Na Grécia antiga, se falava uma língua isolada e se usava um alfabeto diferente. Seu povo não se parecia com os europeus - aliás, boa parte do que era a Grécia naquele tempo nem ficava na Europa, mas na Ásia, onde hoje é a Turquia. Ainda assim, foi lá que nasceu o mundo Ocidental.
A mitologia teve papel fundamental na disseminação de valores que soam familiares a nós ainda hoje. Das noções de ciúme e de inveja, da soberba ao heroísmo, somos herdeiros de determinado jeito de pensar que nasceu ali. Afinal, o que havia de tão especial com esse povo e seus deuses para que suas ideias sobrevivam até hoje?
"As pessoas se referem frequentemente ao milagre grego", escreveu a pesquisadora germano-americana Edith Hamilton em seu livro Mitologia. "Sabemos apenas que nos primitivos poetas gregos manifestou-se um novo ponto de vista, diferente de tudo com que se sonhara antes deles, mas que, depois deles, seria uma conquista permanente do mundo."
Pense na imagem de Deus. Aquele mesmo, da Bíblia. É provável que tenha vindo à sua cabeça um homem maduro, vigoroso, de barba branca. Se Ele ficar irritado, mandará raios na cabeça de alguém. Sim, você imaginou deus, mas não o da Bíblia ("Homem nenhum verá minha face e viverá", diz o Êxodo). A imagem em sua cabeça é a de Zeus (Júpiter para os romanos).
O marido e irmão de Hera (ou Juno). O imperfeito, irascível, briguento, mulherengo e todo-poderoso deus grego. O Novo Testamento não foi escrito na linguagem que Jesus e seus discípulos falavam, o aramaico, mas em grego, a língua franca da Antiguidade. Por causa disso, entidades mitológicas gregas acabaram batizando conceitos cristãos.
O Sheol, o inferno de acordo com a Bíblia, virou Hades, a terra dos mortos grega, que não era nem boa nem ruim. Os shedin e mazikin do Velho Testamento foram traduzidos para daimon, origem da palavra demônio. Entre os gregos, daimon era um espírito incorpóreo, geralmente benigno, uma espécie de anjo da guarda.
"O cristianismo é uma religião greco-romana, e não judaica", diz Jacyntho Lins Brandão, da Universidade Federal de Minas Gerais. "Ela é fruto de um grupo de judeus helenizados e teve que passar por adaptações. As próprias imagens eram coisas que os judeus não tinham, eram proibidas." A força da mitologia era tão grande que os padres tiveram de engolir a manutenção de certos costumes. Sobreviveu algo do paganismo nas maiores datas cristãs.
O Natal não cai em 25 de dezembro porque Jesus nasceu nessa data. Ninguém sabe o dia em que Jesus nasceu. Havia uma grande festa pagã, a Saturnália, comemorada entre 17 e 23 de dezembro. Ela homenageava o pai de Zeus, Cronos, ou Saturno, em latim. A Igreja decidiu marcar o Natal para essa época para sobrescrever a Saturnália. Durante a festança, os romanos decoravam a casa, davam presentes e faziam um grande banquete, com direito a muito álcool — a parte mais selvagem das comemorações foi transferida hoje para o Ano-Novo.
A Páscoa tem coincidências ainda mais evidentes. No final de março, gregos e romanos comemoravam a morte e ressurreição de uma figura divina, nascida de uma virgem, e cujos sacerdotes eram celibatários. O evento se caracterizava pela abstinência de certos alimentos, seguido por um dia de comiseração, em que alguns fiéis chegavam a se autoflagelar.
Por fim, havia uma grande festa e os alimentos eram liberados. Assim era o festival Hilaria, que homenageava o deus Attis, marido de Cibele, a deusa da colheita. A páscoa cristã, que não cai no mesmo dia da judaica, também foi calculada para obscurecer antigos festivais pagãos.
O legado grego ao mundo contemporâneo passa pela maneira como os antigos encaravam seus deuses. Os deuses não eram os inventores do mundo, mas parte de algo que já existia. Zeus, o manda-chuva de turno, não criou a Terra, nem mesmo os homens, que foram invenção de seus primos. Zeus, seus irmãos, filhos e aparentados formam uma segunda geração de potestades. Enquanto na tradição judaico-cristã, Deus vive em um céu inalcançável, os deuses da mitologia grega tem endereço físico, o monte Olimpo, a maior montanha da Grécia. Quer dizer, os deuses estavam, literalmente, ao alcance dos humanos.
O Deus cristão é representado como um ser distante, sobre-humano. Nas raras vezes em que desceu à Terra, apareceu na forma de luz ou fogo — ou só sua voz era ouvida. Com o pessoal da mitologia, era diferente.
