terça-feira, 20 de setembro de 2016

O sonho de Enki

Enquanto Enki e seu grupo trabalhavam duro para satisfazer a ganância de Anu, cinco jovens Deusas observavam de uma distância segura a movimentação frenética na região proibida das terras baixas.


Elas estavam acompanhando os jovens Deuses há algum tempo, com certa ansiedade e expectativa, enquanto eles marchavam em direção à Terra Negra. Uma delas, Ninlil, ficou particularmente apreensiva quando Enki ensaiou os primeiros passos nas terras baixas. Anat percebeu que ela estava transtornada e resolveu quebrar o silêncio fúnebre.


- O que aconteceu, Ninlil? Suas faces róseas perderam a cor, sumiu o seu sorriso fácil, uma nuvem paira em sua cabeça. O que perturba teu coração?


- Cala-te, Anat! Não te emociona ver nossos irmãos caminharem para a morte?


- Não é teu amor fraternal que te consterna, Ninlil. Eu te vi diversas vezes suspirar, quando olhava e falava de Enki.


- O que espera que eu diga? Que eu gosto de Enki? Qual de vós está aqui que não seja por estar preocupada com seu amado? Quem pode me condenar, censurar, repreender? Quem pode proibir, cercear, conter o amor? Maldito seja aquele que tornar o amor em vergonha.


- Ora, não precisa ficar tão brava! Veja, Enki está passeando em cima das terras baixas. Nada aconteceu a ele!


Ninlil volta sua atenção a Enki e sente como se um peso caísse de suas costas. De canto de olho percebe que suas irmãs também parecem estar mais aliviadas. Então ela tem uma ideia.


- Irmãs, vejam que eu estou certa. Nós todas temos bons motivos para estarmos aqui. Façamos nosso acampamento aqui, assim poderemos acompanhar os nossos amados e ajudá-los em segredo.


De imediato, as jovens Deusas concordaram com um estrondoso clamor de alegria, o que chamou a atenção dos jovens Deuses. Estes contentes, perceberam que não eram de todo desvalidos e renegados. Secretamente cada um levava em seu coração a atração, o interesse e o amor por uma dessas Deusas. O burburinho e a proximidade delas foi a melhor paga que poderiam ter.


Os trabalhos seguiam, dia a dia, noite a noite, por sete dias inteiros, sem cessar, para então os Deuses descansarem ao sétimo dia, como sempre fizeram desde tempos imemoriais, celebrando o sabbatu em memória de antigas Deusas, cujos nomes se perderam nas brumas do tempo, mas os Deuses se recordam delas como mães dos Deuses. Com a providencial ajuda das jovens Deusas, na noite de Sexta, todos comeram e beberam em homenagem às Deusas mães. Depois os Deuses e Deusas foram até o acampamento para cada qual compartilhar o leito. Dormiram, por fim, após algumas horas de ginástica intercorporal.


Naquela noite e nas seguintes, Enki foi assombrado por um pesadelo com uma Deusa desconhecida lhe falando e mostrando o futuro sangrento que aguardava os Deuses.


- Enki, o Habilidoso! Assim te chamam os Deuses. Breve, muito em breve, tu terás a devida oportunidade de me levar à tua casa. Nunca esqueça de teus votos, Enki!


A voz desta Deusa estranha surtia um efeito inesperado e constrangedor em Enki. Sentir a presença dela era como se Enki estivesse diante de Ninlil e de Nana, mas como uma mesma Deusa pode acender o amor filial e o amor erótico ao mesmo tempo?


Cenas perturbadoras do futuro dos Deuses, com pais matando os filhos, filhos matando os pais, mães devorando sua prole. Mas o que mais o aterrorizava era uma criatura, escura e pequena, que surgia e se espalhava como praga, a todo consumindo e dominando, tomando até o lugar dos Deuses. Ao acordar assustado, viu que Ninlil também não teve sonhos agradáveis e ambos guardaram segredo de seus pesadelos.


Os trabalhos prosseguiram até sua conclusão quando só então Enki pôde receber em seu acampamento Anu e sua comitiva. Os Deuses puderam admirar boquiabertos a obra de Enki e Anu tratou de realizar a inauguração da Cidade dos Deuses com toda formalidade e cerimônia. E Enki pôde observar, petrificado, uma terrível sombra pairando sobre a coroa e a cabeça de Anu.

domingo, 18 de setembro de 2016

Heterogênese V

Ao sair de sua caverna, junto de Samael para conhecer seus ministros, amigos verdadeiros e leais, chegou do leste um corvo, grande como uma coruja, forte como águia, inteligente como só um corvo poderia ser. Pousou no ombro de Lilith que; por obra de seu Pai, o Espírito das Trevas; de sua língua desenrolou-se um papiro, que continha a notícia da perdição de seu rival, Adão e da sua desgraça, por causa dos filhos que teve com Eva, a serviçal dele, já fora do Éden, nestas palavras testemunhadas pelo corvo:

-O Deus de Adão formou de uma de suas costelas outra mulher de nome Eva, para fazer-lhe companhia. Eva, já grávida, comeu o fruto da Luz, comendo assim da carne deste Deus e fez com que Adão também cometesse o mesmo erro.
Deus sentindo o erro e a culpa em suas crianças, com sua carne em seus ventres clamando por justiça, expulsou-os do Éden, deixando-os à própria sorte. Por ter sido alimentado pela Luz, como também por estar fora do Éden, o feto de Eva desenvolveu-se muito rapidamente, dois meses antes da expulsão e sete depois, sendo portanto considerados carnais os sete últimos.
Foi assim que, na noite do sétimo dia do sétimo mês, que veio a nascer o primogênito que foi chamado de Caim, cujo significado é: aquele que veio do pecado original.
Depois deste, somente sete anos depois, no nono dia do nono mês, nasceu Abel que significa: o preferido da Luz. Assim Caim logo teve que partilhar o rebanho e a colheita com Abel, a quem cabia a melhor parte, já que era o preferido. Abel tratava dos carneiros e das árvores frutíferas, Caim tratava dos bodes e das ervas rasteiras. Como não podia competir materialmente com Abel, Caim se esmerou em ter uma mente privilegiada com raciocínio e reflexão. Em suas considerações, começaram a surgir dúvidas, a respeito da unicidade como homem de seu pai, a respeito da existência do Deus dele, perguntava-se para quem esse Deus mostraria a importância da sua obra em detração a outras atribuídas ao demônio.
Entre seus bodes e cabras, perambulando entre as montanhas, como se perguntasse a elas, com os olhos, qual a razão de tanto mistério. Por causa de uma cabra desgarrada, desceu até um vale, até então proibido por ser considerada morada de demônios, lá ficou conhecendo outras tribos,outros povos e homens que, evidentemente, eram como ele.
Satisfeito, com uma série de questões resolvidas provisoriamente, quis partilhar com seu irmão a descoberta. Este, porém, preferiu matar-se, diante do simples fato de haver outros homens que não seu pai ou outros deuses que não o seu. Adão em loucura igual à de Abel, atribuiu a culpa a Caim, que foi banido e amaldiçoado. Caim, por mais que estivesse magoado, logo esqueceu da injustiça paterna, pois foi morar junto aos povos que descobrira e criara forte amizade.