Não sou o primeiro nem tão pouco o melhor, disse tudo o que poderia e já duvido de minhas próprias convicções, mesmo sabendo ser tarde para mudar. Reconheço a derrota, já estão muito bem adestrados a pensar de forma elementar e superficial. Já na juventude era difícil suportar a vida, os totalitarismos da moda e da sociedade jovem. Agora que velho e esfarrapado, acometido de um instante de lucidez e uma decisão derradeira, preparo meu réquiem ainda que não tenha autoridade para conversar ou operar com o oculto ou a sorte da minha alma neste.
Movido por uma confiança imensa, contra até os avisos de meus amigos, inicio minhas despedidas e a demanda de minha alma aos cuidados de minha Deusa Lilith, a Lua Negra, rainha da Noite, senhora da Morte, filha do Espírito das Trevas. Esposa de Samael, o Deus do Fogo Negro que consome o dia e traz a noite. Ela, que é a mãe de todos os filhos das Trevas.
Retorno ao lar para, diante de Ti,
Doce senhora minha e amarga,
Lei do encerramento do tempo,
Apresentar minha mortal pessoa,
Seu mero animal pensante e arrogante.
Estendido e deitado, eu estou de fronte,
Quase desafiando conjurar Tua presença,
Ofertando fogo e sangue por um punhal,
De uma alma forjada por engano, condenada
A ter seus dias de vida em tal época.
Posta a mesa, sirvo farta ceia,
Do dinheiro poupado com meu jejum,
Com delicias sacras e profanas, que rejeitas,
Evitando que eu lhe cobre a conta devida
Deste jantar pela minha reciclagem.
Dou-Te meu corpo para apodrecer,
Minha alma à disposição da forja,
Meu ser, refeito e melhorado pela tempera
Do Fogo Negro, tornando-me merecedor
De pertencer ao Teu reino, como demônio.
Para tanto, cozi um barro com Tua imagem,
Untei um punhal de prata com vinho de uvas negras,
Risquei linhas traçadas de encruzilhadas veladas,
Palavras escritas na pele nua em Tua consagração,
Preparando o peito para descerrar o golpe final.
Tais foram meus preparativos
Para apresentar-me a Teus olhos
Que, estarrecidos, acompanham o cortejo.
Não pode deter-me sem manifestar-Te
Que, prontamente estaria materializada.
Manifestando-te, terei uma parte de Ti,
Ainda que fugisse sem levar-me,
Não terias sossego até encontrar-me
E recobrar a parte Tua de mim,
Estar contigo é o que quero.
De minha ajuda precisaria ao perturbar o equilíbrio,
Movendo dois mundos para deter-me,
Com gosto desafiaria o Universo,
Assumindo Tua causa, minha senhora,
Não teria outra solução que não fosse a que desejo.
Pois daria meu sangue em profusão
Em Teu nome, para o Universo perdoar-Te.
O Universo perceberia minha paixão
E Tua natural preocupação amorosa.
Por Ele mesmo, eu seria refeito em Teu reino.
Não podendo deter-me, por não poder
Materializar-Te, sem que isso aconteça,
Realizando meu intento,
Não lhe restaria muitas alternativas
E ainda assim servir-me-iam muito bem.
Concluindo os ritos iniciais, começaria
A cantar-lhe o feitiço e já não poderia
Calar-me, pela força dessas palavras,
As quais foram-me confiadas
Pelos espíritos das Trevas.
Não os puna, pois como escritor
Sou bom ouvinte e orador,
Envoltos com perguntas e amizade,
Suas línguas os traiam, aos poucos
Roubei-lhes segredos irreveláveis.
Por estas palavras,
Colocaria meu rito em julgamento,
Não teria como não realizar,
Ou então me sacrificaria, o que,
Mesmo que apenas morra, é bom.
Parto de ser homem e limitado,
Abandonado, pisado por outros,
Nada mais quero com a vida,
Por causa disso que, simplesmente,
Peço que me aceite em Teu reino.
Morto, estou livre de sofrer mais,
Ainda que sem morada.
Uma vez no além não terá sossego.
Refeito, estou vingado e realizado,
Pois me tornei um dos teus.
Deixe então que teu Fogo Negro
Envolva-me e reconstrua-me,
Só assim me considerarei digno
De ser teu servo, como demônio,
Ainda que deva permanecer neste mundo.
Para melhor amar-Te, servir-Te,
Permita ser reforjado, minha alma
Sofrer pela Tempera do Fogo Negro
E meu pobre corpo acrescido, embora oculto,
Dos acessórios necessários a um demônio.
Bem que gostaria que houvesse
Outro meio de realizar-me,
Mas o único realmente funcional
Não é outro que este arriscado,
Que chega a ser uma ofensa.
Bem sei que Teu poder é imenso,
Poderia fulminar-me num instante,
Poderia fazer com que nunca nascesse,
Poderia ter escolhido outro qualquer,
Até mesmo um imbecil mais submisso.
Mas Tua memória não seria mais a mesma,
Não teria o prazer de ver acabar-me,
Tentando descrever, como um cego, o que não vejo,
Não terias como te deliciar das minhas carnes,
Que por viver pensando, tornam-se uma delícia.
Pensar não só transforma aos poucos
A matéria em energia que move a pena,
Cerrando a energia dentro de palavras,
Como também recupera o soro
Extraído de outras palavras feitas.
