Notandum – Ano XIII – Nº. 24 – set-dez/2010
Autora: PEREIRA, Rita de Cássia Mendes
Resumo: Este trabalho tem por objetivo discutir o papel da
magia na vida cotidiana dos homens da Idade Média e os diferentes discursos
enunciados pela cultura clerical com o objetivo de combatê-la. Oriundas de
antigas tradições, disfarçadas, obliteradas, condenadas pelas ações de uma
Igreja que se pretendia única, as crenças e práticas associadas à magia
sobreviveram em estreita relação com a história mesma dos movimentos de
conversão e de reforma da Igreja cristã. Elas subsistem mais ou menos à margem,
mais ou menos integradas, ao projeto de evangelização, não como um sistema
estruturado de crenças e ritos oposto ao cristianismo oficial, mas em simbiose
com ele, modificadas por ele, a ele também impondo transformações. Ao longo da
Idade Média a magia foi resolutamente condenada pela Igreja, mas os documentos
de origem eclesiástica destinados à divulgação restrita nos meios clericais,
bem como aqueles destinados à difusão da doutrina em mais larga escala, revelam
vários modelos de interpretação e ação frente às crenças, às práticas e às
diversas categorias de mediadores do sagrado a ela associados.
A História religiosa do Ocidente durante a Idade Média
expressou-se como um conflito permanente entre o cristianismo oficial e uma
infinidade de crenças religiosas e práticas de religiosidade que, a despeito
dos reiterados esforços da Igreja, teimavam em permanecer mais ou menos à
margem, mais ou menos integradas às orientações advindas dos centros de decisão
e de elaboração da cultura clerical. Essas experiências religiosas divergentes,
e em especial as práticas de intervenção mágica, se afirmaram, desde os
primeiros séculos de expansão cristã, como objeto de especial preocupação por
parte das autoridades eclesiásticas. Mas as constantes alusões à sua existência
nos penitenciais, nos tratados de demonologia, nas descrições de processos
judiciários e nas considerações gerais sobre o paganismo são indicativos de sua
permanência e de sua importância na vida dos povos do Ocidente.
A magia, como forma de mediação sobrenatural destinada à
explicação e enfrentamento dos problemas cotidianos, é intrínseca à lógica
social e mental do medievo. Em certo sentido, como argumenta Thomas (1991, p.
48 et seq.), as fórmulas rituais de magia são inerentes e parte integrante do
próprio sistema ritual e litúrgico do cristianismo. Reivindicando-se única
intermediária das relações com o divino, a Igreja afirma-se como depositária de
poderes sobrenaturais, que se manifestam, por exemplo, na sagração e no uso de
relíquias cristãs. A tarefa de difusão da doutrina cristã implicou, não raras
vezes, no recurso, por parte dos mediadores oficiais do sagrado, a práticas
heterodoxas de mediação sobrenatural, para as quais concorriam mesmo a
conjuração e a intervenção dos demônios. Aos teóricos da Igreja coube a tarefa
de justificar essa "magia eclesiástica", de situá-la dentro do horizonte
dogmático do cristianismo oficial, de delimitar as suas origens, os seus campos
de ação, seus objetivos e seus efeitos.
Mas a presença da magia na vida cotidiana dos homens da
Idade Média ultrapassa os limites do que era permitido, ou pelo menos aceito,
pela Igreja como um recurso de intervenção sobre a realidade sob o controle dos
clérigos. As fontes cristãs reconheceram e denunciaram continuadamente a
manutenção e divulgação de práticas religiosas e de valores estranhos aos
cânones apregoados pela direção da Igreja e que comprometiam as pretensões
eclesiásticas de monopólio da relação com o plano do sagrado. Aos membros da
hierarquia eclesiástica era imposto que fossem denunciadas as práticas de
mediação sobrenatural cujas experiências deveriam ser excluídas do universo
conceitual da religião e que, portanto, precisariam ser reprimidas ou
enquadradas. Importava, sobretudo, aos representantes do cristianismo oficial,
as práticas de magia exercidas por indivíduos alheios aos fóruns de formação e
expressão da cultura clerical: os magos, feiticeiros e encantadores, agentes
privilegiados de solução dos problemas cotidianos que atingiam os homens da
Idade Média. Usando como recurso diversas formas de exercício das artes
divinatórias e técnicas de manipulação de elementos da natureza, eles foram os
principais encarregados da manutenção da crença nos fenômenos mágicos. Ao poder
técnico-mágico desses indivíduos, especialistas pretensamente dotados de
saberes especiais, e às suas ações, o discurso eclesiástico buscou opor as
realizações dos verdadeiros agentes do sagrado: os santos e clérigos.
