terça-feira, 2 de setembro de 2014

Tentação ou iniciação?

Eu acabei de ler O Anti Édipo de Gilles Deleuze e Felix Guattari. Um livro que é excessivamente hermético, repetitivo e uma contradição ao título. O que mais os autores falam é de Édipo sem, no entanto, propor uma forma de exorcizar ou superar Édipo.

Resumindo o livro, o Complexo de Édipo é a raiz dos problemas, tal como Freud descreveu, dos recalques e das repressões sexuais, usando o personagem da tragédia grega. Para Deleuze e Guattari, Édipo tornou-se um totem e ficamos tentando resolver a esfinge ao invés de resolver a causa do enigma. Para a psicanalise, tudo se resume ao triângulo [amoroso] contido na tragédia de Sófocles, onde a raiz do problema do neurótico, do paranoico e do recalcado é essa relação mal resolvida entre uma figura paterna e o amor proibido por uma figura maternal.

Eu vou dar um desconto a Freud, visto que essa leitura do mitopoético como meras figuras arquetípicas é uma característica fundamental da psicologia e da psicanálise, como podemos perceber nos trabalhos de Carl Gustav Jung. Eu recomendo aos pagãos modernos, estudantes dos mitos, das religiões antigas, que leiam o original.

A tragédia de Sófocles nos conta da saga da Dinastia dos Labdácidas, uma geração amaldiçoada por causa da profanação de Lábdaco ao santuário de Dioniso. A tragédia de Sófocles é uma crítica ao poder conquistado por um usurpador, quando Lábdaco morreu, o trono de Tebas foi tomado pelos tiranos Anfião e Zeto. O legitimo sucessor, Laio, foi exilado na Frígia, onde conheceu e enamorou-se por Crisipo, o príncipe herdeiro.

Para viver seu amor, Laio armou um plano: ofereceu-se para escoltar o rapaz até os jogos de Neméia, onde ele iria participar como atleta. Após as competições, em vez de retornar à Frígia, Laio raptou Crisipo e fugiu para Tebas, onde pretendia recuperar o trono de seu pai. Furioso, Pélope perseguiu-os, mas Crisipo, temendo a humilhação e a punição do pai, além de instigado por seus meio-irmãos Atreu e Tiestes, cometeu suicídio atirando-se num poço. Por ter perdido o herdeiro, Pélope culpou Laio e lançou sobre ele uma maldição: se tivesse um filho, seria morto pelo próprio e sua descendência sofreria consequências trágicas.

Laio continuou vivendo em Tebas, onde conheceu a jovem Jocasta (irmã do nobre Creonte) e se casou com ela. Após a morte dos tiranos Anfião e Zeto, Laio foi chamado pelos cidadãos a assumir o trono e, assim, a dinastia labdácida foi reconduzida ao poder. Por causa da maldição, tentou evitar ter filhos e, quando nasceu o primogênito, mandou furar-lhe os pés e abandoná-lo no Monte Citerão. Mas o bebê acabou recolhido por um pastor e batizado como Edipodos (o de pés furados), ou Édipo.

De acordo com a mitologia, a maldição de Pélope, conhecida como "Maldição dos Labdácidas" (a dinastia tebana iniciada com Lábdaco), foi concretizada quando o filho de Laio, Édipo, matou o pai e desposou a própria mãe, Jocasta, sem saber. [Wikipédia]

A sucessão do trágico destino da dinastia não foi uma consequência da profanação, nem da homossexualidade, nem do incesto. A trilogia trágica de Sófocles não tem interesse algum em explorar a sexualidade humana, seu objetivo é criticar a corte real, a aristocracia e a vergonhosa luta pelo poder.

Édipo não serve como modelo para a raiz dos problemas da humanidade com a sexualidade. Ele mesmo é um anti-Édipo, pois ignorava que a mulher com quem ele casou era sua mãe. A tragédia existe unicamente quando há a revelação pelo Oraculo de Delfos e o complexo existe unicamente quando acontece sua codificação pelo Oráculo de Freud.