Quanto mais reflito, mais escrevo,
O que necessariamente requer leitura.
Mais ainda meu pensar sorve o soro
Que, fluindo na matéria, a torna suculenta,
Mais ainda minha energia torna-se carnuda.
Nenhum outro poderia ser assim,
O soro é o vinagre amargo da crítica,
A matéria é o osso duro da dúvida,
Quantos suportariam tanta carga,
Que não quem já os praticava?
Eu sou Teu melhor escritor,
Sou a grande ceia servida a Ti,
Uma boa mesa não se abandona,
Um bom prato é consumido lentamente,
Para que melhor se possa sentir seu sabor.
Estou dispondo-me a Teus olhos
E ameaço a Ti de estar privada de mim,
De não permitir mais que me devore,
De que aprecies aos poucos meu sabor,
De que delicie com o orgulho que Te dou.
Vês como meu amor por Ti
Leva-me a cometer tais loucuras,
Justo contra minha senhora,
A quem ofereci meus serviços
E dispus meu destino nas mãos?
Queria tanto poder cantar Tuas maravilhas,
Mas não me permite vê-La,
Escreveria Tuas glórias e vitórias,
Mas não marcho junto a Ti,
Apenas por minha mente posso supô-La.
Quantas vezes mais preferia estar contigo,
Tanto que peco nesse ritual profano,
Dirigindo-me a Ti em tais termos,
Que antes de proveitosos são ofensivos,
Provocando forças incontroláveis e instáveis.
Tanta perturbação, para um pedido tão simples,
Como de uma criança mimada,
Fazendo teima para ganhar um presente,
Tanto desperdício do Teu tempo,
Para meu desejo mesquinho.
Rasgo minhas carnes,
Com o primeiro centímetro
Desse punhal de prata ungido,
Por um vinho de uvas negras,
Meu primeiro passo para a perdição.
Pareço ouvir Teu murmúrio,
Que reclama por paz,
Meus ouvidos ressoam doidos,
Ao eco sinóico da Tua voz,
Que fragmenta minha alma.
Refeito do choque, recomeço,
Repetindo as palavras certas,
Que Te comova e opere meu intento,
Trazendo-Te mais próximo,
Para melhor corromper-Te.
Mais um gole do raro vinho
E encerro mais um pouco
Do punhal dentro do meu peito,
Donde já brota fresco rio sangrento,
Que lhe ofereço para brindar.
Torno a provocar Tua memória,
Com palavras dadas em confiança,
Para ter Tua obra escrita,
Enquanto tenta dissuadir-me,
Com miragens monstruosas.
Tais aberrações não são demônios,
Mas a idéia religiosa sobre estes,
Feita para melhor imperar as luzes,
Bebo mais do vinho pela ruína da luz
E logo, mais o punhal adentra em mim.
Finalmente meu corpo lateja,
Minha alma queima
E já quase não posso falar-Te,
O vinho torna-se amargo
E mais iminente se torna o desfecho.
Enquanto a febre ataca-me por inteiro,
Tenho a certeza de ver mais,
Mesmo não tendo mais os olhos,
Devido a uma brincadeira sórdida da morte,
Que torna sábio até o mais imbecil na hora final.
Profiro tenebrosa risada,
Abafada pelo sangue,
Que invade e toma toda minha boca,
Mesmo sabendo ser eu o alvo do riso,
Que a brincadeira causa pelo ridículo.
Torno a reclamar e beber,
Dando a mim mais um pouco
Da lâmina do punhal,
Que já estala na minha costela,
Derrubando-me por terra.
Momento traiçoeiro de cansaço,
Não estou morto ainda,
Nem terminou a encomenda,
Mas minhas forças fogem
E minha mente tenta arrepender-se.
Calando meu racionalismo,
Com instinto e a vontade,
Ergo-me e disponho-me novamente,
Embora a febre faça meu corpo inteiro tremer
E, já lacrimejo e suo sangue.
Agora só consigo murmurar
E a taça parece pesar como um rochedo,
Descerro mais a lâmina, que já acaricia o coração,
Enquanto meu sangue espuma, fazendo pressão,
Como se fosse água de fonte sulfurosa.
O ar sufoca e perco o fôlego,
Meus músculos retesam e endurecem,
Minhas costas arrepiam e arquejam,
Meus olhos saltam das órbitas
E meus ouvidos zunem.
Já que estou quase imobilizado,
Utilizo o peso do meu corpo,
Por sobre a lâmina, contra o chão,
Para dar a estocada final,
Dando término ao ritual.
O que parecia o fim
Mal deu a um prólogo,
Um trovão parece trespassar-me,
O chão dilui-se e começo a flutuar,
Boiando em águas de densas trevas.
Tive então a impressão
De estar passando pela minha vida,
O peso dos erros, a elevação dos acertos,
Cada um e todos eles premeditados,
Para que eu viesse a ser o que sou agora.
Bruscamente a viagem termina,
Estou no meio de um picadeiro,
Feito com areia fina e branca,
Como não via há muito tempo
Nos litorais de belos mares.
Estou circundado por tronos,
Cada qual com seu rei,
Não que sejam soberanos,
Os tronos sempre existiram,
Mas ficam vazios sem ter quem os mereça.
Cada trono tinha seu brasão,
Todos eles muito familiares a mim,
Não era senão o Conselho das Trevas
Que estavam ali para medir meus atos
E sentenciar-me pelo erro de provocá-Los.
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