Entre os especialistas nas artes mágicas situavam-se os
indivíduos encarregados da solução dos problemas físicos que assediavam uma
população praticamente desassistida de médicos profissionais e mesmo de uma
ciência médica. Na ausência do que nós chamaríamos de serviços médicos
ortodoxos, numerosas espécies de agentes mágicos cumpriam uma função
terapêutica, essencial nas casas miseráveis dos setores rurais como urbanos,
mas também nos castelos e casas aristocráticas.
Para a maioria dos indivíduos acometidos por doenças, como afirma
Braunstein (1990, p. 576), a ―saúde do corpo é um elemento determinante da sua
vida privada‖. O atendimento aos doentes era realizado dentro de suas próprias
casas e estava normalmente circunscrito aos seus aposentos privados. Nas casas
nobiliárquicas, como nas casas populares do campo e da cidade, prestam
atendimento aos doentes religiosos, astrólogos e curandeiros de toda espécie e,
em um universo em que as possibilidades de atuação "profissional" ofertadas às
mulheres estão normalmente circunscritas aos assuntos da vida privada, pelas
curandeiras e parteiras.
Os especialistas nessa ars medica paralela à dos médicos
produziram, a partir da observação e manipulação de elementos da natureza,
inúmeras receitas de unguentos, chás e remédios voltadas para a cura de doenças
dos mais diversos tipos. Ao mesmo tempo herdados e aprendidos, esses saberes e
técnicas necessários à intervenção sobre o corpo humano no sentido de desviar o
curso da natureza e evitar a vitória da morte foram normalmente preservados, ampliados
e difundidos entre indivíduos pertencentes a um mesmo círculo familiar ou
comunitário. Transmitidas oralmente ou por escrito, por meio de livros de
família, as receitas de comidas, bebidas, filtros e unguentos traziam
orientações para a manipulação e aplicação de substâncias materiais; mas,
frequentemente, indicavam, também, pela necessidade de associação das técnicas
de aplicação dessas substâncias com certas fórmulas devocionais, com
sortilégios verbais e técnicas divinatórias, incluindo-se as fórmulas de
decifração de sonhos e de visões extáticas.
A intimidade com esse tipo de "prática médica" implicava,
pois, aos olhos dos homens da Idade Média, uma evidente capacidade de mediação
com forças e poderes extraterrenos e se constituía em uma prerrogativa dos
indivíduos associados ao domínio do sobrenatural que o pensamento eclesiástico
definiu como magicus. Entretanto, exercido em favor do restabelecimento da
saúde das pessoas, este tipo de magia entra com plena oficialidade no cotidiano
e nas representações mentais dos homens do período:
A consciência medieval resgata da antiguidade a idéia da
ação mágica benéfica, que justifica a existência da boa feiticeira que, na
visão popular, e até mesmo na erudita, emprega seus conhecimentos resultantes
de séculos de práticas acumuladas de feitiçaria – para curar ou amenizar
doenças (NOGUEIRA, 1995, p. 36).
