sexta-feira, 4 de outubro de 2024

A banalização do mal

por Marcelo Siano Lima.

De tempos em tempos, o mundo político é motivo de cobiça por parte de pessoas que se apresentam como outsiders. Regra geral, são pessoas com um discurso antissistema, um elemento capaz de provocar ilusões nas massas, que possuem a tendência de transferir seus sentimentos de frustração e de rancor para os atores políticos. Para essas massas, esses atores têm uma representação que enfatiza as constantes práticas de corrupção, de privilégios, de mandonismos, nepotismo, patrimonialismo e toda uma constelação de fatores que, manipulados, criminalizam a política.

O goiano Pablo Marçal, com sua candidatura à Prefeitura de São Paulo pelo PRTB, está dando corpo a um novo paradigma na política brasileira. Marçal, seguindo o figurino já roto, apresenta-se como um outsider, como alguém que adentra o universo da política imbuído dos mais nobres propósitos. Essa estratégia visa aproximá-lo das massas, especialmente dos setores mais acometidos pelo sentimento antissistema, que têm no Estado e em seus representantes uma projeção de inimigos a serem banidos da cena pública.

Mas Marçal é uma pessoa ardilosa, aliás, como todos os que se apresentam como estranhos ao corpo da política. Com Marçal, avançam sobre o espaço público a “economia da atenção” das redes sociais, a figura do auto intitulado coach, do influenciador digital com milhões de seguidores, com uma competência indiscutível na manipulação de toda a gramática dos ecossistemas desse universo. Ele vai ocupando de maneira espalhafatosa o universo político brasileiro, se impondo como um elemento de alta visibilidade e influenciando toda a vida social e política. Sua face pública é a de um empresário dos mais bem-sucedidos na comercialização de sua imagem e de produtos pelas redes sociais. Mas há outra face, obscura, que vai sendo revelada um pouco a cada instante dessa campanha. É aquela que liga Marçal a um histórico de atos criminosos que já o levaram, inclusive, à condenação judicial: crimes cibernéticos, os mais variados, praticados, também, contra pessoas idosas. Vão sendo evidenciados, ainda, todos os liames que apontam para suas ligações com o Primeiro Comando da Capital (PCC), a principal organização criminosa do país, com forte presença em diversos ramos da economia. O goiano, que se diz evangélico, influenciador digital, é um homem de relações perigosas, pois.

Há um misto de espanto e incômodo nos partidos e nos atores políticos diante do aparente ineditismo desses novos personagens, repetindo-se o mesmo comportamento das eleições de 2018, quando Jair Bolsonaro (PL) se firmou a grande liderança política, ceifando candidaturas ao centro e a direita. Mas essa é uma reação natural, haja vista que tais atores não advêm desse universo digital, nem por ele são amparados, não entendem sua gramática e muito menos se capacitaram para desfrutar das maravilhas ilusórias que ele projeta, as quais vão se tornando perigosamente materializáveis na exata medida da aderência de grandes parcelas da população a candidaturas como as de Marçal. Um tipo de candidatura com comportamentos e agendas adversas à institucionalidade, aos princípios e ao modus operandi da democracia liberal.

Assim, reações como as de incômodo e espanto passam a exalar certo odor de ingenuidade e, mesmo, de comprovada incompetência e despreparo diante do novo que há anos vem se desenhando diante dos olhos da humanidade: o universo digital e suas profundas transformações. Marçal e outros seres oriundos da mesma fonte não são “pontos fora da curva” no processo político, mas, sim, a afirmação de um novo padrão de comportamento. São tipos de novos atores que estão ingressando na política sem nenhuma participação na vida social e seguem agregando em si todos os símbolos e princípios de um imaginário propenso, desde sempre, a libertar-se dos pretensos controles e pactos que uma democracia liberal estabelece para quem almeja protagonizar algum papel em todo o espetáculo político, no seio de uma sociedade de massa, cada vez mais tomada por sentimentos individualistas, narcísicos e de propensões disruptivas.

Esses seres acionam no imaginário os valores contidos ao longo de séculos ou décadas, dependendo da dinâmica histórica de cada país: que o advento da democracia liberal e da luta pelos direitos humanos foi construído de forma sempre conflituosa. São os princípios considerados pétreos aquilo que passa a ser questionado por tais seres oriundos do ecossistema digital, e não a sua preservação e expansão. Para tanto, têm a necessidade, ou melhor, o imperativo absoluto a ser perseguido: a revogação desses princípios, ou sua ressignificação total, adequando-os àquilo que ecoa das redes e dos interesses obscuros de quem as manipula. Como observam José Luis Bolzan de Morais e Edilene Lobo, “o jeito de agir é expulsar o diferente, difundir o preconceito e excluir a dialética da vida coletiva, em busca da homogeneidade que afasta minorias e enclaves críticos, reforçando o discurso autoritário” (A democracia corrompida pela surveillance ou uma fake democracia distópica, Editora Tirant lo Blanch, 2019).

