domingo, 5 de fevereiro de 2023

O sabá do sertão

Em 2001 na Bahia, o historiador e antropólogo Luiz Mott fez a transcrição de um documento que narrava os encontros noturnos de algumas mulheres com o demônio no Piauí colonial. O próprio autor disse que se tratava de um sabá. O texto constituiu-se das confissões da mestiça Joana Pereira de Abreu e da índia Gueguê Custódia de Abreu para o Tribunal do Santo Ofício. O documento também trouxe em anexo a confissão da branca Maria Leonor, que embora não tenha participado do sabá, faz algumas declarações da vida religiosa piauiense ao padre.

Em 2006, Mott escreveu um artigo sobre o caso para a revista Textos de História, chamado “Transgressões na calada da noite: um sabá de feiticeiras e demônios no Piauí colonial”. No artigo, o professor analisa com erudição o contexto do Piauí colonial, que já era objeto de suas pesquisas tanto no campo da religião, como em outras
áreas. Ele estudou com afinco as fazendas de gado da região e fez uma etnohistória dos índios locais, produzindo uma vasta bibliografia sobre o Piauí. Também se dedicou as “multiformes crendices populares” dos piauienses através de um levantamento das denúncias e dos processos inquisitoriais sobre feitiçaria dos pardos, mulatos, negros e mestiços que viviam por lá.

No final do artigo, Mott conclui que as confissões relatavam um sabá genuíno, com a reprodução perfeita dos elementos que caracterizavam as cerimônias europeias desse tipo, mas que também há nelas informações específicas do sincretismo luso-afro-brasileiro. Há, por exemplo, a interposição de elementos sintonizados com os calundus coloniais de tradição Bantu-Angola. Dessa forma, para o autor, as cerimônias sabáticas também foram reproduzidas na América Portuguesa, porém mescladas com outros elementos culturais. Além disso, o documento, para ele, não descreveu apenas práticas de bruxaria, mas também de sodomia. Joana e Custódia mantinham práticas sexuais com penetração anal com o demônio e também entre si durante os encontros do “congresso noturno”, o que para Mott caracteriza a existência de uma relação
homossexual entre elas.

O Diabo aparecia para essas moças, muitas vezes, em forma de um moleque preto, que foi traduzido por Mott como uma entidade dos terreiros de Umbanda, lembrando os “caboclos”, “pretos velhos” e outros seres encantados. Em dado momento, a índia Custódia, que já havia renunciado à fé católica, diz ao Diabo que quer se confessar e o demônio lhe responde que “na sua casa ele tinha muitos padres, que se não confessasse senão com eles”, dizendo que enviaria seus próprios padres “infernais”, por assim dizer, para fazer a confissão. Nessa passagem o demônio deixa claro que
possui seu próprio clero, sua “igreja” alternativa. Para Mott, o ato de querer se confessar representava o desejo da índia em ter consultas com seu sacerdote ou com entidades específicas, tais como fazem os filhos de santo, para receber os sagrados “passes” da umbanda.

O fato de essas moças reunirem-se a noite, igualmente, demonstrou para Mott uma relação com as cerimônias umbandistas, que, segundo ele, realizam até hoje rituais noturnos e sigilosos nos cemitérios, com a utilização de ossos e restos mortais. Por último, o professor termina revelando uma descoberta, o padre Gabriel Malagrida, que
percorreu os sertões do Piauí e deve ter encontrado por lá o jesuíta Manuel da Silva, diz-se ter reencarnado como um encantado da Umbanda depois da sua trágica morte como feiticeiro, o que consta em um site sobre Umbanda no Brasil.

Não se duvida que Joana, Custódia e Josefa eram praticantes dos calundus influenciados pelos rituais africanos, nem que mantinham práticas mágico-religiosas ou que invocavam demônios. Afinal, esses eram costumes
reproduzidos com certa regularidade pelos colonos portugueses, imersos em uma mentalidade híbrida, que confluía formas diversas de lidar com o sobrenatural. No entanto, questiona-se a hipótese desse sabá, tal como foi descrito, ter sido praticado por elas.
 
Como visto nos capítulos anteriores, havia uma grande tradição demonológica erudita desde o século XVI na Europa ocidental, que tendeu a demonizar as tradições folclóricas populares. Nas colônias americanas, do mesmo modo, os homens brancos enxergaram a cultura ameríndia, seus rituais e seus ídolos como obra do Diabo. A essa
altura, a África já era um continente conhecido e seus costumes heterodoxos também foram “traduzidos” na ótica de um mundo marcado por opostos. Como não eram católicos, não estavam ao lado de Deus, portanto, só poderiam advir de Satã. Para aqueles homens a alteridade significava um desvio de fé. No entanto, isso não significou, na prática, que a cultura cristã tivesse permanecido rigorosamente oposta as culturas africana e ameríndia. Ao longo da colonização, indígenas e escravos africanos ressignificavam seus sistemas simbólicos a partir dos novos contatos culturais
estabelecidos. Os europeus também sofreram transformações nos seus sistemas culturais. O resultado foi a formação de novas formas de religiosidade na colônia, notadamente híbridas.
 
