quinta-feira, 23 de julho de 2015

Considerações sobre a religião na Grécia Antiga

O sagrado permeava a vida cotidiana dos gregos tanto nos espaços e assuntos públicos quanto nos privados. Tanto Deuses quanto homens nasceram no mundo e dele fazem parte, havendo algo de divino no mundo e algo de mundano nas divindades. Os domínios do natural e sobrenatural não são dicotômicos, mas intrinsecamente conectados, não havendo separações claras entre o que é religioso, social, doméstico ou cívico. A experiência helênica do sagrado pode ter como gênese a sensação da presença do sobrenatural em alguns locais, tais como cavernas e florestas e que com o decorrer dos anos essa experiência tomou duas direções: territorial, que irá gerar os santuários e outra que se une à natureza e à rodem da vida social. Em ambas as acepções a experiência do sagrado é a de um poder ou sistema de poderes que interferem nos processos da natureza e da vida de forma benéfica ou perturbadora. Os helenos buscavam em suas atitudes para com o domínio do sobrenatural propiciar a face benévola, especialmente através das oferendas votivas.
A religião e os mitos gregos permaneceram na consciência cultural ocidental por uma tripla tradição: sua presença na literatura antiga, a polemica com os pais da Igreja e sua proximidade com a filosofia Neoplatônica. Apesar das relações dos deuses apresentadas na poesia épica, a religião cívica era fundamento da ordem moral da pólis.
A religião grega era uma religião da tradição> segui-la faz parte do “ser grego”, eis porque é chamada de religião cívica. As narrativas mitológicas, aprendidas ainda na infância, contribuem para a forma como os helenos concebiam o divino. Em seu entendimento, na religião grega não se participava dos cultos por motivos puramente pessoais, mas se exercia nesses o papel que lhe fora atribuído pela polis, consagrando a ordem coletiva e os segmentos que a construíam. Ao contrario das religiões reveladas, não se estabelecia com as divindades helênicas uma relação pessoal, pois, como potencias, seu culto se dá por estarem num estatuto superior ao dos humanos. Como potencias, representam a plenitude dos valores que eram importantes para a sociedade grega.
Por ser religião cívica, sacerdotes e magistrados continham em si tanto aspectos sagrados  quanto de autoridade pública. O poder religioso era exercido por aqueles que detinham o direito secular: os chefes de família e os magistrados. Cabiam às Assembleias e Conselhos das póleis definir o calendário religioso, os sacrifícios a serem feitos a cada Deus, a organização das festas e a administração dos santuários.
As cidades são construções humanas e devido às suas características e especificidades os Deuses entram em conflito para que sejam por elas honrados acima de tudo e todos os outros. Os Deuses precisam oferecer aos habitantes delas algo em troca, que os façam merecer o culto políade. Acreditar na existência dos Deuses era reconhecer a presença dos mesmos na pólis, sua relevância para a existência humana em comunidade politica. E isso englobava o conjunto das obrigações que eram devidas às divindades. Crer nos Deuses também significava estabelecer relações amigáveis com eles, ter uma prática “política”, ou seja, incluir-se na comunidade. Ser cidadão implica tanto na participação nos festivais e nos templos quanto nos Tribunais e Assembleias. Se acreditar nos Deuses faz parte da cidadania helênica, o seu contrário significa excluir-se da comunidade. A impiedade é vista como um delito público, não honrar os Deuses políade é prejudicial à própria pessoa. Não prestar culto a um Deus seria equivalente a rejeitar uma área da experiência humana.
Contudo, essa dimensão social não negaria uma dimensão pessoal da experiência religiosa. As relações entre o individuo e os Deuses têm paralelo com os laços que o primeiro tece dentro da comunidade a qual pertence, a esfera emocional é parte integrante desse processo. A frequência em um santuário não ocorria apenas para cumprir com uma obrigação perante a cidade, mas sim porque a relação com seres supremos pode trazer conforto e satisfação ao indivíduo.
Homero e Hesíodo tiveram papel crucial na elaboração e difusão de noções comuns sobre a religiosidade e a cultura grega, mas a individualidade de cada pólis não nos permite ter a noção de uma versão religiosa preponderante e sim de um conjunto de variantes locais em pé de igualdade umas com as outras e também com as versões contidas na poesia oral.