Quando Zeus dava o ar da graça por aqui, por vezes se disfarçava para iludir e seduzir as mortais. Virou touro e cisne — e dormiu com as humanas até em forma de gotas de chuva. Os deuses gregos eram demasiadamente humanos. Podiam se ferir e se alimentavam todos os dias, de néctar e ambrosia. Enfim, tinham sua própria vida privada. "Embora tivessem características gregas, o fato é que os mitos da Grécia são compreensíveis pelos seres humanos de outras épocas e culturas", afirma Pedro Paulo Funari, professor de História Antiga da Unicamp e autor de Grécia e Roma.
Quando ouvimos as histórias mitológicas, nos deparamos com nossos próprios sentimentos. Um exemplo: o ciúme de Hera, a primeira-dama do Olimpo, diante das escapadas do marido em busca de deusas e mortais. Outro: Narciso, o herói que se julgava mais bonito que Apolo e por obra da deusa Nêmesis se apaixonou por ele mesmo. Ou Afrodite, que nasceu do sêmen de Cronos e é sinônimo de beleza — veja O Nascimento de Vênus, ou pense na Vênus de Milo. Algumas criações da Antiguidade, como drapeados, fivelas e tiaras, nunca mais saíram da moda.
O conceito de beleza masculino, de músculos definidos e rosto anguloso, vigora desde lá. Até há pouco tempo, um homem belo era um Apolo. Hoje, encontramos a herança helênica na TV e no cinema. Quem nunca quis ser super-herói? Pois o culto ao herói é algo tipicamente grego.
Héracles — ou Hércules, em latim —, ele mesmo transformado em personagem da Disney, inaugurou a senda de heróis semidivinos (ele virou imortal ao fim de seus 12 trabalhos), que são obrigados pelo destino a cumprir determinadas tarefas. E sua história ajuda a revelar o caráter dos deuses. Filho de Zeus com uma mortal, ele quase foi morto no berço por causa da ciumenta Hera.
A primeira-dama do Olimpo não hesitou em botar serpentes no berço do recém-nascido. O bebê, claro, matou as cobras. Continuamos contando as mesmas histórias. Luke Skywalker e Darth Vader, de Star Wars, são fruto da mesma árvore.
George Lucas, que criou a saga, era fã de Joseph Campbell, possivelmente o maior mitólogo que já existiu. Ou para quem gosta de analogias mais sofisticadas: "Ao escrever Ulisses, James Joyce reescreve também a tradição literária do Ocidente desde Homero, com a Odisseia e a Ilíada. Tradição que explora sem cessar os valores da jornada", escrevem Giulia Sissa e Marcel Detienne em Os Deuses Gregos.
O que nos chegou da vida cotidiana dos deuses veio principalmente de Hesíodo, com sua Teogonia, e Homero. A diferença entre a mitologia grega e as religiões monoteístas é que não há nada parecido a um livro sagrado para os gregos. As narrativas das façanhas divinas eram literatura. Variavam de cidade para cidade, com deuses mais populares aqui que ali.
"Eles acabaram não tendo uma ideia de verdade absoluta", diz Funari. Não ter um imperativo moral único e criar deuses com comportamento humano ajudaram os gregos a projetar um sistema de pensamento que forjaria o caráter do Ocidente. Eram cosmopolitas, conheciam muitos outros povos e suas crenças. A tolerância permitiu o surgimento da filosofia, o pensar só pela razão, desprendido de magia. Livres do peso de deuses rebarbativos, deram vazão ao pensamento criativo. Tudo podia ser colocado em dúvida. Este é o legado grego ao Ocidente: a nossa forma de pensar.
A Grécia não inventou a ciência moderna, que se baseia em experiências reproduzíveis, algo que só apareceu no século 18. Mas passou perto. Aristóteles estudou a física do movimento e estabeleceu uma teoria sobre as causas dos fenômenos que se sustenta até hoje. Entre a nobreza grega, valorizava-se mais o pensar do que o fazer, mas ainda assim a tecnologia prosperou. Inventaram engrenagens, catapultas, bombas e instrumentos musicais automáticos. O matemático Heron de Alexandria criou bombas hidráulicas, a primeira máquina de venda automática, o órgão e o motor a vapor — para o qual não viu uso.
Para os gregos, os números eram unidades concretas, parte de uma visão de mundo de harmonia e simetria. Não havia números decimais, negativos e o zero. O número 1 tinha características divinas. Pitágoras chegou a criar uma seita reverenciando números — entre os mandamentos, estava o vegetarianismo, mas feijões eram proibidos. Na religião pitagórica, a existência de números irracionais, incompatíveis com 1, era um conhecimento secreto, para iniciados. "Sob o signo de Pitágoras, os gregos descobrem as virtudes espirituais do cotidiano", diz Giulia Sissa. Como os gregos entendiam os números? Com uma veneração quase mística. Veja o caso da chamada proporção áurea, o número 1,618 (o fi, ou f, em homenagem ao escultor Fídias). Ela era considerada a chave para a beleza em tudo: esculturas, edifícios e objetos do cotidiano.