O problema da civilização ocidental com a sexualidade vem de outra origem, nos mitos contidos no Cristianismo. Esse legítimo Frankenstein religioso tem em seu cerne a raiz dos problemas da humanidade, da civilização ocidental. O dogma e doutrina da Igreja estão cheios de puritanismo, sexismo, misoginia, aversão ao corpo, ao desejo, ao prazer e ao sexo. Na civilização oriental, as raízes dos problemas com a sexualidade estão nas outras formas de monoteísmo abraâmico, o Judaísmo e o Islamismo. Eu poderia exagerar e afirmar que o problema dessas religiões tem origem na necessidade obsessiva de possuir, de ter a Verdade. O próprio sentido de que estas crenças são baseadas em um texto sagrado supostamente inspirado ou ditado por Deus ignora que a mensagem é uma metáfora.

Freud não precisava recorrer aos clássicos da tragédia grega. Ele teria mais sucesso se remetesse o problemático e emblemático tabu do incesto entre o filho e a mãe [ou entre a filha e o pai] ao mito do Éden. A complexa e complicada relação entre Adão, Eva, Caim e Abel ultrapassa a tragédia de Sófocles. Adão foi criado pelos Elohim, como primeiro humano ele é pai e filho. O Livro de Gênesis em seu primeiro capítulo diz que tanto homem e mulher foram criados juntos. Seria isso uma metáfora que o primeiro humano era hermafrodita? No segundo capítulo do Livro de Gênesis, Eva foi retirada da costela de Adão. Adão, homem, deu a luz? Eva é a filha e a mãe, Adão comete incesto com a própria filha e gera Caim e Abel. Eva é a Mãe da Humanidade, então Adão cometeu incesto também com a Mãe. Se isto é bastante complicado, como podemos entender a Cidade de Nod e seus habitantes? Seriam eles os filhos de Eva com Caim e Abel? Isso deixa Freud e Édipo no chinelo. O curioso é que todos os dogmas e doutrinas da Igreja estão baseados no Pecado Original, outro mito que parece uma comédia diante dessa suruba primordial.

Descendentes e seguidores de Abraão, Isaac e Jacó tinham a necessidade de explicar ou racionalizar o problema do mal, do sofrimento e tiraram o pecado da cartola de Deus. Mas como encaixar o pecado na saga da humanidade se tudo foi criado por Deus? O recurso nada original foi o de escolher um bode expiatório, ou melhor, uma serpente, que ofereceu o fruto da Árvore do Conhecimento para Eva. Solução que suscita mais problemas, afinal, porque Deus criaria a Árvore do Conhecimento, a Serpente e colocariam ambos no Jardim do Éden, junto com Adão e Eva? Por que Deus seria contra o Conhecimento? Seria algum tipo de prazer sádico do Deus Bíblico? Ou será que os rabinos, ao reescreverem a Torah, tinham se esquecido da verdadeira origem e significado desse mito?

Os Judeus, os Muçulmanos e os Cristãos tentam racionalizar suas crenças sem êxito porque perderam há tempos suas origens, suas linhagens, suas ancestralidades e suas crenças originais. Todas as religiões monoteístas se originaram das antigas religiões politeístas, seus mitos, seus Deuses, seus mistérios e rituais.

O que mais podemos observar nas religiões antigas e nos mistérios antigos são Deusas Serpentes, árvores místicas e frutos entógenos na busca pelo Conhecimento. Também era muito mais comum na antiguidade que os templos eram liderados por sacerdotisas que eram responsáveis pela iniciação dos sacerdotes. Parece-me muito mais interessante ver Eva não como a causadora da queda da humanidade, mas como a suma-sacerdotisa que recebeu o Fruto do Conhecimento da Árvore do Mundo pela benção de uma Deusa Serpente, para o nosso bem e para completarmos nossa missão nesse mundo.

Um comentário:

Adília disse...

Gostei muito do seu texto, talvez um pouco denso e talvez a precisar de uma síntese final, mas de qualquer modo muito interessante.