sexta-feira, 30 de maio de 2014

Reconhecendo nossos ancestrais

Há uma questão muito interessante no Paganismo Moderno quando pensamos na relação entre os Deuses, os nossos ancestrais e a nossa religião.

Quando eu optei pelo Paganismo, a relação intrínseca entre minha origem, identidade e herança cultural e os Deuses Antigos e as religiões pré-cristãs ficaram bem definidas. Mas essa é uma herança cultural, em termos de gens, a coisa fica muito complicada.

Um Deus [ou Deusa] está ligado a uma região, portanto, a um povo, uma etnia. No entanto as muitas etnias humanas deixam de habitar seu nicho original há muito tempo. Nossos ancestrais migraram, colonizaram e miscigenaram com nossos antepassados de outras etnias e origens. Eu, bem como qualquer americano e europeu, nesse mundo contemporâneo, compartilha de uma múltipla herança étnica. Mesmo assim, não faz sentido eu adorar o Deus Cristão, ou o Deus Judaico, ou o Deus Islâmico. Assim como não faz sentido eu adorar os Deuses Hindus, os Deuses Africanos ou os Deuses Asiáticos.

Nós não temos mais as mesmas ligações de sangue que nossos antepassados tinham com a região que habitavam, com uma etnia ou com os Deuses, mas a herança cultural é um legado que não depende de linhagem, mas do conhecimento e este não é propriedade de uma etnia. O legado cultural do qual eu, brasileiro, sou descendente, não é o dos aborígenes desta terra, não é o dos patriarcas bíblicos, não é o dos profetas, não é o dos padres, mas o dos Lusitanos e o dos Romanos.

Alguns grupos falam, com orgulho iludido, sobre a "verdadeira identidade" dos europeus como vindo dos indo-europeus. Para começar, só em falar em grupos ou povos indo-europeus mostra que está se falando de uma mescla, de uma mistura, de uma miscigenação. A classificação como indo-europeu refere-se apenas a matérias linguísticas, e não necessariamente a etnias ou culturas. Os chamados indo-europeus se localizavam, desde o quarto milênio, ao norte do Mar Negro, entre os Cárpatos e o Cáucaso, sem jamais, todavia, terem formado uma unidade sólida, uma raça, um império organizado e nem mesmo uma civilização material comum. Portanto, o que existe é uma enorme confusão ideológica sobre identidade, origem, gens e ethnos.

As ideias de nação e pátria eram completamente desconhecidas por nossos antepassados. Esta ideologia foi totalmente forjada pelas elites seculares e sacerdotais. Os povos da Europa, assim como os da África, da América e da Ásia, são elementos formados e constantemente reformulados pelo processo histórico e não são estruturas atômicas da própria história.

Nos séculos IV e V, a sociedade era basicamente dividida em romanos e bárbaros, uma perspectiva dicotômica do mundo aceita por ambos os grupos, assim como por indivíduos cuja própria vida revelava a falta de correspondência entre essa classificação simplista e a realidade. Ao designar todos os povos não romanizados como “bárbaros” os historiadores romanos forjaram uma unidade que na verdade não existia. Durante o esfacelamento do império, o termo “bárbaro” ajudou a centralizar as perspectivas políticas daqueles que não eram romanos. Embora na Antiguidade clássica o termo bárbaro fosse depreciativo, os exércitos federados do final da Antiguidade aceitavam o termo e o considerava uma designação neutra, ou até mesmo positiva, de sua identidade não romana, uma identidade coletiva muito mais estável do que a miríade de nomes tribais que geralmente eram vinculados à suas famílias e seus exércitos. Por volta do início do século VII, essa distinção não significava mais nada.

Na Idade Clássica, os nossos antepassados tinham o costume de agregar ao seu nome o nome da cidade onde nasceram porque as cidades por ser o centro da riqueza e da sabedoria lhes conferiam prestígio. Com o advento do Império Romano veio o conceito de gens, com os nomes vinculados ao nome de uma família, o que estipulava a situação social do indivíduo.

Foi no Império Romano que se fundou o vínculo entre Estado e Igreja. Por meio do decreto e da espada se fundiu o exercício da cidadania com a crença religiosa.

Com o fim do Império Romano, a fragmentação política acabou acarretando o ressurgimento da fragmentação cultural. Entretanto, os cristãos e pagãos que habitavam o imenso território dominado por Roma já não eram nem romanos, nem bárbaros. A ligação cultural que mantinham com aqueles povos que habitavam a Europa antes das legiões de Roma chegar era mais tênue do que eles desejavam.