Talvez pelo caráter hermético dos conhecimentos inerentes às
suas práticas e pelo poder de intervenção sobre a natureza humana decorrente
desses conhecimentos, os agentes dessa "medicina tradicional popular" foram,
frequentemente, acusados da execução de ações destinadas a provocar a morte, a
doença ou a impotência sexual de indivíduos. Nas parteiras e nos curandeiros,
os indivíduos e comunidades encontraram, muitas vezes, explicação para muitos
dos fenômenos da vida cotidiana que, pela estranheza ou repetição, escapavam à
sua compreensão. Acreditava-se, como ressalta Delumeau, que algumas pessoas
possuíam um poder extraordinário e que conheciam funestas receitas capazes de
provocar doenças ou mesmo a morte de pessoas:
Graças a ele (ou a ela) as desgraças insólitas que atingem
os indivíduos (pois para as calamidades coletivas pensava-se antes na cólera de
Deus) encontravam uma explicação [...]. Elas tinham por origem tal pessoa da
aldeia considerada malévola por causa do seu comportamento estranho, de suas
anomalias físicas ou de uma má reputação, muitas vezes herdada da mãe ou de uma
parenta (DELUMEAU, 1989, p. 376).
A crença na possibilidade de execução de ações de natureza
maléfica, o ódio e o desprezo por aqueles a quem se acusava do exercício de uma
magia destinada à efetivação dessas ações, foram alimentados pela opinião
popular e tornaram-se objeto de inúmeras referências nos penitenciais, em
disposições legais e em processos penais. As acusações mais frequentes apontam
para as ações destinadas a comprometer a saúde física e mesmo a arrebatar a
vida de pessoas, como os sortilégios, a confecção de imagens e o envenenamento.
Com mais frequência do que a historiografia contemporânea
tentou demonstrar, vários homens figuraram nos processos de acusação de atos
maléficos; mas as mulheres constituem, sem dúvida, a maioria dos acusados.
Sobre as mulheres, a quem cabia, como vimos, o mérito da assistência aos
doentes, às parturientes e aos recém-nascidos, pairava a suspeita de que os
seus conhecimentos e habilidades poderiam ser utilizados para a efetivação de
crimes contra a natureza, contra a natureza humana em particular. Atuando na
fronteira entre a vida e a morte, a elas sobrevinha, muitas vezes, o ônus das acusações
da prática de aborto e infanticídio, como da morte e inutilização de homens e
mulheres.
Para esta visão contribuem os inúmeros relatos do exercício
de uma magia erótica ou amatória voltada para a reprodução de fórmulas mágicas
destinadas à solução de problemas e à realização de desejos ligados ao amor e à
sexualidade. Para Caro Baroja, está na origem dessa concepção o modo de atuação
da personagem de Circe dos poemas homéricos, uma mulher fria e calculista que
almejou subordinar, por filtros, encantos e feitiços, os seus maridos:
Poderíamos dizer que existe um "complexo" de Circe, como se
fala vulgarmente de outros (a partir do Édipo) e que é de grande
universalidade. Em parte, a vida amorosa do homem se acha condicionada por ele,
e também é por conta dele que se fala frequentemente, ao referir-se à ação da
mulher sobre o homem enamorado, de encanto e de feitiço (CARO BAROJA, [1975],
p. 189).
Como Circe, outras personagens recorrentes nos textos da
antiguidade grega e latina pela capacidade de realização de encantos amorosos e
de fórmulas destinadas à sedução e consecução de desejos eróticos, se
preservam, por similaridade, no modelo de feiticeira medieval européia,
difundido nos diferentes círculos sociais e culturais, e, em especial, nas
representações literárias das agentes femininas da magia:
A feitiçaria européia está ligada à magia amatória ou
erótica, desenvolvida a partir da Grécia, ou, melhor dizendo, às operações
mágicas vinculadas aos desejos e paixões amorosas, o que faz com que a
feiticeira, além de efetuar elucubrações mágicas, intervenha como intermediária
de casos amorosos, com o auxílio da observação e das técnicas comuns e
correntes às práticas amorosas (NOGUEIRA, 1995, p. 34).
A essas funções acresce, à imagem trivial da feiticeira
européia do período medieval, uma outra, segundo Nogueira, ―subproduto da sua
intervenção como praticante da magia e mediadora amorosa e exigida pela própria
dinâmica do mundo passional‖ (NOGUEIRA, 1995, p. 34). Trata-se da sua
intervenção como envenenadora e perfumista. Definidas e qualificadas pelas
fontes clericais do medievo como "artimanha de mulheres", as várias práticas de
confecção de filtros, perfumes e principalmente venenos, destinados a
subordinar e afrontar a natureza masculina, reproduzem-se nas fontes da Idade
Média.