Fídias usou a proporção áurea para desenhar o Parthenon. Todos os artistas que o seguem costumam esconder proporções áureas em estátuas, quadros e prédios. Mas você não precisa ir a um museu para encontrá-la: basta tirar um cartão do bolso. Cartões de crédito, pôsteres de cinema, e um monte de objetos retangulares são feitos em proporção áurea. Prédios a usam em elementos como janelas, fachadas e o próprio formato da construção. A arquitetura clássica pode ser vista no Capitólio, em Washington, baseado em construções gregas. O logotipo da Unicef, o órgão das Nações Unidas para a educação, ciência e cultura, é um prédio que poderia ter sido erguido em Atenas. Falando em educação, quase tudo o que entendemos do assunto veio de lá. As crianças gregas começavam estudar aos 7 anos, por meio de um tutor, o paidagogeo — pedagogo.
"O primeiro livro que aprendiam era a Ilíada", diz Brandão. Para a educação do corpo, havia facilidades públicas, os gymnasion — centros de treinamento físico, que também tinham locais para discussões intelectuais. A palavra vem de gymnos, pelado, porque era como os gregos praticavam esportes. É a origem de ginástica e, obviamente, de ginásio.
Sócrates era um filósofo de rua, que ensinava as pessoas por meio de diálogos informais. Seu maior discípulo, Platão, decidiu levar a coisa a outro nível. Em 387 a.C., fundou a primeira instituição de ensino superior do mundo, onde se formaria Aristóteles. O lugar ficava num bosque de oliveiras e chamava-se Akademia, uma homenagem a Akademos, herói da guerra de Troia.
A Academia original durou até 84 a.C., quando foi destruída numa guerra — mas novas academias surgiram. A partir de então, o termo foi aplicado a várias escolas e também ao mundo da educação superior em geral. Só no Brasil é lugar de atividade física e ginásio, um local de estudo. "A história da formação grega começa com o nascimento de um ideal definido de homem superior", escreve Wener Jaeger em Paideia.
A democracia nasceu em Atenas, pelas mãos de Sólon, no século 6 a.C. Só os homens livres podiam tomar parte da festa, mas o princípio permaneceu. Com a democracia, apareceu uma figura que também dura até hoje: o demagogo. Eles se diziam inimigos dos aristocratas. Mas tão logo conquistavam o poder transformavam-se em tiranos (outra criação grega).
A Grécia antiga morreu com a ascensão do cristianismo. No final do Império Romano, a tradição do pensamento livre foi esmagada pela união de Igreja e Estado. De perseguidos, os cristãos se tornaram perseguidores implacáveis e destruíram textos e obras de arte.
Transformada em Império Romano do Oriente, a Grécia — que agora atendia pelo nome de Bizâncio — renegou seu passado: a palavra helenos, "grego", em grego, passou a significar pagão. Eles chamavam a si mesmos de rhomaion - romanos. A última versão da Academia, que havia sobrevivido a várias dissoluções e renascimentos ao longo de quase 900 anos, foi fechada de vez pelo imperador Justiniano em 529.
Mas ao mesmo tempo quase tudo o que sabemos sobre filosofia grega foi preservado em mosteiros. Outra parte, com muito mais conhecimento prático e utilitário, foi salva pelo Islã — como tratados matemáticos da Antiguidade.
Tanta sabedoria guardada explodiria no Renascimento. Para se contrapor à rigidez de ideias da Idade Média, gente como Dante Alighieri, Petrarca e Boccaccio vasculharam bibliotecas atrás de textos antigos, que citavam deuses e heróis. Assim, começou um movimento irreversível de recuperação do saber grego.
A tradição humanista foi um novo tempo para a humanidade, embalado numa estética clássica. A pintura e a escultura puderam ir além dos temas sacros representando os mitos da Antiguidade. No caso da escultura, com um erro histórico: as estátuas gregas eram pintadas. Os renascentistas achavam que elas eram brancas porque o tempo havia desgastado a tinta no mármore.
Desde o fim da Idade Média, os gregos nunca mais nos abandonaram. Até o século 19, não se era ninguém sem educação clássica — grego era o avançado, o básico era o latim. No século 20, Sigmund Freud usou os mitos para ilustrar a condição humana moderna e criar a psicanálise. "O núcleo de todas as neuroses é o complexo de Édipo", escreveu em Totem e Tabu, de 1913. Freud deu nomes mitológicos a conceitos psicanalíticos. Seu colega e discípulo Carl Jung usou a mitologia para explicar a psique humana. "Os arquétipos criam mitos, religiões e ideias filosóficas que influenciam e deixam sua marca em nações e épocas inteiras." Para Jung, o inconsciente coletivo era algo que nos tornava humanos, capazes de compartilhar as mesmas histórias em qualquer tempo.
Freud e Jung remavam na contra-mão do século 20. A arte moderna fez um grande esforço em renegar o espírito clássico — a simetria, harmonia e a busca do belo foram abandonadas em favor de obras inspiradas na cultura da África, Polinésia e Japão. O modernismo decretou o pensamento humanista superado. No entanto, Grécia e Roma são mais populares do que nunca.
Fonte: https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/reportagem/como-a-mitologia-grega-fundou-a-civilizacao-ocidental.phtml