O caro dileto e eventual leitor que tem acompanhado meus
textos até o momento merece uma medalha por ter me aguentado tanto tempo.
Parentes e familiares discordarão veementemente que eu falo demais. Quando eu
digo que “falo” demais, não é exatamente “falar”, mas escrever. Que droga, é
apenas uma metáfora.
Um texto tem diversos níveis de interpretação, mas
basicamente há o significado conotativo e o significado denotativo. Ser
escritor em um país semialfabetizado ou com analfabetismo funcional não é
fácil. Ter algum diploma do nível superior é um privilégio. Esta é minha benção
e maldição: eu sou um escritor, eu gosto de escrever e eu tenho uma excelente
redação desde o ginasial.
Ser escritor com um mercado editorial medíocre, com tantos
autores e livros de baixa qualidade fazendo sucesso, com as facilidades
oferecidas pela internet, qualquer um deve achar que escrever é fácil e que tem
capacidade de escrever. Ainda não inventaram reality shows para isso, mas não
faltam pessoas sem noção que acham que são cantores/atores/comediantes e se
prestam a desfilar o despreparo dos pleiteantes e a decadência que está a nossa
cultura.
Escrever não é fácil, não é simples. Eu não estou falando
apenas em ter cuidado com as regras da ortografia e da gramática. Eu me refiro a
algo que muito suposto escritor, famoso, celebridade, sucesso de vendas,
traduzido para muitas línguas, esquece: escrever necessita estudar sobre o que
vai escrever. Um bom escritor é um excelente leitor. Um bom escritor passa
horas em bibliotecas, faz inúmeras anotações, consulta diversas bibliografias,
tem ao menos algum conhecimento acadêmico. Se você acha isso pedante, elitista,
arrogante e presunçoso, eu não posso fazer coisa alguma. Algo não vai deixar de
ser e ter as características que tem apenas para te agradar ou te confortar.
Eu sei que o ser humano é muito inseguro a ponto de precisar
ser reconhecido, aplaudido e aceito. Então é natural que o ser humano tente
adequar alguma coisa para que isto se encaixe em suas necessidades. O que me
leva aos temas deste blogue: Paganismo, Bruxaria e Wicca. Antes de apontar para
o elefante na sala, uma breve digressão.
Um dia eu ouvi de uma drag-queen algo que faz muito sentido.
Todos nós “montamos” um personagem. Para funcionarmos nesse mundo, nós
representamos diversos papéis e diversos personagens, conforme a situação. A
vida é uma peça de teatro e a rotina é nosso palco. Fingimos, encenamos, sem
roteiro, sem “fala de deixa”, sendo atores, protagonistas ou coadjuvantes. Cada
uma dessas nossas facetas é parte de nós, todas são ambas tão reais quanto
ilusórias.
A Cultura de Massa ajuda a construir esses personagens e os
papéis que devem encenar. Isto é o que Jung chamou de Inconsciente Coletivo. Os
personagens e seus papéis formam o que Jung chamou de arquétipo. O problema é
que a imagem que a Cultura de Massa transmite é sempre um exagero, uma
generalização e um estereótipo. Eu vou utilizar alguns exemplos.
O cinema consagrou a figura do “cowboy”. Baseado em um
exagero, uma generalização e um estereótipo do vaqueiro que desbravou o oeste
americano, a figura do “cowboy” foi disseminada em uma cultura, uma época e um
público que simplesmente ignorava a realidade e a história do desbravamento do
oeste americano. Para a cultura americana, um homem que vive pela “lei da arma”
pode fazer todo o sentido, a não ser que você seja o “índio”, outra figura que
foi construída em torno de um exagero, uma generalização e um estereótipo que
chega a ser uma ofensa aos verdadeiros nativos americanos. Este é o lado ruim
da Cultura em Massa, que é reforçar e reproduzir uma cultura dominante, com
seus preconceitos, discriminações, privilégios e elitismos.
Elitismo é quando uma cultura reforça e sustenta algum tipo
de supremacia de um pequeno grupo que detêm o poder e a influencia social sobre
outro grupo que é frequentemente oprimido e reprimido pelo sistema. Quando os
afrodescendentes não tinham seus direitos civis reconhecidos, a sociedade
achava normal e engraçado piadas racistas. Assim também os chineses, os
japoneses, os judeus, os muçulmanos, os homossexuais e as mulheres são vítimas
de abuso moral.
Então quando uma expressão cultural tinha uma origem não
ocidental [como kung-fu e artes marciais em geral], a Cultura de Massa tratava
de distorcer, se apropriar da imagem e vesti-la em um personagem com traços
mais ocidentalizados. Isso é apropriação cultural e isso aconteceu também com
as crenças e religiões de origens orientais, foram transformados em pastiches
vazios para o consumo.