No século XI, Burchardi de Worms, corrector et medicus,
dirige o seu interrogatório para práticas e receitas por meio das quais as
mulheres, principalmente, acreditavam poder intervir, diabolo impellente, na
saúde como na vida afetiva, sexual e reprodutiva das pessoas. As desconfianças
estavam pautadas sobre os rumores, as denúncias e os processos acusatoriais que
já começavam a despontar, mas se fazem espelhar, também, em estereótipos que
remontam aos vários períodos da história de Roma. A cultura dos clérigos,
durante a Idade Média, condenou resolutamente as várias práticas de magia
sustentadas e difundidas pela porção mais frágil da humanidade: as mulheres,
mais sujeitas às influências e aos desígnios do demônio. A independência
masculina frente aos seus saberes e técnicas – apregoa a cultura clerical –
requer o uso da razão, a estrita subordinação das mulheres à autoridade dos
homens e a adesão a uma vida casta, imune à extrema, insaciável, e porventura
maléfica, paixão feminina.
Pressente-se, aí, nas construções teológicas, a presença de
duas outras figuras arquetípicas: Hécate, a deidade parricida dos gregos,
especialista na arte dos venenos e protetora das feiticeiras, e a lendária
Medeia, dignificada pela tragédia homônima de Eurípedes, que, movida por um
incontrolável sentimento de paixão e vingança, executa suas artes na confecção
de feitiços venenosos:
A cultura dos clérigos, em suas variadas formas de
enunciação, logrou estabelecer uma inevitável associação entre mulher,
erotismo, magia e artes maléficas e reiterou a máxima presente no provérbio
hebreu de que quanto mais mulheres, mais feitiços: ―Podemos supor [...] que as
leis primárias de similaridade se tem aplicado a outros casos que tocam à magia
e à convicção de que as mulheres são mais dados a ela – e por acaso também a
toda ação maligna – que os homens‖ (CARO BAROJA, [1975], p. 196-197).
Sobre o medo da feitiçaria e, em particular, dessas classes
de feitiços inerentes à magia feminina, esteve assentado e se fez renovar, ao
longo de toda a Idade Média, em fontes de diferentes naturezas, o tradicional
medo da mulher. Esse medo plurissecular tornou-se um lugar comum na imaginação
popular e acabou por contaminar a imagem da ‗medicina popular tradicional‘ e de
suas representantes. Por um princípio associativo, as práticas de mediação
sobrenatural voltadas para a cura foram assimiladas às práticas maléficas e
sofreram um esvaziamento gradativo de suas funções comunitárias. Aos seus
agentes, os teóricos da Igreja procuraram negar qualquer relação com o plano do
sagrado e particularmente desde o século XIII esteve implícita, nas
representações clericais sobre a magia, a idéia de uma mediação sobrenatural
para a qual concorria a ação ruinosa dos demônios.
Subordinadas ao julgamento da teologia e da justiça
eclesiástica, as diferentes formas de exercício da magia, e não apenas a magia
feminina, receberam, então, o estigma de uma atividade normalmente associada à
influência demoníaca:
Para o clero [...] tudo o que o homem faz em desconformidade
com a disciplina eclesiástica é diabólico, especialmente quando, para superar
suas dificuldades ou para vencer os males físicos ou morais, em vez de pedir
ajuda à Igreja e a seus ministros, confia mais na consulta de magos e
adivinhos, ministros de Satanás, colaboradores e intermediários dos diabos
(GIORDANO, 1983, p. 154-155).