Assim, acredita-se que o padre, como representante de uma cultura douta e letrada, “traduziu” as incompreensíveis e híbridas manifestações mágico-religiosas confessadas por Joana e Custódia no sertão piauiense, como um sabá. Adicionando
muitos diabos, orgias e metamorfoses aos depoimentos das moças. Foi possível, através das descrições, identificar em que momentos o padre interferiu de forma mais contundente nas falas e em que momentos ficaram abertas lacunas, preenchidas pelas crenças dessas mulheres. Informações sobre a trajetória de vida do padre e de José de Abreu Bacelar, rendeiro da fazenda das Cajazeiras, “cenário” onde tudo aconteceu, também foram, igualmente, reveladoras. Por último, foi necessário refletir sobre o fato da Inquisição não ter prolongado as investigações sobre o caso, que permaneceu encerrado nos Cadernos do Promotor.

Em 1758 na fazenda Cajazeiras da Gurguéia, localizada na Freguesia de Nossa Senhora do Livramento, o missionário jesuíta Manuel da Silva recolheu as confissões da mestiça Joana Pereira de Abreu, com 19 anos na época, e da índia Gueguê Custódia de Abreu, batizada, com 18 anos, ambas escravas do capitão-mor José de Abreu Bacelar.

Joana Pereira de Abreu era solteira, com 11 anos de idade e escrava de Antônio da Silva dos Santos, por alcunha chamado “O Pitomba”, residente na vila da Mocha, capitania do Piauí, quando conheceu uma mestiça forra, da mesma vila, chamada Cecília. A “Mestra Cecília”, como Joana a caracteriza no documento, foi responsável, juntamente com sua ajudante, Josefa Linda – mestiça e escrava da mesma fazenda - por lhe ensinar o dito “comércio com o demônio”. Oito anos depois, precisamente em 19 de abril de 1758, Joana confessou suas culpas ao padre Manuel da Silva que tratou de encaminhar o acontecido ao Santo Ofício. Na ocasião, devido à morte do seu antigo
senhor, a mestiça era moradora das Cajazeiras.
Alguns anos depois do acontecido em Mocha, os destinos de Joana de Abreu e Josefa Linda (não há a confissão dela, apenas referências constantes nas confissões de Joana e Custódia) cruzariam com o da pequena “gentia”, Custódia, na Freguesia de
Nossa Senhora do Livramento. As mestiças foram compradas pelo Capitão José Bacelar e logo trazidas como escravas para as Cajazeiras. Assim que chegou, Josefa mostrou-se muito amiga de Custódia e lhe contou alguns segredos, como as torpezas que cometia com um “homem” – que assumia a forma humana, mas não era humano – na vila da Mocha. Assim, prometeu ensinar tudo o que havia aprendido com o “sujeito” à índia, pois ele poderia trazer muitas vantagens a ambas. O ritual que Josefa propagou nas Cajazeiras foi muito semelhante ao que a “Mestra Cecília” ensinara, anos antes, à própria Josefa e à Joana Pereira de Abreu, na vila da Mocha.

Joana revelou ao Santo Ofício que parte da cerimônia de iniciação à “seita” da
qual participava consistia em esfregar as nádegas (prepóstera) na porta da igreja em
sinal visível de desprezo e afronta ao Corpo de Cristo, simbolizado pelo Santíssimo
Sacramento. A consumação da renúncia à Lei de Cristo e da comunhão com o demônio
se daria a partir da cópula anal, na qual um moleque a reconheceria na posição de quatro
pés pelas nádegas. O lugar de encontro, conhecido como “o Enforcado”, foi descrito na
documentação como um local de muitas covas de defuntos aonde foram enforcados
alguns delinquentes.

O vocábulo “tundá” também encontra significação no quimbundo, língua banto
falada em Angola, como imperativo do verbo sair, “sai!”. Para Luiz Mott, parece
referir-se ao termo “acotundá”, presente em cerimônias de matriz africana no arraial de
Paracatu, na região de Minas, em meados do século XVIII. Os integrantes do rito
participavam de uma dança, considerada diabólica pelas autoridades, em que adoravam
um boneco e pareciam entrar em transes, caindo no chão e dançando freneticamente ao
som de atabaques e tambores. Também proferiam nomes de santos e de Deus e usavam
a água benta, numa perfeita simbiose entre o seu Deus da nação Courá e o catolicismo.
As descrições lembravam os calundus, muito comuns e o caso, como tantos outros, não
despertou maiores repercussões na Inquisição. O termo “tunda” também possui
significação entre os negros do Equador, representando um ente fantástico feminino,
uma espécie de “duende” que espalha terror entre as crianças, fazendo travessuras e
pregando peças.

É bem possível que houvesse a circulação desses termos e designações por toda
colônia. O Piauí recebeu gente de quase todas as partes, e inclusive mantinha relações
comerciais estreitas com a região das Minas, onde surgiu a cerimônia do “acotundá”.
Não se sabe de que lugar vinham as mestiças Joana e Josefa Linda, a documentação diz
que Joana era “mestiça escrava de preto”.

Nos encontros noturnos realizados pelas mestiças Joana e Custódia estão
presentes quase todos os elementos descritos acima, exceto o infanticídio, defino pelos
inquisidores como a oferenda de crianças para Satanás. Os atos carnais eram feitos
através dos íncubos e súcubos que eram entidades demoníacas desencarnadas, o
primeiro ligado ao sexo masculino e o segundo ao feminino. Joana se encontrava com
“Tundá” para a prática de atos nefandos, mas não mencionava esses termos eruditos.

O diabo para Cecília era mais do que uma figura concebida na
constante oposição a Deus, conforme salientava a doutrina cristã, ele era a única fonte
de poder das suas crenças. Não era apenas o opositor de Deus, mas o seu próprio e
único mestre, seu Homem, independente da existência divina que desejava se desprezar
por completo.

Joana, após o primeiro rito de iniciação, encontrou-se várias vezes com o dito
“Homem”, sempre repetindo a mesma “ladainha” que mestra Cecília lhe ensinou,
batendo a “prepóstera” três vezes na porta da Igreja e abjurando de todos os
sacramentos e dogmas cristãos.

O beijo ritual anal era outro elemento comum nos sabás
europeus e também apareceu em algumas descrições de possíveis sabás portugueses.

A forma de contato e iniciação na qual se configurava o pacto com o demônio passava
por diversos atos carnais fora dos padrões cristãos previstos para a procriação. Destaca-
se nas confissões o sexo anal realizado com a mulher na posição de “quatro pés”.
Segundo o Malleus os diabos copulavam com as feiticeiras para reproduzir o vício da
luxúria e da carne, que tentavam os homens. Tal intento não era com vistas ao prazer, já
que os demônios eram espíritos, sem carne e sem sangue, mas para fazer com que os
homens ficassem sujeitos a todos os seus vícios.

O diabo, assim, assumia formas diversas e se transmutava em animais: cachorro,
bode, cabrito e cavalo. As descrições dos sabás europeus estavam repletas dessas
transformações das bruxas e dos diabos em animais. Segundo Ginzburg, nos processos
europeus foi muito comum que os acusados confessassem ter assumido,
temporariamente, a forma de lobos, protetores da fertilidade dos campos, e nos
primeiros testemunhos sobre o sabá, havia conexões muito fortes entre as feiticeiras e
os lobisomens. Ginzburg encontrou menções a homens capazes se de transformar em
lobos nos escritos de Heródoto, no século V antes de Cristo. Também, segundo o autor,
na África, Ásia e América foram localizadas crenças análogas, de tempos remotos,
referidas as metamorfoses temporárias de seres humanos em leopardos, hienas, tigres e
jaguares.

Nos tratados de demonologia europeus há descrições de mulheres que usam
vassouras ou simplesmente são levadas pelo vento para ultrapassarem as imensas
distancias até o sabá, que geralmente acontecia em lugar distante e ermo para assegurar
o segredo do pacto. Aqui, não se sabe se iam até a vila de Mocha usando dons
sobrenaturais ou se o demônio “lhes confundia a cabeça”, conferindo a ilusão de que
eram transportadas, outra possibilidade também presente no imaginário europeu.

Nos tratados demonológicos era mencionado o uso de unguentos que esfregados
no corpo das bruxas seriam capazes de permitir o transporte para o sabá501. As escravas
do Piauí não falam desses componentes, considerados por muitos historiadores como
“alucinógenos”. Porém, em várias passagens, como “vinha-me à cabeça a sugestão de
outra figura”, deixam transparecer que os contatos com o “Homem” diabólico não eram
físicos, mas sim frutos de experiências mentais. O próprio Malleus Maleficarum
discorreu, amplamente, sobre a capacidade do demônio em criar ilusões nas mentes dos
homens.

No sabá do Piauí a feitiçaria atingiu todas as “cores e castas”, o que realmente se
verificou, tanto no reino quanto na colônia. As práticas mágicas foram manipuladas ou
solicitadas por uma variedade de indivíduos, ricos e pobres, pretos, brancos, amarelos, pardos, mestiços e mulatos. Todos em busca de uma solução pragmática para suas
angústias.

Fonte:

O Sabá do sertão: feiticeiras, demônios e jesuítas no Piauí Colonial (1750-58). Carolina Rocha Silva. Citado parcialmente.

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