Vai se desnudando, de forma progressiva e acelerada, para o deleite de alguns, e para o espanto e desespero de outros, uma força irresistível no campo da política, aqueles paradigmas e princípios oriundos das redes sociais e de todo o seu ecossistema, na sua busca incessante por engajamento, lacração, likes e lucros, como observa o professor João César de Castro Rocha.

Mas, dado o caráter prismático do ser humano e das sociedades, e particularmente dos seres cuja visibilidade superexposta advém das redes sociais, nem todos podem ser classificados como pertencentes ao segmento de Marçal e sua farândola. Estes, no que é legítimo, movem-se do projeto econômico e narcísico vivenciado nas redes e, respaldados por milhões de seguidores, almejam dominar a arena política, trazendo consigo todo um imaginário autoritário e que dissimula seus reais interesses – nem sempre lícitos. Isso, na expectativa de tomar de assalto a esfera pública, reproduzindo o seu locus, o do universo digital e dos interesses inauditos, colonizando-a a partir desse prisma.

O cinema e a literatura, há anos, traduzem na ficção esse movimento, que, nos últimos tempos, vai se metamorfoseando em uma realidade distópica, de grande sensualidade para milhões de pessoas, seduzidas por sua gramática e por sua estética, bem como pela ilusão de sucesso, um elemento cada vez mais valorizado na economia simbólica dos tempos atuais.

Parasitários no corpo das sociedades e dos seus padrões de vida e de relações políticas, esses seres vão drenando a energia dos hospedeiros, até que saiam do seu interior, sempre de forma espetaculosa, suprimindo a vida, agora inútil, dos corpos dos quais se alimentaram até então. Aí reside o grande perigo para todo um modo de vida e suas instituições. A incapacidade de luta dos organismos hospedeiros contra os parasitas em seu corpo leva ao seu desparecimento, pois o ser parasitário só se expõe em púbico na medida em que mata o seu hospedeiro. Uma morte que não é movida pela vingança, mas pelo desprezo que possuem em relação àquilo que os levou dentro de si, cuja utilidade precisa ter um fim mortal.

No caso das democracias liberais, a gramática de seres como Marçal e outros prioriza, por basear-se em princípios autocráticos e de estabelecimento de uma ordem pautada na inexistência de regras comuns e consensuais, um retorno ao estado natural de Hobbes, foca no aniquilamento do hospedeiro, incompatível para existir na realidade distópica que eles estão a erigir. E isso sob o olhar encantado de milhões de outros seres, algo que gera aderência e comprometimento com a nova causa, considerada catártica e purificadora de uma época vista como caótica e opressiva.

Nada mais falso, mas nada mais sedutor, quando expresso de forma competente, valendo-se de toda a cosmogonia própria que seres como Marçal propagam. Eles, de fato, querem reinventar a humanidade, não para sua libertação dos mecanismos de opressão, mas para aprisioná-la a seus princípios políticos mancomunados com os da extrema-direita, em nível mundial, que têm sua força organizativa concentrada, hoje, no chamado movimento – para cuja construção muito contribuiu o estadunidense Steve Bannon.

O movimento agrega em si toda uma miríade de grupos extremistas de variadas espécies, dispersa nos mais diversos países, sempre operante no sentido de alterar as frágeis bases da democracia liberal, através do recurso ao populismo, para a afirmação de seu ideário autoritário e de submissão. Como bem observa o professor Giancarlo Montagner Copelli, na obra Pensando o populismo: a partir de ensaios e perspectivas distintas (Ed. Dom Modesto, 2021), o “populismo toca a superfície mais sensível de problemas reais típicos do chamado grande número, e seus protagonistas são hábeis atores em identificá-los em uma espécie de vácuo institucional”. Valendo-se competentemente do populismo, seres parasitários vão se espalhando pelas sociedades, em uma profusão incontrolável, aproveitando-se de todas as crises que o neoliberalismo precisa gestar e manter, de forma constante, para obtenção de ganhos em seus projetos econômicos e políticos.

Impossível pensarmos nos abalos na democracia liberal e na contaminação de seus insumos, sem levar em consideração as crises sistêmicas do capitalismo ao longo dos séculos 20 e 21. Crises têm o condão de desnortear as pessoas, de criar uma ambiência social e coletiva contaminada pelo medo, pelo desespero, pelo desalento e pelo ódio e raiva, sentimentos primitivos que habitam cada ser vivo, mas que são contidos pelas regras sociais de convivência. Porém, eles ganham uma pulsão de morte à medida que os limites à sobrevivência individual são testados por forças tidas como avassaladoras.

