sexta-feira, 5 de agosto de 2022

Quando defender a tradição incomoda

Eu estava pensando em nomear esse artigo como "Falsa Bandeira Entre Gardnerianos", mas eu mudei de ideia. Esse tópico começou a borbulhar na minha mente ontem, enquanto eu aproveitava meu aniversário, desfrutando da companhia de minha esposa.

Eu fiquei realmente intrigado com a reportagem que eu li no Wild Hunt (que, estranhamente está fora do ar) sobre "um documento publicado na semana passada e assinado em 18 de julho de 2022 por um grupo anônimo de bruxas Gardnerianas está criando controvérsia na comunidade pagã, refletindo o debate mais amplo na América sobre identidade de gênero. O documento, intitulado 'Uma Declaração da Wica Gardneriana Tradicional', foi rotulado como transfóbico por vários Gardnerianos proeminentes porque faz referência a 'princípios, qualidades e energias fundamentais” que são exclusivos apenas para os gêneros masculino e feminino e contém um tom antitético para o espírito inclusivo dos praticantes de magia.'" (recuperado com Wayback Machine e traduzido com Google Tradutor).

Eu imediatamente fui em busca dessa declaração, que estava publicada no Reddit, mas eu consegui acesso ao conteúdo por um link disponibilizado na página "The Silver Bough".
Eu irei traduzir e relatar resumidamente o conteúdo do documento.

Os signatários falam sobre o cisma que tem ocorrido no meio, com calúnias, deturpações, comportamento inapropriado e "bullying". Aparentemente as pessoas envolvidas em tais atividades tinham claro interesse em poder e controle.
Os signatários entram, então, no tema que certamente provocou tanto alarde entre pagãos, bruxas/os e gardnerianos/as: o princípio da polaridade sagrada manifestada no binômio masculino e feminino. Eu tenho vários textos que explicam e defendem esse mesmo princípio e eu tenho a impressão de que os críticos a esta declaração não leram ou não souberam interpretar o texto corretamente.
Os signatários também reafirmam que a Wica é um culto de fertilidade, tal como os antigos rituais também eram, algo que eu tenho defendido arduamente.
Os signatários falam que indivíduos e facções foram se formando e começaram a modificar a Tradição Gardneriana. Eu fico contente em ter escrito a série sobre os momentos embaraçosos da história da Wica, eu recomendo ao eventual e dileto leitor consultar para que fique informado sobre essas vertentes e facções que surgiram nos EUA por volta da década de 70, século XX.
Os signatários atestam que continuarão fiéis aos princípios, à filosofia e a práxis da Tradição Gardneriana. Houve um tempo em que eu fiz isso, mesmo sem ser iniciado e sei, por antemão, que é uma luta em vão, o que infelizmente ficou bem claro com as reações.
Os signatários apontam para o fato de que a Tradição é chamada Gardneriana porque foi fundada por Gerald Gardner e que existe um enorme espaço no Paganismo Moderno, cabendo ao Buscador procurar aquilo que faz mais sentido para si.
No documento que eu acessei consta que 47 gardnerianos de 3° assinaram a declaração e publicaram em 18 de julho de 2022.
Na segunda parte, os signatários ressalvam que a Tradição Gardneriana é aberta e inclusiva a tod@s, desde que essa pessoa/indivíduo concorde em trabalhar dentro das diretrizes tradicionais, tal como foram estabelecidas por Gerald Gardner.
Os signatários reiteram a importância de trabalhar com a polaridade masculino/feminino, que eu chamo de polaridade sagrada. O princípio masculino/feminino está presente, tanto fisicamente quanto metafisicamente, algo que é adotado praticamente por todo o Paganismo Moderno, que é o conceito teológico que o divino é transcendente e imanente.
Os signatários, talvez, tocaram em um ponto nevrálgico ao concluir que é necessário praticar o feminino biológico para o masculino biológico (e vice-versa). Aqui entra uma enorme discussão sobre genética, sexo biológico, identidade/preferência/opção sexual.

Adendo rápido e breve: o sexo biológico da nossa espécie é definido por dois gametas, X e Y. Sendo que o cromossomo Y foi uma evolução do cromossomo X e existe um gene em particular chamado SRY que resulta na definição do indivíduo como masculino, feminino ou intersexual.
Pessoas intersexuais existem, bem como homossexuais. Alguns indivíduos passam por uma cirurgia de redesignação sexual exatamente para que seu corpo expresse o gênero no qual ele/ela se identifica. Isso confirma, endossa e reforça, portanto, a característica binomial do sexo biológico.
Eu entendo, portanto, que um homem ou mulher transgênero irá encenar seu papel como sacerdote ou sacerdotisa da mesma forma como seus pares cisgênero executam na Tradição Gardneriana. Conclusão: não há razão nessa reação contra tal declaração.

Jason Mankey e Yvonne Aburrow são os gardnerianos que eu conheço que criticaram a declaração. Eu tenho vários textos onde eu analiso e critico Jason Mankey, seus textos costumam ser confusos e contraditórios.
Eu vou citar trechos de textos de Yvonne e de um tal de Dylan, analisando e refutando suas críticas.

