quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

Heterogênese IX

Naquela noite, a lua estava oculta, era noite de lua nova. Mesmo nosso décimo homem não pretendendo ser um sacerdote das Trevas, uma vez que só as Luzes precisam deles, foi-lhe concedida paz, nessa paz pode afogar suas neuroses primitivas e, somente então, foi visitado por Lilith.
Envolta por seu fogo negro, tal qual veste cerimonial, trouxe uma solução muito interessante para o homem:

-Inquietação, tormenta e insatisfação diante das regras. Não é castigo, tão pouco vergonha, é um privilégio saber duvidar e criticar, apontar as falhas e os erros, procurando uma solução melhor e mais justa. Muitos dentre os homens fizeram isso, transformando e inovando o jeito de ser, estar, ver e agir no mundo de tantas formas sutis ou explícitas. Isso tem lógica e é venerável, visto que tudo foi feito do Verbo dos deuses, estes o torcem, invertem, pintam, modelam ou esculpem, refazendo o Verbo, refazendo todo um mundo a ser visto. Isto se chama Arte, são os feiticeiros do verbo e da forma, são poetas, pintores, saltimbancos, escultores e modeladores do barro que dão forma, como deuses, a criaturas. Mas os autores a deixam livre, para viver na cabeça dos admiradores de sua obra, de acordo com a compreensão individual.
Ao invés de responder e repreender o ceticismo, pergunte, questione e faça sua questão transformar-se em arte, que caiba a cada um que a vir, dar a resposta à sua dúvida. Quanto melhor for sua dúvida, sua arte, mais próximo de nós estará, sem precisar de leis, proteções ou sabedorias fajutas acerca de nós, do oculto, das Trevas.

Tal é como deve ser, o homem aberto às experiências e a experimentos, para ser distinto dos animais, para ser engrandecido por sua arte, para evoluir e realmente poder afirmar sua superioridade sobre os seres. Não pela força, pela loucura, pelo fanatismo, pela ganância. Até que compreenda isso, enquanto o Homem fica confuso diante de sua real função, cairá na desgraça causada por suas mãos. Crie quantas leis quiser, faça-se rei de seus semelhantes, extraia quantas riquezas quiser, sacrifique a terra e a vida, quantas vezes achar-se no direito. Depois não adiantará pedir a um poder divino superior para aliviar o castigo, pois tem a capacidade de ver e raciocinar, sabe que a ruína é consequência dos seus atos. Acha, sentado em seu opulento e portentoso trono, que está isento, mas qual carrasco escapa de cortar-se com o próprio machado? Seja digno de sua inteligência e capacidade de visão, não se deixe enganar mais por palavras bonitas e falseadas, não siga mais os profetas, não se submeta a reis. Tudo que aqui se encontra na terra, à terra pertence, sem divindade ou hierarquia, isso só existe enquanto se continuar cego e tolo, achando que isto o tornará forte e protegido das adversidades. Cabe à Arte e aos artistas, evitarem isso.

sábado, 7 de janeiro de 2017

Apostolado profano III

Essas estão aqui feitas, quase tão perfeitas de um momento raro dessa minha vida miserável, desse mundo medíocre.

Foi pela ocasião de um noivado de casamento marcado de famílias aparentadas de mim e me vi então intimado a comparecer para que fosse eu o orador da celebração.
Cada qual parente do noivo e da noiva receberam seu quinhão do dote tendo em troca dado essas tais mercadorias que se dão a recém-casados.
Vendo-me tão afundado nesse suborno das consciências, necessário para que se perdoe o excesso de confiança entre os noivos e que por uma instituição, se lhes permitam desfrutar desses direitos matrimoniais, então recém-adquiridos, chego a uma idéia tal que vai encantá-los também.
No que me chegou a parte de receber meu quinhão, reservei-me um instante da noiva em lugar afastado e creio eu que ambos ficamos igualmente satisfeitos com o que nos demos e trocamos pela festa, roubando a dor primeira do noivo, que terá sua pequena e mesquinha vez de devorar estas carnes em precedência a mim. Só espero que minha parte não a tenha feito tão feliz que venha a sentir falta, mesmo em companhia de seu noivo e eu tenha de ensiná-la porque a fiz tão sacra neste momento profano a essas instituições da consciência.
Dessa noite guardo essas máximas que trocamos nos poucos minutos de descanso que nos dispusemos a nos oferecer tanto e tão caro desejo.
No que me resta em observação secundária, só lhes é dado saber que é nesses momentos em que se alcança sabedoria sublime e plena, de mente aberta e fluida. Não será muito surpreendente se viermos a aprender mais com nossa amante, uma mulher distante em ocasiões normais, por horas afinco, embora tenhamos a pretensão de sermos os mestres de uma ciência tão deliciosa e envolvente.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

O sonho de Rhea

A chegada de Cronos e Enki ao voltarem à Cidade dos Deuses foi um misto de incredulidade e maravilhamento. De improviso, os Deuses começaram a arrumar a festa de boas vindas. Para Enki, não para Cronos. Afinal, Cronos era um que havia preferido viver na periferia. Cronos tinha escolhido manter sua posição como rejeitado, renegado. Ele teve a oportunidade, mas preferiu se perder em seus sentimentos de rancor e mágoa. Ele simplesmente retornou ao seu lar para cuidar de suas feridas.