É pedagógico lembrar que as experiências do fascismo histórico, italiano e alemão, do século 20, tiveram nas crises o seu leitmotiv, o seu motivo condutor. O populismo, tal como descrito por Copelli, foi o grande instrumento de difusão de sua gramática, apresentada com roupagens salvacionistas para obtenção de aderência. Tal gramática autoriza a violência contra os “inimigos internos”, sempre imaginários na origem, mas corporificados em segmentos sociais, na medida em que sua supressão é apresentada como redentora no espetáculo da catarse sacrificial. Esse populismo e sua gramática partem de um sistema particular de símbolos, buscando sua universalização popularizada, objetivo alcançado com a escalada permanente de argumentos através de toda uma retórica de ódio – elemento privilegiado na operacionalização do extremismo mais radical de direita.

É pacificado o fato de que a extrema-direita soube, como nenhuma outra força política, se reinventar e se popularizar, através do uso competente das redes sociais neste século. Levada a uma posição marginal em razão da derrota na Segunda Guerra (1939-1945), ela jamais feneceu, estabelecendo para si condições de sobrevivência em um cenário adverso. No geral, encontrou acolhida em partidos e grupos conservadores e de direita, camuflando seu extremismo, que se manteve operativo na clandestinidade. O grande impulso para sua reaparição, com uma força considerável, veio da incapacidade da democracia liberal e de suas instituições em responder aos desafios das crises permanentes do capitalismo, particularmente de sua versão neoliberal, predominante a partir dos anos 1990.

Assim, do interior de grupos e partidos conservadores, onde se hospedava, a extrema-direita foi radicalizando os discursos, mobilizando a sociedade e seus sentimentos, direcionando-os não para uma solução concreta, mas para a assunção ao proscênio da representação política, momento no qual passou a operar sua estratégia de construção de hegemonia e de propagação de suas concepções autocráticas e excludentes. Foi assim na Hungria, nos Estados Unidos, no Brasil e na Argentina, para ficarmos em alguns exemplos significativos.

Mas essa virada extremista de direita só se faz possível se toda uma mentalidade social a autorizar e se abrir alegremente ao seu catecismo. No Brasil, como observamos de forma constante, as estruturas autoritárias sobre as quais se funda o país e sua sociedade, estudadas por Lilia Moritz Schwarcz e Heloisa Murgel Starling na obra Brasil: uma biografia, para citarmos uma obra mais contemporânea, permitiram a expansão da gramática extremista e sua consequente transformação em agenda pública. Foi o que assistimos ser construído no conjunto de crises que assolou o país e suas instituições desde a primeira década, e que ganhou um impulso irresistível a partir de junho de 2013. Como sabemos, a democracia liberal mostra-se impotente diante desse avanço, o que permite que suas bases sejam corroídas de forma ainda mais acelerada, em especial no Brasil, um país de tradição avessa aos padrões democráticos de inclusão social e de garantia dos direitos fundamentais.

Marçal, Bolsonaro e toda uma farândola de seres proliferam no pântano das incertezas e do formalismo, na inércia diante do mal que se corporifica aos olhos dos seres vivos, conseguindo a adesão de largas parcelas desses viventes. As redes sociais, cuja utilização tornou-se um padrão de alcance universalizante a partir da segunda década deste século, foram a base sobre a qual se erigiu esse projeto político, e é delas que emergem os novos atores, com suas características aparentemente bizarras e abjetas.

Sim, as redes sociais são, na essência, uma expressão de um novo tipo de ator político, sedutor, messiânico e cada vez mais histérico em propor seu receituário salvacionista. A aproximação desses grupos e pessoas dos setores cristãos fundamentalistas, pentecostais, católicos e protestantes, bem como do pensamento autoritário de nossas elites e de parcelas da população, ajuda-nos a entender a força que o extremismo vem ganhando no Brasil ao longo dos últimos anos. Trata-se de um casamento perfeito, cuja finalização é a subversão de todo o modo de vida, anulando as conquistas sociais e políticas, retrocedendo a sociedade a padrões de uma dominação em estado puro, com a cidadania desprovida de meios para a sua defesa.

