Houve um tempo em que o desejo sexual transpôs os limites da espiritualidade reclusa. Os homens procuraram profanar os conceitos de virtude que os oprimia e aos quais se submetiam num próprio ato irreverente de maculação. Como poucas vezes, a interdição sexual teve a função de afrodisíaco. Era preciso degradar o fascínio do mal; espiritualizar o corpo e erotizar a alma. Para isso, nada como buscar o prazer na escuridão das celas dos conventos.
O demônio, que é um espírito e espírito soberbo, sem reverência pelos lugares sagrados, entrava nos claustros religiosos, passeava nos corredores e dormitórios e, por mais fechadas que estivessem as celas, se metia e morava nelas.
Antes de Cristo e um pouco depois, na Igreja primitiva, o sacerdócio feminino tinha assegurado o seu direito de oficiar. Mais tarde, a Igreja realizou suas inclinações patriarcais na criação do dogma e da hierarquia eclesiástica. Numa tentativa de transcender os instintos do ser humano, adotou a repressão, realizada através das promessas de condenação da alma. O inferno era inevitável para aqueles que se entregassem aos prazeres sexuais. A mulher, encarnação da volúpia, foi lançada a uma posição irrelevante e oculta na sociedade, ela mesma objeto de imprecação para afastar o mal. Ela viu usurpada a legitimidade de suas funções naturais de sedução, de sua força mágica de amar; foram envilecidos os prazeres que dela irradiam. Então, a ambivalência erótica surgiu de maneira surpreendente: a execração da mulher e a sua redenção.
Os tormentos do corpo
Em resposta à demonização do sexo, os instintos de Eros se manifestavam dentro dos mosteiros através de alucinações e extravasamentos, como o refinamento cruel da autoflagelação do corpo, os desfalecimentos ambíguos, as convulsões eróticas do êxtase, a homossexualidade e a heterossexualidade, com o testemunho do nascimento de bastardos.
A vocação religiosa não era um dos motivos mais importantes para se mandar uma mulher para o convento. A rebeldia, a sensualidade, o interesse intelectual, uma personalidade excessivamente romântica e apaixonada, um corpo demasiadamente atraente faziam com que se encerrassem moças nas celas úmidas dos mosteiros. Os homens mandavam para lá suas bastardas, suas amantes, as filhas que perdiam a virgindade, as estupradas, as que se apaixonavam por um homem de condição inferior ou de má reputação.
Ali reuniam-se virginais predestinadas e as arrebatadas jovens de família. Distanciadas da companhia dos pais opressores, desfrutavam de liberdade intelectual. Privadas da presença de homens, floresciam em sonhos românticos e fantasias sexuais. Nos conventos surgiram as escritoras, as amantes e as cortesãs.
A contemplação da mulher amada
Não era necessário grande beleza para se tornar uma preferida conventual nas artes do amor. Bastava uma certa doçura, malícia, sensualidade e as roupas religiosas, detrás de portas de ferro e janelas gradeadas, para arrebatar o coração de um homem.
Os verdadeiros adoradores de freiras eram platônicos. Esses devotos arriscavam-se aos severos castigos pelo prazer de tocar olhares amorosos com a desejada. Numa voluptuosa tortura, ansiavam pelo mistério e respeito, pela beleza oculta e inatingível, pelos sorrisos insuspeitos, pelos beijos incertos que o amor por uma monja poderia proporcionar.
A sedução era longamente desfrutada; a aproximação se dava num clima de excitação. Quase sempre homens e natureza sonhadora, eles flertavam, lançavam olhares suplicantes; enamorados, suspiravam, entregavam-se ao sofrimento. E seguida, iniciavam uma correspondência amorosa.
Frenesi de hordas e solitários
As freiras, no começo, não respondiam às cartas e apenas os mais persistentes prosseguiam até receber uma resposta. Ela o convidava, então, a assistir ao sermão. Quando abriam-se as cortinas do coro, os olhos não se desprendiam. Elas fruíam a volúpia de serem desejadas e admiradas; eles, a da violação do pudor feminino e do dogma religioso.
Os primeiros encontros se davam no ralo, quando podiam falar-se sem se ver. O freirático entregava-se à luxúria do amor impossível; com as mãos estendidas nas folhas de metal, colava os lábios nas cruzes douradas. Depois se viam na escuridão do locutório, recinto dividido por grades, onde as religiosas recebiam visitas. Ele tremia coma visão escura de um vulto feminino atrás das barras de ferro, murmurava, num jogo de amor lírico, sem resultados garantidos.
A musa libertina
Mas nem sempre os freiráticos ficavam do lado de fora dos conventos. Mandavam presentes, imagens de santos, presépios, capelas, aos que tinham as chaves das celas; subornavam abadessas, abriam suas bolsas aos padres, para desimpedirem o caminho em direção ao objeto desejado. Havia padres residentes que usavam seu trânsito nos conventos a fim de levar e trazer a correspondência dos freiráticos, com os tratos ilícitos. De noite, portões se abriam para que os amantes entrassem furtivamente; muros eram escalados, fugas eram empreendidas com escândalo, abadessas que criassem obstáculos eram ameaçadas com faca. Alguns se disfarçavam em hábito feminino para se insinuar nos corredores em busca da eleita.
As religiosas do convento tinham nas proximidades várias casinhas aonde iam, fora da clausura, com pretexto de estarem ocupadas a cozinhar e recebiam ali homens que entravam e saíam de noite. Nas celas, os catres rangiam, os corpos alvos das freiras suavam sob o calor dos nobres, estudantes, desembargadores, provinciais, infantes. Os gemidos eram abafados com beijos.
A doçura do amor e seus abismos
Muitos conventos tomavam por modelo o de Odivelas, onde as freiras tinham um ou vários amantes. Moravam em celas luxuosas, levavam uma vida ociosa em que se entretinham em ler, namorar e fazer doces.
Em certas manhãs, elas armavam do lado de fora do convento, um buffet de doces e pratos especiais. Naquele dia as ruas ficavam intransitáveis. Os portões se abriam e entravam os freiráticos. Descerravam-se as cortinas da grade de proteção e perante os homens apaixonados surgiam as religiosas. Aos poucos, elas iam abandonando o ar grave, cruzavam as pernas, tocavam violas e harpas, recitavam versos provocantes, riam, divertiam-se.
Depois da grade de doces, os freiráticos podiam encontrar-se com suas musas nos locutórios, mas não a sós, tinham que admitir a presença de uma gradeira. Antes do encontro, vinha uma monja confidenciar ao freirático que sua amada morria de paixão por ele. Depois entrava a desejada, tocavam-se as pontas dos dedos; ele segurava-lhe o braço; ela mostrava-lhe o pé, o tornozelo ou desnudava o seio, que ele acariciava, sob o olhar descuidado da sentinela.
Os freiráticos partiram em mil pedaços a divisão do corpo da mulher entre o céu e o inferno, abrindo caminho para que se iluminasse as trevas pecaminosas com que o platonismo cristão assombrava o paraíso dos amantes. A mulher pôde, assim, tratar de recuperar sua natureza feminina, atingir a plenitude de seu poder sagrado.
Fonte: “Que Seja em Segredo”, de Ana Miranda, pg. 5-14, ed. Dantes [com permissão].
Repostado. Texto originalmente publicado em 18/08/2008, resgatado com o Wayback Machine.
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