domingo, 10 de dezembro de 2023

Ninguém leu Sexto Empírico

A Câmara dos Deputados aprovou nesta terça-feira (5), durante a votação de um projeto de lei sobre a aplicação de uma linguagem simples no setor público, um destaque que proíbe o uso de linguagem neutra em órgãos públicos. A matéria segue para o Senado.

A alteração, proposta pelo deputado federal Junio Amaral (PL-MG), recebeu 257 votos favoráveis, 144 contrários e duas abstenções. A medida proíbe “novas formas de flexão de gênero e de número das palavras da língua portuguesa, em contrariedade às regras gramaticais consolidadas”.

A linguagem neutra, que inclui termos como “todes”, “todxs”, “amigues” e “amigxs”, faz parte de um fenômeno político e de inclusão para que a comunidade LGBTQIAP+ se sinta representada.

Originalmente, o projeto buscava simplificar a comunicação entre os órgãos públicos e cidadãos. O deputado Chico Alencar (PSOL-RJ) votou contra o destaque e classificou a emenda como “jabuti” – que no jargão parlamentar significa matéria estranha à proposta original.

(https://www.diariodocentrodomundo.com.br/essencial/camara-aprova-proibicao-de-linguagem-neutra-em-orgaos-publicos/)

Você provavelmente já viu o uso de “todes” como na imagem da campanha da Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo. A inovação incomodou diversos telespectadores ao ponto de a equipe fazer um vídeo somente para justificar a escolha pela forma mais inclusiva. Mas você sabe como funciona essa linguagem ou por que ela incomoda tanto? Chega mais que a gente explica!

O fenômeno que tem sido chamado de linguagem neutra concorre com outros termos menos frequentes, como neolinguagem e linguagem inclusiva, que, embora tenham semelhanças, não designam a mesma coisa. A linguagem inclusiva faz parte de um processo mais longo impulsionado principalmente pelos movimentos feministas, que reivindicam o uso não-sexista da linguagem e a marcação do feminino em contextos em que há referência a mulheres e homens. Portanto, dessa perspectiva, o masculino não poderia ser utilizado como genérico ou não marcado para contemplar ambos os gêneros. Assim, algumas formas coordenadas de visibilização (amigas e amigos) passaram a ser adotadas com o objetivo de incluir também o gênero feminino.

Além dessa estratégia, outro recurso utilizado foi o uso de hiperônimos como “público” e “turma” para fazer referência a grupos heterogêneos. Essas escolhas estão disponíveis na língua e não provocaram embates tão fortes quanto os que temos visto em relação às inovações linguísticas associadas à linguagem neutra, que podem aparecer na formação dos nomes (alune, menine), no sistema pronominal (ile, elu) e nos determinantes (e, le). Por serem formas mais disruptivas, provocaram manifestações polêmicas não só entre gramáticos e linguistas, mas também nas diferentes mídias, nas câmaras legislativas e nas redes sociais. Em diversos cenários, as discussões envolvem posições contrárias ou favoráveis à neolinguagem em diferentes níveis: há aqueles que se opõem a qualquer mudança e defendem a preservação da língua como monumento; outros que concordam com alterações no nível lexical, mas não morfológico; alguns que apontam a possibilidade de que o afixo de gênero neutro seja mais um modo de marginalizar e apagar o feminino; além daqueles que defendem a neolinguagem como meio de garantir visibilidade às pessoas que não se encaixam no sistema binário de gênero.

Em meio a tais reivindicações, principalmente a partir de 2020, diversos projetos de lei foram propostos com o objetivo de proibir os usos de linguagem neutra em diversos setores da sociedade. Entre esses setores estão as instituições de ensino, que aparecem como principal foco dessas regulamentações linguísticas, já que fazem parte do aparato institucional por meio do qual a ordem linguística é mantida. Esses projetos começam a surgir a partir da derrocada do Projeto Escola sem Partido (doravante, PESP), criado com o objetivo de controlar a atuação de professores e evitar possíveis doutrinações ideológicas e políticas por meio de proibições e instruções para que docentes não compartilhem suas opiniões em sala de aula, apesar de ter encontrado eco em uma grande parcela da população, esse projeto foi considerado inconstitucional. Agora, o PESP funciona como o pano de fundo desses projetos de lei que usam a proibição da linguagem neutra como justificativa da proibição de discussões de gênero e sexualidade na escola. Alguns desses projetos foram aprovados em forma de lei ou por decreto e estão em tramitação atualmente em estados como Paraná, Minas Gerais, Santa Catarina e Rondônia. Este último teve a lei 5.123/2021, que vedava o uso de linguagem neutra nas escolas do estado, derrubada pelo Supremo Tribunal Federal já que sua aprovação fere a Constituição Federal por ser competência da União legislar sobre normas de ensino.

Um dos motivos para a linguagem desempenhar um papel tão importante em discussões como essa é a ideia de que controlar a língua é um modo de exercer controle também sobre a realidade. Assim, a impossibilidade de que modificações linguísticas possam acabar com uma série de preconceitos e com a desigualdade de gênero é um argumento bastante utilizado entre aqueles que se opõem ao uso da linguagem neutra. No entanto, não é esse o objetivo daqueles que reivindicam a inclusão da neolinguagem, mas sim a expansão das possibilidades de sentido para atender às novas demandas sociais, o que por si só já é relevante socialmente. Como aponta a linguista Deborah Cameron, a linguagem em uso é parte do social. Logo, deixar de utilizar o masculino como genérico, por exemplo, em prol de formas mais inclusivas envolve mudança social, pois altera o repertório de significados de que os falantes dispõem para fazer suas escolhas linguísticas. Portanto, é fundamental a percepção de que o acervo de que dispomos é fruto de uma constituição histórica e social que envolve a atuação de diversos agentes políticos.

O cenário sociopolítico brasileiro, representado nos projetos de lei que visam proibir qualquer tipo de abordagem da linguagem neutra em âmbito institucional, suscita projeções pessimistas em relação aos avanços na política de valorização da diversidade e de promoção da igualdade de condições para grupos minorizados. Nesses projetos, tais objetivos têm sido tangenciados em prol de uma agenda que ignora os anseios sociais e se centra na manutenção de políticas tradicionais e excludentes, envolvidas em justificativas atravessadas por ideologias condicionadas pela idealização da família cisheteronormativa.

Nesse contexto, é sintomático que a defesa da preservação e valorização da norma-padrão desempenhe um papel significativo na afirmação da cisheteronormatividade, no sentido de que a oposição às mudanças linguísticas de viés inclusivo reforça a defesa desses ideais. A contestação de formas linguísticas utilizadas para incluir indivíduos que não se encaixam na binaridade de gênero é uma maneira de reafirmar e garantir o status da família cisheteronormativa como padrão. Sendo assim, as reflexões desenvolvidas sobre os processos linguísticos e ideológicos mobilizados na construção de discursos contrários ao uso de linguagem neutra sugerem que a defesa da língua como monumento a ser preservado atua na construção e na manutenção de metadiscursos hegemônicos em âmbitos institucionais. Em contextos sociopolíticos de polarização como o que vivenciamos atualmente, é ainda mais imprescindível refletir sobre o caráter heterogêneo da linguagem e desconstruir o purismo linguístico que continua sustentando práticas de exclusão.

(https://contxt.letras.ufrj.br/por-que-a-linguagem-neutra-incomoda/)

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