Em sua casa, Cronos foi recebido por Phoebe, Selene, Thetis e Rhea com cânticos de vitória, guirlanda de louros e muito vinho. Mesmo com essa recepção, carinho e amor devotado por quatro Deusas, Cronos não dissipou seu rancor e mágoa. Mesmo tendo três das mais belas Deusas dançando voluptuosamente em sua homenagem, mesmo estando nos braços de Rhea, sua esposa, Cronos tinha fechado seu coração ainda em mais trevas, em vinganças, em violência, em morte.

- O que houve, meu Rei? Por que teu coração está tão turvo?

- Minha amada, se eu pudesse te contar o que eu vi e vivi, teu coração também ficaria coberto com uma sombra.

- Eu sei como dissipar essa neblina que cobre teu coração, meu Rei.

Rhea apanhou o cetro de Cronos e o inseriu em seu mais sagrado templo, sendo efusivamente aplaudida por suas irmãs. Cronos sorriu com essa situação inusitada. Ele, tão acostumado a batalhas, ao enduro, à resistência, ao confronto que podia durar horas, não era capaz de travar esta batalha com Rhea por mais de meia hora. A tensão se esvai, esguicha como leite quente, vapor, espuma, sopa. Por alguns instantes Cronos compartilhou da felicidade ingênua e despreocupada tão comum entre os Deuses.

- Meu querido, meu Rei, enquanto estiveste longe eu tive um sonho estranho.

- Ora, querida, tu percebes uma sombra em meu coração mas não é capaz de ver uma no teu? Que truque é este?

- Não é truque, meu Rei, é um sonho, não é uma sombra. Um Deus que eu nunca tinha visto visitou-me em sonho e me mostrou o que havia de vir. Eu vi a ti, meu Rei, matando e devorando aos Deuses! Horrorizada, antes de despertar, o Deus desconhecido me disse que aquilo que desejardes e fizerdes a teu pai, sofrerá de teu próprio filho.

As trevas no coração de Cronos cresceram e apertaram seu coração. Ele levantou-se quase possesso. Quem poderia saber de seus planos? Ele não tinha contado a ninguém, nem para Rhea. Quem era esse Deus desconhecido? Como, com que poder, ele poderia ver o coração de Cronos?

- Diga-me, querida, como era esse Deus desconhecido?

- Eu não o vi muito claramente, pois ele parecia estar envolto pela floresta que nos rodeia. Mas ele era alto, tanto quanto Anu. Ele parecia ser tão jovem quanto tu, meu Rei, mas ao mesmo tempo mais antigo e mais sábio do que Anu.

- Por acaso era tão peludo quanto as bestas da floresta e de sua cabeça brotavam dois chifres, tão incandescentes quanto a lava?

- Meu querido Rei, conhece o Deus? Leve-nos até ele para que dancemos para ele.

A sugestão de Rhea conciliava com a intenção de Cronos que desejava questionar pessoalmente ao Deus da Floresta Negra. A dança das Deusas poderia propiciar o Deus ao favor de Cronos e para avisá-lo das torpes intenções de Anu. Caminhando por vias secundárias para evitar passar pelos demais Deuses que ainda estavam celebrando a volta de Enki, Cronos levou as quatro Deusas até o ponto na floresta onde havia encontrado o Deus.

- Meu Senhor! Eis aqui vosso servo! Eu vos peço que ouça o que tenho a vos contar.

Novamente houve um silêncio seguido de um intenso pulsar e a impressionante aparição do Deus da Floresta Negra. O comportamento das Deusas alterou-se de forma impressionante. Elas começaram a apalpar e a alisar suas partes macias, suas dobras, suas reentrâncias, entregando-se ao arrebatamento do êxtase.

- Meu filho! Vieste visitar-me agora com presentes para perfumar e adoçar o meu dia?

- Meu Senhor! Nós viemos para alertar-vos dos reais interesses de Anu.

- Meus queridos! Acham mesmo que Anu, vosso rei, tem efetivamente tal poder e autoridade que vós lhes atribui? Saibam vós, meus filhos e filhas amados, que a nenhum Deus foi ou será dado a coroa do universo. Nem mesmo o rei está acima das leis que este promulga. Nem mesmo um reinado de medo perpetua-se sem que haja vontade.

- Então, meu Senhor, eu posso desafiar o destino e ter uma sorte, uma fortuna diferente para meu futuro?

- Tenham respeito e reverência, não temor. Sonhos e oráculos são avisos, não sentenças. Useis vossa força e coragem, dificuldades e obstáculos virão, mas não esmoreceis, para merecerdes os louros.

- Meu Senhor! Eu vos agradeço pelas orientações. Partimos com sossego e tranquilidade no coração, mas antes vos pedimos que saibamos o vosso nome.

- Meu filho, para me conhecer é necessário conhecer os mistérios da vida e da fertilidade. Tu tens os mistérios da guerra e da irmandade. Um mistério não pode tomar o lugar de outro mistério.