Assim se constrói a imagem do herói: a Cultura de Massas
reveste a imagem de um personagem ideal que represente o sistema dominante,
atribuindo a este os valores morais maniqueístas, dúbios e discutíveis da
sociedade. O inverso é também verídico, a Cultura de Massas trata de construir
a imagem do antagonista do sistema vigente e a este personagem se atribui todos
os males que existem e são parte do sistema. Como estamos em uma cultura
capitalista ocidental cristã, fica fácil apontar os personagens antagonistas: o
imigrante, o judeu, o muçulmano, o comunista, o herege, a bruxa.
Aqui cessa a digressão e eu posso começar com o tema deste
blogue: Paganismo, Bruxaria e Wicca.
O termo “pagão” foi utilizado pelos Estados cristãos para
estigmatizar aqueles que ainda seguiam as crenças antigas e ganhou o sentido de
pessoa irreligiosa ou supersticiosa. Mas ser pagão não é, necessariamente, ser
descrente ou irreligioso, como dizem os cristãos e acreditam os ateus. Mesmo os
pensadores da Antiguidade que são, erroneamente, apontados como sendo
descrentes, irreligiosos ou “percursores” do ateísmo, não podem ser
identificados assim, pois no máximo eles criticavam a forma como as pessoas de
sua época definiam o divino, não que eles não acreditavam em Deuses.
Quando intelectuais da Renascença redescobriram os mitos da
Era Clássica, o Ocidente começou a resgatar suas origens e raízes, como uma
forma de contestar a Igreja, como uma forma de acabar com o monopólio e tirania
do Vaticano. O Movimento Romântico do século XVIII começou a construir o
chamado Paganismo Moderno tendo como modelo as ideias da Renascença. Na Era
Moderna, o Movimento Romântico tornou-se parte da Cultura de Massas e chegamos
na Era Contemporânea com uma imagem distorcida do que seria a religião antiga,
uma imagem baseada no exagero, na generalização e no estereótipo do que seria
“pagão”.
Então qual era a religião deste tempo que na Era Moderna é
chamada de Paganismo Moderno? Falando especificamente da Idade Antiga, as
religiões tinham algumas características em comum: a religião era tanto privada
[familiar] quanto pública [cívica]; a religião era politeísta e cada Deus/a
tinha seu próprio templo, mito/mistério e sacerdócio; havia datas religiosas
festivas marcando eventos e estações; havia a preocupação com ritos fúnebres e
rituais aos ancestrais; havia diversas formas de oráculos; haviam diversas
crenças e práticas populares que podem ser chamadas, grosseiramente, de
simpatias. Ao contrário do que se costuma afirmar publicamente, a religião
antiga estava igualmente presente na cidade e realizava sacrifícios animais.
A religião antiga estava gradualmente desaparecendo, mas o
golpe final aconteceu quando o Império Romano instituiu o Cristianismo como a
única religião oficial, banindo toda e qualquer outra forma de prática, crença
ou religião. Pela força das espadas e dos exércitos, a Igreja ganhou de mão
beijada o monopólio espiritual de todo o mundo conhecido. No entanto a
imposição de um único credo oficial não foi absoluta, o Estado e a Igreja tiveram
que ceder espaço para algumas crenças antigas e a população resistiu aos dogmas
da Igreja através da folclorização do Cristianismo. Mesmo que na forma de
sincretismo religioso, o folclore conservou muito da religião antiga, um
folclore que manteve suas expressões em datas festivas e religiosas que antecedem
ao Cristianismo.
Foi depois de uma crise de fé, causada pela Peste Negra, que
surgiu deste caldo folclórico as primeiras tentativas do mundo ocidental em
recuperar suas raízes e origens. Como o Estado e a Igreja impunham o
Cristianismo como a única religião oficial e verdadeira, então a conclusão era
a de que estes grupos eram compostos de hereges, cristãos que tinham se
desviado da Santa Doutrina da Igreja. Assim nasceu o Santo Ofício, que
compreende tanto o tribunal eclesiástico quanto o tribunal secular e disto
surgiu a Inquisição: procedimentos de identificação, denúncia, acusação,
torturas e assassinatos de milhares de inocentes por terem cometido o único
crime de crerem em algo diferente.
O Santo Ofício organizou e formou um tipo de policia politica
que tinha como única função localizar, investigar e perseguir os chamados
hereges. Nestes relatórios surgiu a imagem da bruxa, o personagem que
justificou um dos maiores morticínios da humanidade cometidos em nome de Deus.
O discurso oficial refletiu o folclore e a crença popular que conservaram os
resquícios da religião antiga. Mas quem eram essas mulheres que enfrentaram os
tribunais sob a acusação de serem bruxas e de praticarem bruxaria? O que era
considerado bruxaria? Pelo discurso oficial, eclesiástico e secular, a bruxa e
a bruxaria consistiam ora de uma heresia, ora de uma patologia mental. Tanto no
templo cristão quanto no templo cientifico, a bruxa era continuamente
torturada, desumanizada, assassinada.
Quais eram os crimes que a bruxa era acusada? Os tribunais
listavam contra a bruxa as mesmas acusações que se fazia contra o herege.
Outras acusações eram consideradas mais graves, como a feitura de poções, a
criação de um espírito familiar, a de frequentar assembleias e a de ter feito
pacto com o Diabo. Curiosamente, padres da Igreja, intelectuais e nobres
fabricaram os famigerados “grimórios”, livros de bruxaria, com certas práticas
e rituais que eram executados em círculos muito restritos. De certa forma as
ditas “sociedades secretas” nasceram destes grupos compostos de padres,
intelectuais e nobres. Muito do que se definiu e se define como bruxa e
bruxaria carrega consigo o folclore e a religião popular, o discurso oficial e
os apócrifos livros de bruxaria. Foi esta mistura que, com a chegada do
Movimento Romântico e a Era Moderna, começou a dar forma ao que seria chamado
de Bruxaria Moderna.
Quem abriu a porta da civilização capitalista ocidental
cristã para o ressurgimento da Bruxaria com uma imagem diferente, positiva, organizada
e estruturada foi o britânico Gerald Gardner que, com a ajuda de outros
colaboradores involuntários, deu forma e corpo à primeira religião britânica: a
Wicca. O único pecado de Gardner foi que ele procurava, deliberadamente,
publicidade nos meios de comunicação de massa, um contrassenso ao princípio de
sigilo que depois provocaria em seu grupo o primeiro cisma. Até hoje criticado
e desacreditado, Gardner conseguiu transmitir tanto aquilo que ele aprendera de
uma tradição britânica e familiar de bruxaria, como seu próprio tempero
composto de ocultismo, esoterismo, franco-maçonaria e rosacrucianismo. Seu legado,
invejado e jamais equiparado, influenciou tudo mais o que surgiu depois dele e
de sua Wicca.
Eu vou pular a descrição da Wicca exatamente porque eu tenho
vários textos sobre isto e há uma concorrência desleal divulgando a imagem que vem
da distorção e da apropriação originada da Cultura de Massas. Eu vou pular também
a explicação de que esta distorção e apropriação começaram na América do Norte,
como frutos da Contracultura, com todo o florescimento das religiões
alternativas. Eu vou direto ao ponto que quebra as minhas pernas. A Wicca se
tornou tão bem sucedida que, enquanto religião e algo tão humano, expandiu, transbordou
e transcendeu muitos limites e fronteiras. Muitos grupos e tradições, tanto de
paganismo moderno quanto de bruxaria moderna, influenciam e são influenciados
pela Wicca. Alguns são pedantes em criticar a Wicca, mas sua estrutura e
rituais são um reflexo da Wicca. Alguns são arrogantes em se equiparar com a Wicca,
mas lhes faltam linhagem e ortopraxia.
Se o caro dileto e eventual leitor é um pagão, bruxo ou
wiccano [mesmo que por auto proclamação] e se sente ofendido com isso, por favor,
me poupe da mesma ladainha que eu estou cansado de ouvir.
Wicca não é elitista porque não há uma relação de
supremacia. Nenhuma tradição ou grupo de paganismo, bruxaria e wicca arroga a
si como sendo o único caminho, o único certo, o único verdadeiro.
Wicca não é privilegiada porque o que mais tem recebido
atenção do público é a Religião da Deusa. O que acontece muito é que grupos de
pagãos ou de bruxos acabam se identificando ou usando a Wicca como rótulo para
se apresentarem em eventos, congressos e rituais coletivos.
Wicca não é sexista porque os covens são matrilineares e
matriarcais, a base da sua estrutura está na Alta Sacerdotisa. O Grande Rito
pode parecer sexista para grupos diânicos feministas radicais, mas para a Wicca
o sexo é sagrado.
Wicca não é homofóbica porque reconhece o sacerdócio de todas
as pessoas que tiveram o devido treinamento e iniciação dentro de uma tradição.
Cada tipo de ritual tem sua função e razão. Ritos homoeróticos podem ser
consumidos como prática pessoal ou em algum grupo dentro da enorme diversidade
de tradições do paganismo.
Wicca não é intolerante porque não arroga a si autoridade
suprema. A Wicca apenas vai sustentar sua ortopraxia. Cada tradição tem sua
característica, com suas práticas, seus rituais e requisitos. Toda tradição tem
seus limites do que é permitido para a celebração de seus mistérios. Intolerância
é impor ou forçar uma tradição a abrir mão de suas regras.
Se assim mesmo você sente que a Wicca não se encaixa no que
você acredita, não se desespere. Você não precisa ser wiccano para praticar a
Wicca. Você não precisa ser admitido em um coven, passar pelo devido
treinamento e iniciação para ganhar reconhecimento, aceitação ou permissão para
seu caminho, suas práticas e crenças. Você não precisa sequer entrar em um
coven para buscar o mistério, a sabedoria e a comunhão com os Deuses. Tudo o
que você precisa está dentro de você mesmo. Siga seu caminho, siga sua bênção.
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