Yvonne (se fazendo de vítima, recurso fácil e baixo) fala que existem pessoas transfóbicas que alegam que são mais tradicionais que os gardnerianos inclusivos. Ela lista uma série de vídeos do Youtube, postagens no Instagram e textos, alguns feitos por ela mesma e por um outro (que eu suponho ser gardneriano). Lamentável, vídeo do Youtube, postagens no Instagram e textos não podem ser apresentados como argumento, principalmente quando a pessoa mesma é autora, isso se chama conflito de interesse.
Ela cita Jason Mankey, altamente suspeito, como eu expliquei em diversos textos dele que eu analisei e critiquei. Ela cita a colunista "Gardnerian Librarian", que eu não conheço, mas publica no Patheos, uma plataforma que ela mesma saiu (vejam meu texto falando sobre a crise no Patheos e seu réquiem). Ela cita um usuário do Twitter (disponível no Facebook) chamado Seeking Witchcraft Podcast, mantido por alguém chamado Ashley, supostamente gardneriano/a, mas como qualquer outra rede social, não serve como argumento.
Para mim, bastou ler a paganice que ele/ela escreveu: "um elemento central da bruxaria é capaz de trabalhar, sentir, ler e manipular energia", alegando que a energia "espiritual" não  tem conexão com o sexo biológico. Eu solicito que releia que o conceito teológico que o conceito de que o divino é transcendente e imanente é praticamente adotado por todo o Paganismo Moderno. Sem falar que, histórica e antropologicamente (falando em bruxaria como um todo), isso está errado.
A reação de Yvonne foi passional, não racional. Infelizmente ela achou mais importante defender sua bandeira do que a sua crença.
O que é mais curioso e peculiar é que, ela mesma, é alta sacerdotisa gardneriana e mulher transgênero. Ou seja, ela fez a redesignação sexual para que seu corpo refletisse o padrão do sexo feminino. Sim, é confuso, contraditório, mas nós somos humanos.
Ela não publicou, mas eu vou reproduzir o meu comentário:
Deixe-me entender isso direito. Quem critica esses gardnerianos tradicionais alegam que a Wica não tem uma autoridade central, mas se colocam na posição de autoridade. Faz todo sentido. Sim, isso é ironia e sarcasmo.

O mesmo vale para a paganice dita por Dylan: "Nossos deuses são primordiais. Eles existem além dos limites do tempo e do espaço – e perduram fora de qualquer noção de gênero ou sexo que os seres humanos possam ter criado. [...] Os deuses não são limitados pelo gênero. Eles existem além dele." Esse é o conceito teológico das religiões abraãmicas, não nossas. Ele mesmo chega a afirmar que as manifestações dos Deuses comprovam, confirmam e endossam que nossos Deuses têm sexo (com eu mesmo expliquei em um texto em que eu analisei um artigo do Steven Posch).
Dylan diz: "Embora eles possam argumentar que pessoas trans são bem-vindas para participar de nossos mistérios, eles também acrescentarão que os iniciados trans devem fazê-lo de acordo com o sexo atribuído a eles no nascimento." Dylan deve ter grande dificuldade em ler e interpretar texto, não há tal afirmação no texto, releia a minha interpretação.
Dylan repete a mesma paganice e wiccanice que tradições evoluem. Essa palavra não significa como ele acha que significa. A Tradição Gardneriana é alicerçada por um mito e mistério que antecede sua compilação por Gardner. Dylan tem a ousadia de dizer que incontáveis sacerdotes e sacerdotisas da Idade Antiga estavam simplesmente "fazendo errado".
Dylan cita Gardner: "[toda bruxa] deve copiar o que quiser de outra, mas nenhum escrito antigo pode ser mantido. Como todos podem alterar um pouco as coisas, modernizando a linguagem e fazendo outras alterações, é impossível fixar a data em que se tornou atual. Claramente, não foi escrito na Inglaterra." O que isso quer dizer? Nós não somos uma religião de livro.
Dylan está, praticamente, gritando que a Wica é uma farsa. Então seu sacerdócio é nulo e sua opinião sobre "o que é a Wica" é irrelevante (aliás, só para lembrar: quem critica esses gardnerianos tradicionais alegam que a Wica não tem uma autoridade central, mas se colocam na posição de autoridade. Faz todo sentido. Sim, isso é ironia e sarcasmo).
Como é de praxe, no final do texto, Dylan dá o que é chamado de "carteirada", desfilando sua formação acadêmica. Lamentável, pois eu também possuo formação acadêmica e tento, na medida do possível, embasar minhas afirmações em textos históricos, antropológicos e sociológicos. A grande massa do conhecimento acadêmico me diz que Dylan está errado em suas alegações.

Para arrematar, eu vou divagar um pouco. Há tempos o fruto da Wica caiu do galho, apodreceu e virou adubo. Felizmente o galho continua onde sempre esteve. Por ele, eu posso seguir a trilha dos mitos e mistérios, até as raízes, profundamente enraizadas nos cultos ancestrais e até a copa, esplendidamente iluminada pela existência eterna e imutável do divino, de quem nós podemos ter um vislumbre através dos mitos antigos,  que não devem ser interpretados ao pé da letra.
Eu, que sou o Sapo Bardo e o Joãozinho, sou proscrito, banido e considerado herege até entre os meus, vou seguir nessa trilha. A caminhada é longa, dura, árdua, mas eu continuo porque eu sei que no fim eu irei encontrar Ela. Eu sei que estará me esperando, com ansiedade e expectativa, para que eu me aproxime do Santo dos Santos. Aquele lugar sagrado que fica entre seus carnosos pilares das coxas, sequiosa e faminta para que eu lhe preencha o ventre com meu creme de nozes. Eu consumarei meu amor por Ela diante da audiência estupefata, horrorizada e escandalizada dos loucos insanos. Loucos perdidos em seus sonhos de grandeza, garantidos por um sacerdócio que ofendem e conspurcam com suas agendas, bandeiras, necessidades e preferências pessoais.
Assim seja, assim é, assim será.
PS: o Wild Hunt voltou a estar online. Segue o link da notícia: https://wildhunt.org/2022/07/traditional-gardnerian-declaration-draws-accusations-of-transphobia.html

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