No mesmo dia em que Lula, eleito pela terceira vez como presidente da República no pleito 2022, foi diplomado e defendeu a livre orientação sexual como um dos pilares fundamentais da democracia, a cantora Liniker, pela noite, esteve no centro do Roda Viva para revelar como a poesia e a música lhe fizeram reexistir.
Sempre que acompanho discurso de políticos para os quais destinei o meu voto, surge uma ansiedade pelo momento em que eles vão falar sobre nós, no caso, as LGBT+. A primeira vez em que vivenciei tal experiência foi durante o discurso de vitória de Fernando Haddad, quando conquistou o cargo de prefeito da cidade de São Paulo, em 2012. Em plena Avenida Paulista e embaixo de chuva, Haddad prometeu uma cidade mais justa para as mulheres, pessoas negras e LGBT+. Foi lindo, foi emocionante.
Escutar Lula defender a livre orientação sexual com um dos pilares da democracia nem deveria ser surpresa para mim, pois, tenho a memória de quando, em seu segundo mandato, o presidente eleito discursou na abertura da I Conferência Nacional GLBT, em 2008 (a sigla seria alterada durante plenária no encontro nacional).
Ao discursar para milhares de LGBT+ reunidas em Brasília, Lula nos contou que havia enfrentado muita resistência entre os seus conselheiros, pois estes temiam que a ida do presidente ao nosso encontro geraria conflito com os setores mais conservadores. Ao comprar essa briga, afirmou que era preciso criar o Dia Nacional de Combate à Hipocrisia. Emocionadas, fomos abaixo. É preciso registrar: impossível esquecer as imagens daquele encontro e tudo o que foi produzido a partir dali.
Logo no primeiro bloco de sua entrevista ao Roda Viva, na TV Cultura, a cantora Liniker me fez chorar, especificamente quando falou de tudo aquilo que a estrutura normativa retira das vidas LGBT+, e retira ainda mais quando são vidas negras, travestis e transexuais.
O roubo do qual fala Liniker, me remeteu para o fim da adolescência e começo da chamada “vida adulta”, especificamente entre 2002 e 2004, e quando ingressei no movimento LGBT+ por meio de um amigo. Nunca vou esquecer quando participei pela primeira vez de uma reunião do Fórum Paulista LGBT, que reunia organizações que lutavam pelos direitos civis das pessoas não héteras de todo o estado de São Paulo. Era um domingo, centro de São Paulo, fazia muito calor, o meu amigo não foi e lá estava eu entre as lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e não-binárias. Após passar todo o domingo escutando e aprendendo, ao voltar para casa pensei: “alguma coisa está acontecendo”. E estava.
As LGBT+ do Brasil experenciavam pela primeira vez na história a execução de políticas públicas de dentro do Palácio do Planalto nos mandatos de Lula (2002-10) e Dilma Rousseff (2010-16). A partir do Ministério dos Direitos Humanos foram executados os programas Brasil Sem Homofobia, Plano Nacional de Políticas Públicas LGBT, a Coordenação Nacional de Políticas LGBT e o suporte para espalhamento dos Centros de Referências, que se tornariam vitrines em variadas regiões do país.
Sim, alguma coisa estava acontecendo e se movendo. No meio desse caminhar de transformações tivemos a eleição de Fernando Haddad à prefeitura da cidade de São Paulo e instituição do Programa Transcidadania, que hoje tem tudo para se tornar uma política de cunho nacional. A Parada do Orgulho LGBT+ da capital paulista se tornou algo gigante e seu modelo se espalhou por todos os cantos do estado paulista, bem como pelo Brasil.
Com a ascensão das redes sociais houve um encontro considerado dos mais importantes para o sucesso de ações políticas: o encontro das ruas com as redes e com a opinião pública. Pessoas LGBT+ que jamais teriam espaço nos meios de comunicação passaram a criar as suas comunicações com grande capilaridade. A imprensa tradicional passou a ser pressionada, o seu alfabeto teve de ser atualizado e os cadernos de Polícia e Saúde não mais nos interessavam, a não ser que fosse para tratar de alguma conquista ou de algum crime bárbaro contra a nossa comunidade.
Ainda que com interesses capitalistas, as comunicações de massas e seus respectivos produtos culturais também passaram a abordar as vidas não heteras. Com erros e acertos nossos corpos passaram a ocupar espaços. É fato que em um primeiro momento nos restavam os horários noturnos ou “programas especiais”, mas não tardou e lá estávamos no horário nobre e em programas de audiência relevante.
Mas daí você pode argumentar, “se manca, tudo isso não passa de interesse financeiro e político/eleitoreiro”. Sim e não. Só podemos trabalhar com paradoxos. O resultado financeiro de um produto cultural depende do interesse do público, que o consome; o resultado político depende de pressão, ocupar espaços e vias públicas e transformar isso em sufrágio. Ou seja, há uma transformação de mentalidade em curso na sociedade brasileira – mas em outras partes do Ocidente também -, e isso explica, em partes, a violência da extrema direita no século XXI, a retomada dos discursos de pânico moral e “fiquem longe das escolas e das crianças”.
Retorna para a diplomação de Lula e a entrevista de Liniker ao Roda Viva: o presidente eleito declarar a livre orientação sexual como um dos pilares da democracia, e a cantora Liniker declarar o fim de um governo podre que fez apenas produzir violências contras as LGBT+ são resultados de um processo histórico que teve início na segunda metade do século XX e ganha inclinação a partir de 2002.
Lula é hoje uma versão melhorada de Si no que diz respeito às questões sexuais. Liniker é uma das faces do ponto de inclinação das pessoas não heteras, que apesar de toda a violência produzida pela hetero-norma, ascenderam. No mesmo dia, em horários distintos, Lula e Liniker, duas vidas que consolidam uma enormidade de significantes do Brasil, estavam no centro produzindo e espalhando desejos, motivações e vontade de transformação.
Se pensarmos no processo histórico e refletirmos sobre aspectos da sociedade que estão em transformação, podemos dizer que há no horizonte uma revolução sexual em curso. Sim, possuímos os piores índices de violências contra as mulheres, negr@s, LGBT+ e indígenas, mas também nunca tivemos tantas pontas abertas e favoráveis para construirmos caminhos distintos pela frente.
As pontas ainda estão soltas, mas que pontas são essas? 1) econômico, 2) sócio/sexual e 3) o digital. Os pontos 2 e 3 seguem em transformação de maneira simultânea e deve ser pela vida do sócio/sexual e do digital que o Econômico será transformado. Até porque, a maneira como o modo de produção capitalista se encontra hoje não é mais sustentável, principalmente em sua fase atual, marcada pela profunda acumulação de riquezas. Por exemplo, não é aceitável que durante a pandemia o número de pessoas famintas tenha aumentado, enquanto a concentração de riqueza se aprofundou.
Aqui, Lula e Liniker devem ser pensadas como símbolos potentes de um Brasil que não aguenta mais ficar escondido. De um lado e do outro há resistência contra os poderes normativos que persistem e insistem em eliminar todo o tipo de vida que visa transformar a sociedade, principalmente quando essas transformações envolvem o sócio/sexual e o econômico.
A revolução sexual segue em curso no século XXI e tem contribuído para uma imensa transformação da linguagem, do estético e do imaginário. Agora cabe descobrir como fazer o encontro entre o sexual e o econômico. Esse é o ponto de virada das próximas décadas.
Fonte: https://revistaforum.com.br/opiniao/2022/12/14/lula-liniker-revoluo-sexual-no-seculo-xxi-128676.html
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