A riqueza e o poder do Império Romano certamente atraíram a cobiça e a ganância dos reis da então Europa bárbara e pagã. Foi pelos sonhos destes reis por conquista, poder e riqueza que começaram as invasões destes povos, não em nome da reconquista de territórios ou pela independência das colônias romanas. Esses reis tiranos, em troca do reconhecimento de suas coroas, ofereceram à Igreja Cristã Romana a alma dos seus súditos. Então a Cristianização da Europa foi fundamental para a formação da unidade desses povos bem como para a formação da identidade em comum entre eles. Cidades e reinos independentes sucumbiram nas guerras de unificação promovidas pelos tiranos seculares e sacerdotais. Nesse contexto surgiu a ideia de que a Coroa (o rei) é a Pátria (a nação) e a defesa de ambos é um dever diante de Deus. Eram muito comuns cerimônias coletivas públicas de juramento de fidelidade ao rei, à Coroa, à Nação e a Deus.

A transição da Idade Clássica, marcada pelo Império Romano, para a Idade Média, marcada pelos Impérios Bárbaros, trouxe diversas mudanças para a cultura da Europa com a imposição do modelo romano. A fortuna do indivíduo dependia de sua linhagem familiar e da intrincada relação de vassalagem. Os reis aumentaram seu poder e influência através das guerras, apelando ora à Pátria, ora à Coroa, ora a Deus.

A democratização trouxe um fenômeno inesperado, o Paganismo Moderno, o qual, em contraste com outras religiões, está procurando por valores étnicos genuínos. Pode ser qualificada como uma religião étnica por excelência, no sentido que ela prova sua ligação com valiosos símbolos de identidade étnica. Ainda assim, é mais frequente que não englobe sequer um segmento menor de uma comunidade étnica e seus mitos e ritos não são, em sentido algum, originais e homogêneos, como se afirma ser.

O declínio e o colapso das ideologias causaram uma busca por uma nova recompensa intelectual. O processo foi acompanhado por uma desintegração do falecido sistema político, uma infiltração de novas ideias e religiões, um crescimento de tensões e conflitos étnicos e uma crise de identidade. Em tal ambiente confuso e estressante, muitas pessoas tentaram se basear no que eles tomaram como valores tradicionais. Um crescente interesse na cultura popular, no passado remoto intocado pela influência externa, no que as pessoas recentemente interpretavam como cultura genuína desenvolvida pelos seus antepassados remotos.

Os pagãos modernos estão profunda e insaciavelmente em amor com o passado pré-cristão, como se, nesse tempo, as pessoas vivessem em pureza virginal, não estivessem corrompidas por influências externas e que podiam, portanto, regozijar a melhor ideologia no mundo, travar guerras bem sucedidas e realizar grandes feitos heroicos.

A Europa, bem como os países colonizados por seus descendentes - especialmente as Américas - sofreu um grande trauma em sua identidade étnica, tanto com o domínio do Império Romano quanto com o domínio do Império Cristão. Mas isso faz parte de toda a história humana, mesmo os habitantes primitivos do continente europeu foram dominados por outros povos, que por sua vez foram formados de mesclas de diferentes povos. Não há, na atualidade, forma alguma de restaurar a pureza étnica de povo algum.

Podemos querer saber as nossas origens, resgatar a nossa herança cultural e trazê-la para os nossos dias, não querer levar a atualidade de volta a esse passado dourado idealizado. Nossa identidade, nos dias de hoje, é fruto da contribuição de diversos povos, diversas culturas, incluindo imigrantes, negros, árabes, asiáticos. Querer retomar uma "pureza" étnica é matar parte dessa cultura que também faz parte de nossa identidade, de nossa riqueza, de nosso País. Podemos ter orgulho de nossa gens - um termo que entrou na cultura europeia pelos Romanos - mas não podemos nos esquecer do outro lado do conceito de gens romana - a família, que não era feita apenas de indivíduos ligados por laços sanguíneos, mas também de todos aqueles que o pater familians adotava. Um familiar romano, mesmo se escravo ou servo, usufruía quase dos mesmos direitos que os patrícios romanos, muitos recebia mais que a liberdade, recebiam a cidadania sob o nome da família do pater familians que os adotara. Esse costume ainda faz parte do folclore europeu, bem como do Paganismo Moderno.

Ver diferenças e discriminar são coisas diferentes. Discriminar é reagir de forma preconceituosa, é ser intolerante, é ofender e agredir algo ou alguém simplesmente pelo motivo fútil de ser diferente. A diferença não torna algo ou alguém uma ameaça ou um crime.

Dar prioridades e privilegiar são coisas diferentes. Privilegiar é dotar um grupo de mais direitos que outros, direitos muitas vezes alegados, impostos ou reclamados sem qualquer embasamento ou razão. Dar prioridades não concede a grupo algum tais privilégios. A prioridade aos que são meus não pode excluir o conjunto da comunidade - no que os "estranhos" estão inclusos.

Exclusão não cabe em espaço social algum. Exclusão é sectarismo, nós não podemos agir com essa concepção bairrista, provinciana, regionalista. Exclusão é a soma de discriminação e elitismo, é desumano. O mundo, a vida, a natureza, a herança, são valores pertinentes a todos os seres humanos.

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