tom confiante de seu novo governo foi recebido com aprovação generalizada por um país que se sente duplamente traído: primeiro pelo abuso em si e segundo, porque muitos veem o acontecimento como um encobrimento da igreja, agravado pelo uso da linguagem legal vaga com a qual ela se defende.
"Você pode discutir sobre a sutileza das relações diplomáticas e todas suas possíveis manobras, mas o que Kenny estava realmente dizendo é que você tem que priorizar as vítimas do abuso e você tem que dizer em alto e bom som que essa é um república e o direito civil tem de prevalecer sobre o direito canônico", disse Diarmaid Ferriter, professor de história moderna da Universidade de Dublin.
Embora a maioria não tenha abandonado a sua religião, muitos parecem ter deixado de lado o hábito de praticá-la. O arcebispo de Dublin, Diarmuid Martin, recentemente estimou que apenas 18% dos católicos em sua diocese têm participado da missa toda semana.
O governo anunciou que irá introduzir um pacote de novas legislações para proteger as crianças do abuso e da negligência, incluindo uma lei - considerada, mas rejeitada por ser demasiadamente controversa por governos anteriores - que obrigaria o envio de relatórios periódicos de evidências de crimes de abuso às autoridades. Ele também estabeleceu um grupo para analisar como remover o controle da Igreja de metade das escolas católicas do país.
Em uma entrevista recente, Eamon Gilmore, vice-premiê da Irlanda, disse que o país afirmou o seu papel como uma "democracia moderna". "A Igreja já não irá desfrutar de seus antigos privilégios e poderes como nos velhos tempos", quando efetivamente ditava a política social do Estado, disse.
"Historicamente, havia uma visão dentro da Igreja Católica de que ela seguia uma lei paralela, que tinha seu próprio sistema judicial e que essa era a lei pela qual era responsável ", disse Gilmore. "Isso no mínino atrapalhava a ideia da necessidade de plena conformidade com a lei do Estado."
Ele acrescentou: "A Igreja Católica tem todo o direito de ter seu próprio ponto de vista e suas regras e de ver as coisas de acordo com sua própria perspectiva. Mas isto é uma república. E existe uma lei."
Quando se trata de proteger as crianças, Gilmore disse: "Todo mundo no Estado - independentemente de serem cidadãos comuns apenas fazendo seu trabalho, ou um sacerdote ou um bispo - têm de cumprir e obedecer a lei ".
Por Sarah Lyall no Ultimo Segundo (original perdido).
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Texto resgatado com Wayback Machine.
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