Para a cultura clerical, as práticas de magia estavam em
contraposição às orientações e desígnios da instituição responsável pela
difusão da "verdadeira religião". A sua sobrevivência foi frequentemente
associada à ignorância de grupos sociais e culturais inferiores (e, por isso
mesmo, potencialmente perigosos). Nas expressões utilizadas para caracterizar o
meio social dos agentes mágicos e de sua clientela, visualiza-se a idéia
corrente de que as práticas de magia eram exercidas e acreditadas, principalmente,
por camponeses "rústicos e ignorantes". Sobre essa tese – da origem e natureza
aldeã dos fenômenos mágicos – sedimentou-se o uso de expressões como
superstitiones, paganiae, idolatria, rustici e idiotae, recorrentes nos textos
medievais, para definir (e, ao mesmo tempo, qualificar) as práticas religiosas
divergentes e os indivíduos a elas associadas. Esses termos predominam nos
relatos constantes dos processos contra os agentes da magia, nos manuais de
inquisidores e nos tratados eclesiásticos, nos quais os atos mágicos e os seus
agentes estão confrontados com os medos, as angústias e ambições dos dirigentes
da Igreja oficial. O seu uso denuncia a parcialidade dos testemunhos que
fundamentam as diversas construções teóricas sobre a magia e os seus praticantes.
Os estudos desenvolvidos por Caro Baroja demonstram como, a
despeito dos esforços de uniformização do pensamento empreendidos pela Igreja,
os indivíduos associados às práticas de magia eram, ainda nos últimos séculos
da Idade Média, uma constante no cenário cotidiano das cortes nobiliárquicas da
Europa:
A bruxa continua a frequentar o castelo senhorial, o paço
episcopal, o Alcazar real. E durante este período, raros são aqueles que
escapam à tentação de a consultar na França, na Alemanha, na Inglaterra e na
Espanha, quaisquer que sejam as sanções previstas (CARO BAROJA, [1978], p.
119).
Nos processos que se avolumam no final do período,
visualiza-se a participação, na condição de agentes, intermediários ou clientes,
de pessoas pertencentes às categorias superiores da sociedade feudal em
práticas de necromancia, na confecção ou encomenda de feitiços e na efetivação
de prestígios diabólicos, mesmo quando, a partir do século XIII, uma associação
mais evidente começa a se estabelecer entre estas práticas mágicas e a ação
demoníaca.
Chama particular atenção a participação de clérigos, mesmo
aqueles de elevado nível de formação intelectual, em fatos relacionados ao
exercício da magia, seja como clientes, seja como agentes diretos da execução
de práticas mágicas. Os cânones eclesiásticos buscaram estabelecer diferenças,
no julgamento e definição das punições, entre os membros da aristocracia
clerical que acreditavam na eficiência das fórmulas mágicas, que as estudavam e
que traduziam para o latim os seus poucos registros escritos, enfim, "que se
deixam tentar pelo mundo secreto", e os representantes da magia popular.
Porque, como argumenta Caro Baroja (1992, p. 48-49), ―não se podia por na mesma
esfera a [magia] praticada por homens de estudo, tocados de impiedade, e a
praticada por gentes populares‖.
Os poderes eclesiásticos reconheceram, muitas vezes, as
diferenças de propósitos e as fronteiras entre aqueles que, adeptos de uma
"magia natural", estavam interessados tão somente na aquisição de sciencia e os
que, afastados dos dogmas e preceitos cristãos, tornavam-se adeptos da "magia
diabólica". Mas, nem por isso amenizaram suas críticas e proibições às práticas
de qualquer natureza: ―os teólogos católicos recomendavam que não se estudasse
a primeira para não cair tentado na prática da segunda (CARO BAROJA, 1992, p.
48). Inúmeros debates e concílios foram realizados e ações foram implementadas
visando a proibição das práticas de magia nos meios clericais. Mas os vários
processos e punições envolvendo clérigos e escolares por prática de astrologia
ou necromancia provam a ineficácia do discurso e das ações eclesiásticas.
Os agentes mágicos, bem como aquela infinita parcela da
população que com eles se relacionava, nos privaram de uma contribuição mais
eficaz para a caracterização das suas atividades e do universo religioso dentro
do qual puderam exercer, mais ou menos abertamente, as suas funções. As suas
impressões e experiências estiveram normalmente subordinadas ao controle e julgamento
dos agentes de produção e difusão da cultura clerical ou relegadas ao plano da
oralidade. Como salienta Caro Baroja (1992), no conjunto das informações que
possuímos sobre a magia e a bruxaria, o maior número refere-se àqueles que
acreditam nas bruxas e não àqueles que se julgam a si mesmo bruxos ou bruxas
(CARO BAROJA, 1992, p. 16).
