quinta-feira, 11 de agosto de 2016

Heterogênese IV

Ao sair de sua gruta, a festa animou-se mais, os seres todos começaram a lhe render homenagens. Não faltou ter aqueles que, cometidos excessos, postavam-lhe à frente, como galos diante de uma galinha, a se exibir. Tal comportamento jamais prova a maturidade de ser algum, faniquitos e ataques de masculinidade deste tipo só são aceitáveis entre crianças. Dispensava os dotados de grande força, pois eram burros demais para lerem seus olhos. Desprezava os que se faziam de sábios, pois nada tinham a lhe acrescentar. Pouco lhe valia os formosos que perturbam o coração das fúteis, pois como as flores, fenecem pela fragilidade.

Por causa de sua natureza, Lilith não se contentava facilmente, logo o tempo esgotaria e sua maturidade ficaria incompleta. O Espírito das Trevas, seu Pai, pôs a mão no fogo, enquanto a outra tomava uma serpente do deserto para que, juntando os elementos, nascesse Samael, a serpente do fogo negro, que devora o dia. Fê-lo humano e vestiu-o com as areias do deserto. Pois a areia resiste ao tempo sem perder talentos, mesmo não tendo a beleza das flores; o fogo de uma festa para que nunca haja a sombras das rugas de um rabugento; uma serpente para ter o sangue frio ante o perigo. Conduziu-o para a clareira e o fez misturar-se entre os convidados. Ninguém o conhecia ou de onde vinha. Mesmo não dizendo nada, pois como serpente detestava tagarelices, despertou grande fascínio das outras mulheres, pelo seu olhar e riso, de quem guarda muitos segredos. Não há nada mais lascivo que um mistério guardado nos olhos e mais maliciosos que um segredo seguro em lábios sorridentes.

Um dos convidados, dentre os exibidos, não gostou quando percebeu que perdia o domínio da festa para um estranho, que nada tinha de especial, não era alto, forte, belo ou sábio. Cheio de inveja, avançou para expulsá-lo da festa, se possível da região. Com a graça sinuosa da serpente que tinha, fez com que a própria força do oponente o derrotasse. Samael então era um guerreiro que vencia o inimigo de mãos desarmadas, técnica assombrosa que ainda não se vira igual.
Mas um dentre os convidados que se faziam de sábios debochou:

-Lutar só serve para aparentar valentia e incitar violência irracional entre bárbaros.

Sibilando sua língua bifurcada, qual faca de dois gumes aguçada, Samael pôs-se a responder:

-Tal é assim como tagarelar é para frouxos e covardes que querem cercar o mundo inteiro dentro da sua linguagem.

Palavras que não pretendiam a verdade ou o controle do pensamento alheio, que faziam então cada um raciocinar e entender com acharem melhor, coisa que aos ouvidos vem como o sussurro dos ventos, cantando pelas frestas das rochas.

Logo seguiu a chacota dos seres que tinham muita beleza, por terem visto sua língua bifurcada, chamando-o de lagarto grande e linguarudo. Samael dobrou-se e pegou um escudo grande, derrubando as frutas que ali estavam, poliu sua superfície embaçada e colocou diante dos seres dotados de beleza. Vendo o próprio reflexo, apaixonaram-se, qual Narciso, por si mesmos, mas como não podiam ter e dominar o objeto amado, logo a desilusão desfigurou alguns e o desespero lançou ao fogo, outros. Tal como flores que, apesar de multicores, logo murcham quando uma sombra as cobre, já que estão ocupadas demais com sua beleza, para moverem-se e resistir aos contratempos, para melhorar sua vida.

Venceu a força bruta com a força inteligente, a sabedoria mascarada com a sinceridade crítica, a beleza ofuscante com o reflexo da realidade.
Não sabendo porque, Lilith admirou este homem, algo incrível lhe acontecia, mas sua cabeça hesitava ante a necessidade de uma explicação. Por que não conseguia deter os pés, que teimavam em aproximá-la dele? Por que seu coração não estava mais em seu corpo, mas pulsando em sua volta, como um animalzinho de estimação? Por que seus olhos quase lacrimejavam, enquanto uma trovoada atacava sua coluna? Antes mesmo de conhecer Samael, este já era seu marido; antes de tocá-lo, já o sentia em si; antes de deitar-se, já o leito lhe era familiar. Lilith tomou Samael, que ultrapassou pelos umbrais da carne dela, por toda a noite.

A união não foi honrada somente com a consumação carnal entre eles. Em cada enlace de Samael em torno de Lilith, não era a dor da posse que a invadia, algo em si vibrava de êxtase na alma, que sentia a alma de Samael em cópula com a alma dela. De tanto prazer, uma energia emanava em chamas, que eram diferentes do fogo comum vermelho que consome a matéria; estas eram negras, mais poderosas que as vermelhas, pois além de consumir a matéria, consumiam o espírito. Muitos, que ainda festejavam, fugiram de medo, eram de um tipo miserável que se faz passar por adorador das Trevas, mas ao primeiro sinal de revelação delas, caem de joelhos e se escandalizam.

Os poucos seres inteligentes e animais que permaneceram, logo sentiram como é doloroso e amargo o fogo negro, qual brasa ardendo em todo o corpo e como vinho tinto ácido e venenoso, fluindo nas veias.

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