A religião não era completamente absorvida pela pólis, sendo algo maior que ela, a transcende. O modelo seria de pouco auxilio para a compreensão das intenções, motivações e as dinâmicas das consultas oraculares feitas por particulares. O calendário religioso estaria vinculado não às instituições da pólis, mas ao ciclo agrícola.
A religião grega era uma rede de sistemas interagindo uns com os outros e com a dimensão religiosa pan-helênica. Esta está articulada na e através da poesia pan-helênica e dos santuários pan-helênicos; foi criada de uma maneira dispersa e variada, de elementos selecionados de certos sistemas locais e na fronteira entre os sistemas religiosos das póleis, que ela também ajudou a modelar.
A pólis era a estrutura fundamental na qual a religião grega operava. Toda cidade helênica era um sistema religioso em si mesmo, interagindo com os sistemas religiosos de outras póleis e com uma dimensão pan-helênica. Como uma pessoa nascia em uma pólis, só poderia pertencer à estrutura religiosa dela, de forma que estrangeiros necessitavam da mediação de um cidadão para participar de certos rituais.
A pólis era mediadora e legitimadora de todas as práticas religiosas. Os cultos eram controlados pela cidade-estado que, no Período Clássico, figurava como a máxima autoridade em assuntos religiosos. Mesmo o culto doméstico era influenciado pela pólis, uma vez que era essa que estabelecia quais Deuses deviam figurar na religião domiciliar.
Unidade entre corpo religioso e o corpo cívico: temos aqui a noção de religião incorporada, ou seja, a prática religiosa era parte crucial na rede de relacionamentos do interior da pólis. O culto em comum era a maneira estabelecida de expressar a comunalidade no mundo grego, de dar aos grupos sociais coesão e identidade. Seria, portanto, percebido com inevitável que realidades particulares de póleis particulares estivessem refletidas na articulação de seus cultos. Não se tratava de um Estado manipulando a religião: a unidade que era tanto corpo religioso, carregando a autoridade religiosa, quanto o corpo social, atuando através de suas instituições políticas, empregou o culto a fim de se articular no que era visto como a forma natural.
A cidade articulava a religião e o discurso religioso, por sua vez, se tornava sua ideologia central. Ela era o elemento que estruturava e conferia sentido a todos os elementos que compunham a identidade políade. Cabe destacar uma das funções dos rituais religiosos gregos: estabelecer a solidariedade entre os membros de um segmento social, marcando a identidade perante os demais grupos. As relações e laços sociais e políticos eram definidos pelo culto.
Desconhecimento do divino: os helenos tinham a percepção que o conhecimento humano sobre o divino e seus assuntos era limitado. A compreensão da falibilidade humana seria o motor do agenciamento religioso. Os gregos sabiam que sua religião era uma construção humana, aberta a mudanças diante das mais variadas situações. No afã de atingir uma relação melhor com o divino, rituais e mitos poderiam ser resignificados e outros Deuses adorados. Os tempos de crise se mostram particularmente reveladores dessa característica, gerando pressões para a inovação, inserindo novos cultos na realidade políade, que viveria tensões entre conservantismo e inovação.
O indivíduo como unidade de culto principal: o centro de articulação da religião grega era seus rituais, não uma experiência espiritual. Apesar das atividades cultuais ocorrerem em conjunto, a família não pode ser a unidade ideológica básica da religião grega. O indivíduo era o elemento operando na conjuntura geral da veneração pública e privada dos Deuses.
As pessoas participavam como indivíduos em cultos centrais para a cidade e eram organizadas em uma variedade de forma que sinalizavam uma gama de elementos identitários, os quais não dependiam uns dos outros em sua totalidade.
No que tange os cultos de Mistérios, esses abririam espaço para a escolha pessoal, pois sua adesão, ao contrário da religião políade, não era compulsória. O iniciado recebia um segredo divino, que promovia a sua aproximação ao outro mundo e revelava a continuidade entre a vida e a morte. Após as celebrações, eles retornavam às suas casas e vidas comuns, ainda comungando dos demais cultos de sua pólis. Seria após a morte que eles gozariam de uma existência diferenciada daqueles que não passaram pelos ritos dos Mistérios. O grande apelo dos Mistérios junto aos gregos e às demais sociedades pagãs é o oferecimento de uma intimidade com o divino que não era enfatizada pelos cultos oficiais.
Autora: Maria Figueiredo Virgulino.
Fonte: Fertilidade e Prosperidade na Ásty de Corinto, pg. 23 – 32.

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