terça-feira, 21 de novembro de 2017

Heterogênese XIX

Eis que chega o dia do confronto entre o Espírito das Trevas e o Espírito das Luzes, quando o Universo, Pai de ambos e equilíbrio harmônico, julgará qual dos dois filhos foi mais bem sucedido na missão que lhes confiou.

O prazo, que o Universo concedeu a seus dois filhos para que provassem suas capacidades, está prestes a se consumar. Foi marcado que ambos deveriam mostrar seus feitos, quando a data de aniversário do surgimento de cada sol e cada planeta do Cosmo, coincidissem em um único instante.

Sabendo que não lhe restava muito tempo, que seus seguidores estavam divididos e que estava bem próxima a vitória do Espírito das Trevas na Terra, o Espírito das Luzes lançou um ataque de grandes proporções em ambos os níveis, tanto o material quanto o espiritual, pela reunificação total do Império das Luzes e a destruição do que consideravam o Mal, que estava representado pelo Espírito das Trevas. Deu a este ataque o nome de Apocalipse.

Entretanto, nunca o Espírito das Luzes foi superior ao Espírito das Trevas, por mais que este acreditasse. Como este ataque estava tomando dimensões assustadoras e estava mesmo com a intenção de aniquilar qualquer oposição, Leviathan, o Espírito das Trevas, convocou prontidão imediata de todos do Conselho das Trevas e dos espíritos das Trevas, pois a guerra estava declarada, embora todos preferissem evitá-la. Mas como o Império das Luzes tomou a iniciativa, cabe ao povo das Trevas o direito de defender-se e manter o Império das Luzes nos seus limites, senão a harmonia necessária para a existência do Universo estaria quebrada.

Embora pelo livro sagrado do Império das Luzes, chamado de Bíblia Sagrada, este Império fosse considerado mais forte e poderoso, portanto vencedor da luta, a verdade aqui se encontra, já que as Trevas não sentem necessidade de enganar ou falsear os fatos, já que esse é um método usado pelo Império das Luzes para garantir sua soberania sobre as mentes fracas dos humanos. Sabemos que as ações têm mais significado do que as palavras e justamente o Império das Luzes tem feito exatamente aquilo que condena.
Este é o livro das Trevas que será chamado de Crítica Sagrada que, como o próprio nome diz, as únicas coisas sagradas são as capacidades de criticar , de pensar e duvidar, capacidades que toda raça superior inteligente e racional deve ter.

Eu estava no exílio que a sociedade me trancafiou, junto com outros loucos por terem a audácia de reconhecer a superficialidade do Império das Luzes e da sociedade regida e controlada por eles. Ainda estava alheio a tudo, pois me concentrava em reescrever mais e melhor o Livro das Trevas.

Era uma bela manhã de domingo, com a rotineira visita de padres para realizarem a missa, a catequização e o recuperamento mental sadio dos internos. Algo mudou neste dia, eu até podia adivinhar porque. Pois os cardeais e um bispo, invadiram com uma centena de padres e freiras armados, o pátio do manicômio, sendo requisitada a presença de todos os internos. Isto foi rapidamente atendido, pois os enfermeiros e dirigentes faziam parte da sociedade normal e integrada ao Espírito das Luzes. Mesmo que não quisessem, teriam de fazê-lo ou serem metralhados friamente. Esta era a intenção daquele bispo gordo e ensebado, sentado num palanque, numa cadeira luxuosa, metralhar a todos nós, já que a loucura era sinal de possessão demoníaca, mas ele preferia dar uma chance aos internos.

Ficou claro para todos, para que tipo de missão esses santos homens representantes da Igreja vieram. Muitos começaram uma fuga desesperada, mas não havia saída. Logo foram cercados e postos a assar em uma imensa fogueira. Pude ver bem que os olhos de nossos executores faiscavam mais que as chamas, maravilhados com o poder que tinham, em prol da purificação do mundo.

Sabendo que, em breve acabaria também nas mãos destes carrascos, lancei um último e pesaroso olhar para meus amigos e enfermeiros. Foi justamente por isso que um deles me apontou, trazendo-me para perto do supremo assassino, nas vestes de um bispo.

Com presteza, armaram um cadafalso improvisado e um nó tosco em torno de meu pescoço. A forma do nó lembrou-me muito do que é usado em gravatas, embora as considere mais parecidas com coleiras humanas.

Veio o próprio canalha, para puxar a alavanca que acionaria a porta do cadafalso, debaixo de uma sombrinha de veludo vermelho, com os emblemas papais em dourado. Tudo por causa de alguns protestos dos internos, para que não se matasse o único com sanidade ali. O tumulto foi controlado pelos enfermeiros, especializados como uma tropa de choque no controle de comoções. Pela lógica, todo aquele que está no asilo, foi por causa de um mau funcionamento mental. Não poderia provar, agora que seria executado, de que fui afastado da sociedade, condenado a tal exílio, por uma conveniência: minhas obras desestruturavam o meio podre de viver da sociedade. E por uma conivência: de meus parentes em me entregar às autoridades, em troca de recompensa e prestígio social.

Meus ossos estavam para ser esticados neste estranho varal, para secar ao sol, quando a tarde feneceu, muito rapidamente. Logo chegam a noite e as sombras, parcialmente afastadas pelos holofotes elétricos, iguais aos que se usam em campos de futebol. Agora sim, minha execução virou um espetáculo circense, como qualquer execução o é.

O chão me falta. A cabeça estala. O corpo treme. Estou morto. Ainda assim, posso ver que, não contentes, perfuram meu corpo inerte com suas baionetas e bebem meu sangue, atirando o resto ao fogo.

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