quinta-feira, 22 de junho de 2017

A obsessão de Saturno

Os vapores do vinus dissiparam-se e Saturno despertou do sono dos ébrios, sentindo um gosto ruim na boca e a cabeça latejando. Nós chamamos de ressaca e a associação dos efeitos posteriores do consumo excessivo de álcool com o movimento das marés não é coincidência. Povo do mundo, sabei de uma vez por todas que não existem coincidências, o acaso ocorre porque também faz parte do universo, da natureza.

Saturno percebeu que estava só e logo imaginou que seu irmão Urano deveria estar cortejando Gaia, sua esposa. Saturno, ao invés de correr atrás de Gaia, foi em busca de Ceres. Povo do mundo, que vive uma vida sem cor, sem sabor, sem alegria, vós nunca entendereis e manifestareis o real significado da palavra Amor! Vós que misturais agendas pessoais em vossos sensos hipócritas de moral, não tem competência para censurar os Deuses!

Enquanto Saturno procurava por Ceres pelo castelo, chamado de Olimpo, ele recordava-se de sua infância e que os poucos e raros momentos de paz, tranquilidade e conforto foram sempre os que ele passara ao lado de Ceres. Os caprichos do Destino e da Fortuna conduziram Saturno até o jardim onde Ceres estava tão entretida com suas bestas domesticadas que nem se deu conta do sumiço de Gaia. Dentre estas, certamente um casal de nossos ancestrais compartilhavam desse cativeiro dourado, mas mesmo assim nós não fomos notados e não podemos condenar Saturno.

- Saudações, Ceres, minha irmã.

- Pater Saturno, não são belos meus bichos?

- Hã…sim…adoráveis. Querida irmã, devia estar fazendo coisas melhores e maiores. Se vier comigo, tu será a Deusa Mãe, aquela que será reverenciada pelas gerações como a Deusa desse mundo.

- Pater Saturno, o que está me propondo é ousado, perigoso e traiçoeiro. E onde tua esposa Gaia entra nesse seu grande plano?

- Gaia não tem a vitalidade e a juventude para tal cargo. E não é segredo algum que Urano a queria e eu a ti. Então nós temos que acertar as coisas e fazer justiça.

- As coisas são como são, como devem ser. Nós aturamos o que nos desagrada, como diz Urano e, para ser sincera, eu não suporto a ele tanto quanto a ti. Vós, Deuses, meninos, são todos iguais, são apenas estorvos.

- Considere então como isso pode ser consertado se tu, Ceres, tomar o lugar de Antu.

- O que diz? Isso é mais que ousadia, é blasfêmia e heresia. Cuidado com o que deseja, Saturno.

- Pois aguarde meu retorno e te mostrarei que nós, meninos, não somos estorvos, nós temos nossos méritos.

Saturno partiu do Olimpo, deixando para trás Ceres, Urano e Gaia no luxo, rumo ao seu funeral, atravessando por perigosas escarpas entre trilhas, por montanhas desconhecidas. Ceres disse a verdade em sua reação juvenil, temperamental e imatura demais para se importar com tudo isso. Como num péssimo roteiro, Urano e Gaia ressurgem no jardim como se nada tivesse acontecido, para chamar Ceres para o jantar e ninguém lamentou a ausência ou a partida de Saturno. Este, seguindo as instruções de espíritos locais e o impulso da fúria de seu coração, chegou na entrada do santuário de Python e, com suas emoções confundidas com as lembranças da temível Ninmag e a desgraça de Urânia, o poderoso Saturno hesitou. De dentro do santuário surgiu a figura da Pithon, em corpo e altura, semelhante a Ninmag, mas suas cores eram verde, dourado e amarelo.

- Adiante-se! Apresente-se! Mostre-se amistoso e visite-nos em paz e conforto, pois somos o vosso igual.

- Eu perambulei pelas sombras deste mundo por muito tempo. Eu, Saturno, filho das estrelas, venho aqui para humildemente pedir à grande Pithon que me mostre a luz.

- Nobre Saturno, siga-nos e mostraremos o coração, a magia deste mundo.

A Pithon levou Saturno até a fenda sagrada onde, diz-se, o Espírito deste mundo habita e dali Ele sai, trazendo a vida. A visão terrível que Saturno viu foi semelhante à de Enki, pais matando filhos, filhos matando pais, mães devorando sua prole. Mas, ao contrário de Enki, isso não perturbou o coração de Saturno.

- Diga-me, Pithon, como faço para recuperar as relíquias de Anu?

- Mesmo diante da tragédia desejas prosseguir?

- Para viver sem sonhos e com medo é melhor morrer.

- Então não queres vir para a luz. Sonhos que se realizam são justos, os que não, são caprichos do orgulho cego.

- Então mata-me agora.

- Nós fazemos sacrifícios por dever sagrado, jamais por apetite ou vingança. Para ti, damos a rota para o teu destino. Tu terás de humilhar-se mais e pedir a ajuda daquele que mais odeia.

-Este é um enigma ou um jogo? Eu devo arriscar-me em um caminho perigoso e desconhecido contando com a ajuda de quem mais odeio?

- Este é o preço que deve pagar. Não temes a violência e a morte, mas teme este que odeia?

- Jamais! Aquele fedelho nunca foi uma ameaça, apenas uma irritação.

- Então nos traga teu maior desafeto, pois o destino dele está ligado ao teu.

Cada vez mais decidido, Saturno recoloca seu elmo, sobe em sua montaria e, dispensando até sua comitiva, parte sozinho até a região chamada de Anatólia, onde aquele que ele chamou uma vez de filho, Cronos, deve estar escondido em exílio. Povo do mundo, guardem este nome no coração, pois esta é uma das regiões sagradas que ocultam nossas origens.

Saturno não teve dificuldades para encontrar Cronos pois ele, como todos os Deuses das estrelas, estava construindo uma cidade para dar início à uma civilização. Povo do mundo, o nome dessa cidade era Troia. Lembrem-se de Roma, de Atenas, mas jamais se esqueçam de Tróia. Cronos não demorou para sair dos portões de sua cidade com sua armadura completa e espada em punho para enfrentar Saturno.

- Ora, ora. Enfim, aprendeste algo útil. Vamos, guarde essa faca antes que te cortes. Nós temos negócios a discutir.