A inexistência de um método eficaz de resgate de informações
procedentes dos agentes mágicos, independente do julgamento eclesiástico,
apresenta-se, então, como um real empecilho à reconstrução do universo
religioso dentro do qual eles estavam inseridos. Mas a leitura dos próprios
documentos de origem eclesiástica relativos à magia proporciona a impressão
muito clara da presença, no cotidiano dos homens do Ocidente, de inúmeras
categorias de mediadores entre o mundo natural e as forças sobrenaturais.
Valorizados por uma parcela significativa da população, nas cortes como nas
aldeias camponesas, no campo como na cidade, esses indivíduos atuaram sempre,
ainda que inconscientemente, no sentido da manutenção de resíduos de crenças e
ritos pré-cristãos no seio da população recentemente – e parcialmente –
cristianizada.
Os textos procedentes dos primeiros séculos de Idade Média
testemunham a existência, entre as "massas rústicas" do Ocidente Europeu, de
cultos e crenças associados a sistemas religiosos anteriores à expansão cristã.
Mas esses cultos e crenças – uma infinidade de tradições étnicas, de elementos disformes
tomados de antigas tradições folclóricas que o processo de cristianização não
logrou eliminar por completo – estão longe de se constituir em um sistema
religioso organizado, em um paganismo estruturado em torno de deuses, doutrina,
com seus adeptos e sua hierarquia clerical:
O [paganismo] era há muito tempo um espelho partido, um
universo rompido. Certamente subsistiu em nomes deformados de divindades e sob
a forma de mentalidades e de comportamentos mágicos, mas sem panteão um pouco
organizado que fosse, nem sacerdotes (ou sacerdotisas), nem corpo de doutrina.
Era talvez vivido, mas não era pensado nem desejado [...]. Sobrevivência de um
politeísmo de fato e restos das religiões antigas nem por isso significam
cultos coerentes de fertilidade, manutenção de um paganismo consciente de si
mesmo, organizações clandestinas de liturgias e sobretudo anti-cristãs
(DELUMEAU, 1989, p. 373).
Amplamente combatidas pela instituição eclesiástica, as
crenças e as formas variadas de culto que ―o cristianismo dissimulou mais do
que suprimiu‖ (DELUMEAU, 1973, p. 202) foram submetidas, ao longo da Idade
Média, a um inexorável processo de assimilação ao cristianismo oficial, ou pelo
menos de reinterpretação à luz dos seus dogmas. Como salienta Eliade:
Após a sua conversão, mesmo superficial, as inúmeras
tradições étnicas e religiosas, bem como as mitologias locais, foram
homologadas, isto é, incorporadas na mesma ―história santa‖ e expressas na
mesma linguagem, a da fé e da mitologia cristãs [...]. As mesmas formas e
variantes do legado pagão foram sistematizadas num mesmo corpus mítico ritual
externamente cristianizado (ELIADE, 1984, p. 253).
Essa incorporação das formas e variantes do legado pagão ao
sistema mítico-ritual do cristianismo efetivou-se com a colaboração dos setores
laicos da população e, em especial, das massas agrárias, cada vez mais
propensas a se reconhecerem como cristãs.
A única certeza fornecida pela documentação atualmente
examinada é a de um sincretismo religioso que, em particular nos campos, por
muito tempo sobrepôs crenças trazidas pela Igreja a um fundo mais antigo. Mas
as populações se consideravam cristãs e não tinham o sentimento de aderir a uma
religião condenada pela Igreja (DELUMEAU, 1989, p. 373).
Simbioses e sincretismos seriam, assim, as palavras-chaves
para definir as relações entre a religião oficial e o fundo mais antigo de
religiosidade sobre o qual a Igreja logrou sobrepor suas verdades e seus ritos.
Movimentos de mão dupla, esses conceitos ilustram a força do movimento,
promovido pela Igreja, de conversão ao cristianismo, mas, também, o contributo
das culturas laicas no sentido da criação e manutenção de formas próprias de
exercício da religiosidade, subordinadas, pelo menos externamente, às crenças e
ritos cristãos.