As reações ao avanço desse projeto se mostram insuficientes, ou pior, inexistentes. Marçal, na disputa pela Prefeitura de São Paulo, por cálculo político, precisa anular os corpos conservadores em que ele e os seus apoiadores habitaram ao longo de décadas. Por isso, a reação abrupta desses grupos, cientes de que estão no limiar da perda de poder para um radicalismo em estado natural. É um enfrentamento interno, inevitável para que haja o sacrifício pelo hospedeiro do corpo que parasitou até o momento. Decorre daí a escalada de enfrentamentos, de violência – simbólica e real –, de mensagens odientas e de vulgarização da cena política. A estética e os princípios da democracia liberal precisam ser conspurcados e satanizados para que, então, sejam vistos como um mal a ser sacrificado em benefício da redenção do povo. As instituições democráticas, diante dos fatos, mantêm uma posição inerte ou cumpliciada, permitindo que o ritual de sua morte seja encenado diante de seu olhar atônito ou de êxtase. Foi assim com Bolsonaro, em 2018, e está sendo assim com Marçal nos dias atuais.

Sempre pragmático, o grande capital vai se amoldando à realidade que emerge, acolhendo seus atores e financiando-os, como fizeram com Mussolini e Hitler no século 20. Sabem que, no limite, esses atores não negam a sociedade de classes, mas a democracia liberal surgida na Europa Ocidental a partir da Revolução Francesa de 1789 e das lutas contra o absolutismo real em diversos países ao longo do século 19. Sem nenhum pudor ou elemento que desvie a atenção, o movimento e seus tentáculos, como Marçal e Bolsonaro, repetem a mesma gramática do fascismo histórico italiano e alemão. O resultado desse processo, bem o sabemos, foi trágico para a humanidade. Mas a história, de novo, está se repetindo. Como farsa, como observou Karl Marx, mas é cada vez mais abrangente em termos sociais e geográficos. A ideia do endeusamento da força, do seu uso desmedido, parece povoar o imaginário, algo que aponta para uma patologia social identificada por Sigmund Freud.

Como escreveu o jornalista Fernando de Barros e Silva, em texto publicado na revista Piauí nº 216, abordando os efeitos dessa patologia no Brasil, “depois que Bolsonaro foi eleito (e perdeu a reeleição por um triz), depois que entregamos o país ao pior de nós, depois de descobrir diante do espelho que somos, que nos tornamos ou admitamos ser também isso, ninguém tem o direito de subestimar o potencial político e a capacidade de predação de nenhum aventureiro de extrema-direita”. Chocaram-se os ovos, e as serpentes saíram e se espalharam, picando qualquer pessoa seletivamente.

Estão aí os elementos de uma crise profunda, com personagens que vão saindo de lugares os mais recônditos, mostrando, sem véus, sua existência e seu ideário, diante da impotência, da paralisia ou da apatia da maioria, um elemento que, historicamente, sempre permitiu seu crescimento e suas ações na construção de uma nova ordem, claramente autoritária, excepcional e excludente. O mal, ao ser banalizado, se faz norma, cancela os corpos e suprime os insumos da democracia e das liberdades. Marçal e toda a sua farândola não podem ser normalizados como um produto de fácil aceitação pelo mercado, comercializáveis como objetos de consumo, pois são seres humanos com um projeto político e social óbvio, de predominância autocrática e de licenciamento para uma exploração ainda maior de todo o povo. São um mal em si, e como tal devem ser tratados e considerados.

Desabafos como o do jornalista Leão Serva, da TV Cultura de São Paulo, que atuou como mediador do debate onde a violência até então simbólica escalou para o plano físico, deveriam ser analisados e absorvidos com a devida responsabilidade e gravidade que o caso revela em si. O jornalista publicou um artigo no jornal Folha de S. Paulo em que afirma que a “imprensa repete erro que levou Hitler ao poder ao chamar Marçal para debates”. Para Serva, “o jornalismo está enfraquecido pela perda de audiência e vive uma ‘síndrome de Estocolmo’ em relação às mídias digitais”. É uma reflexão madura de um experiente profissional, uma autocrítica preciosa.

É também uma crítica mordaz às mídias corporativas que, ao arrepio da lei, incluíram Marçal em todos os debates, mesmo o seu partido, o PRTB, não tendo assento algum no Congresso Nacional. Foram em busca de um lugar perdido para as plataformas digitais, recepcionando, com pompa e circunstâncias, um ser perigoso como Marçal, dando-lhe ainda mais projeção, permitindo-lhe não apenas se robustecer no papel que desempenha nas redes e na obtenção de elevados ganhos financeiros através delas, mas na protagonização de um espetáculo cujo objetivo é a disseminação de sua gramática antissistema e a normalização desse padrão junto ao imaginário social. Como nos tempos do fascismo histórico, o capital, através das mídias corporativas, atua na normalização desse processo, de forma a comandá-lo, quando se afirmar vitorioso, sob os escombros da democracia liberal e de todo o seu modo de vida, pondo fim a uma era histórica. Até quando a tudo “assistiremos bestializados”?

Fonte: https://jornalggn.com.br/cidadania/a-banalizacao-do-mal-a-partir-da-impotencia-por-marcelo-siano/

Nenhum comentário: