Um encontro que mudaria vidas e entraria para a história da medicina e de Belo Horizonte – não sem causar muito burburinho. Assim pode ser definido o momento em que o destino colocou no mesmo caminho um médico então com 32 anos e a paciente de 19 no longínquo ano de 1917, na jovem capital mineira, em um episódio que ecoa até hoje e segue na memória de belo-horizontinos mais antigos.
O rumoroso episódio mostrado na série de reportagens “De Emília a David – Vidas em transição” teve como protagonistas David Corrêa Rabello (1885-1939), mineiro de Diamantina, formado em medicina no Rio de Janeiro (RJ), com especialização em cirurgia (1914) em hospitais de Paris (França) e Berlim (Alemanha), e estabelecido em Belo Horizonte, e Emília Soares (1898-1951), na época estudante do curso normal, tradicional formação para jovens mulheres na época.
Naquele setembro de 1917, Emília Soares, criada e educada como mulher, apelidada Miloca, foi levada pelo pai ao consultório do doutor David, “porque, tendo chegado aos 19 anos, ainda não havia menstruado”, conforme registra o professor, escritor e pesquisador Luiz Morando no seu recente trabalho “Miloca que virou David – Intersexualidade em Belo Horizonte (1917-1939)”.
“É compreensível o estranhamento que o caso provocou na população. Uma cidade via um dos seus conterrâneos deixar de usar vestidos para usar ternos, além de trocar o nome Emília Soares para David Soares. O nome homenageava o médico que promovera o que ficou conhecido como primeiro caso de mudança de sexo em BH”, afirma Luiz Morando.
Ainda que o caso tenha se notabilizado dessa forma, é bom explicar que se tratava de um diagnóstico de hipospádia. Traduzindo: Emília sofria de uma malformação da genitália que acomete pessoas do sexo masculino.
Nos anos seguintes à cirurgia, o jovem David Pereira Soares se casou – com uma antiga colega de escola –, trabalhou como “fiscal do imposto do consumo” e, a partir de 1929, na Secretaria de Agricultura. Muitos dos fios dessa história se perderam no tempo, em grande parte apagados pelo fato de que o casal não teve filhos que poderiam ajudar a contar sua trajetória.
Atendendo a solicitação do Estado de Minas, a Diretoria de Recursos Humanos do governo estadual informou não ter localizado registro de funcionário (a) com tal nome, apesar de acrescentar que servidores “procuraram por todas as vias disponíveis, mas não obtiveram sucesso”.
No Centro de Memória da Medicina (Cememor) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em BH, visitantes podem conhecer parte do episódio – incluindo o trabalho escrito pelo médico David Rabello com base na cirurgia de Emília/David para concorrer ao cargo de professor substituto da então Faculdade de Medicina de Bello Horizonte, em 1918. Em um volume arquivado no Cememor, estão duas teses que lhe deram o primeiro lugar no pleito: “Um caso de malformação genito-urinária tratado cirurgicamente” e “A intervenção cirúrgica na diphteria”.
Na introdução do primeiro trabalho, conforme assinala Luiz Morando, Rabello deixa clara sua postura ética, explicando que o estudo fora publicado “após consentimento explícito do paciente”, e garantindo que David Soares teve “todo interesse em que se desse a maior publicidade possível às circunstâncias que envolvem sua personalidade ‘morphologica e psychica’, para que não paire a menor sombra de dúvida relativamente às suas possibilidades funcionais”.
Quem era adolescente na primeira metade do século 20 não se esquece da história, a exemplo do que testemunha Maria Amélia Amaral Teixeira de Salles, hoje com 91 anos, nascida e criada em BH.
“Todo mundo se conhecia na cidade, e o assunto era muito comentado, principalmente pelos adultos”, diz Maria Amélia, viúva do jornalista e escritor José Bento Teixeira de Salles (1922-2013).
“A cirurgia ficou famosa, falavam que a mulher tinha virado homem. Um fato extraordinário! O doutor Rabello era um médico conceituado, muito conhecido e respeitado”, conta Maria Amélia, que se lembra da casa onde morava o cirurgião: na Avenida João Pinheiro com a Rua Bernardo Guimarães, perto da Praça da Liberdade – um imóvel já demolido, e do qual ela mostra foto nesta reportagem, a partir do original pertencente ao acervo do Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (Iepha).
“O consultório dele ficava no porão da casa, mas era um porão mais alto. Eu vi o doutor Rabello algumas vezes, quando voltava para casa do Grupo Escolar Afonso Pena”, diz Maria Amélia, em relação à escola vizinha, que ainda funciona na avenida.
No livro “Passageiros do tempo”, José Bento escreveu: “Na saída das aulas do grupo escolar, era frequente eu subir a Avenida João Pinheiro até a Praça da Liberdade com meu colega José Sette Câmara. Na esquina de João Pinheiro com Bernardo Guimarães, ficava a casa do doutor David Rabello, médico que, para os meus olhos, era uma espécie de mágico: transformara uma mulher em homem, com uma simples intervenção cirúrgica”.
Fonte (citado parcialmente): https://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2022/08/08/interna_gerais,1385210/o-homem-que-transformou-emilia-em-david-e-assombrou-bh-ha-100-anos.shtml
Nota: David é apenas uma de muitas pessoas que, para o cristão fundamentalista, não existe.
Nenhum comentário:
Postar um comentário