Apesar das constantes admoestações e sanções eclesiásticas,
os pensadores da Igreja tiveram de se confrontar com um comportamento coletivo
reincidente no uso de práticas cerimoniais pertencentes a um fundo tradicional
de cultura e com a concorrência de agentes de mediação sobrenatural estranhos
aos meios clericais. Os teólogos viram-se obrigados a pensar essas práticas e
esses agentes à luz dos dogmas essenciais do cristianismo, a refletir sobre a
realidade dos efeitos atribuídos aos seus atos e sobre o papel ocupado pelos
demônios na sua execução. Os seus escritos manifestam, entretanto, múltiplas
formas de interpretação e tratamento dos fenômenos definidos como mágicos.
Uma primeira divergência diz respeito à realidade dos
fenômenos relacionados à magia. Entre os escritores dos primeiros séculos de
cristianismo é evidente uma generalizada crença na magia. Entretanto, já na
Alta Idade Média, começa a transparecer, nos textos eclesiásticos, uma atitude
de dúvida – tendendo para a negação – em relação à eficácia dos atos mágicos.
Esta tendência ao ceticismo encontra-se já em Santo Agostinho. Para o bispo de
Hipona, não há que se crer nestas "coisas falsas e extraordinárias",
representações de imagens, transformações aparentes, ocorridas durante os
sonhos sob influência direta do demônio.
A partir de Agostinho, os teólogos vão desenvolver dois
princípios essenciais, claramente refletidos nos cânones, penitenciais,
concílios e decretais: um primeiro, o princípio da irrealidade dos atos
mágicos, relega os poderes dos magos e o resultado de suas ações à categoria de
miragens ou ilusões; o segundo, afirma a presença demoníaca nas atividades
mágicas. Os fenômenos mágicos não passariam de ilusões e prestígios diabólicos
e Satã, onipotente e irresistível, na sua luta incessante contra o poder
divino, figura como protagonista de toda magia.
Fiel ao primeiro dos princípios enunciados pelo pensamento
Agostiniano, o bispo Agobard de Lion, no século IX, expõe, no seu Liber de
grandine et tronitus, sua absoluta descrença em relação à eficácia da magia.
Para Agobard, só a Deus caberia o controle sobre os fenômenos da natureza. Os
atos e crenças relativos à magia situavam-se, portanto, no terreno das
superstições, das palavras vãs, insustentáveis quando submetidas à
obrigatoriedade de juramento. As pessoas que neles acreditassem deveriam ser consideradas
loucas, estúpidas, idiotizadas, ignorantes.
No século XI essa tendência ao ceticismo, que orientara a
ação da Igreja nos primeiros séculos de expansão, continuou a manifestar-se
como desprezo, ironia e rejeição em relação às massas sumariamente
cristianizadas que ainda insistiam em acreditar na eficácia dos atos mágicos.
Objetivando desqualificá-las, Buchardi abusa das expressões superstição,
perfídia, ilusões, fantasias cegas e falsas crenças para referir-se às "mágicas
artes". Ao mesmo tempo, busca defini-las como ações maléficas ou ilusões
diabólicas, e alertar, como já o fizera Agostinho, para os perigos espirituais
do envolvimento com elas.
A tese agostiniana do sonho ou ilusão diabólica orientou,
também, as primeiras ações destinadas à correção daqueles que se obstinavam em
recorrer à magia. Nos séculos iniciais da Idade Média, quando o arcabouço
ideológico, teológico e imaginário do cristianismo ainda estava em processo de
construção, a assimilação dos antigos paganismos – mas, também, a desnaturação
ou eliminação de crenças e práticas religiosas a eles associados – se
constituíram em mecanismos eficazes de conquista dos povos aos quais se
destinava o esforço de evangelização. Já nas definições do Concílio de Tours,
de 813, ou no Canon Episcopi, um guia de visitações episcopais redigido por
volta de 906, as atividades mágicas foram objeto de condenações formais. Os
teóricos da Igreja denunciaram as práticas de magia pela sua estranheza em
relação aos princípios de disciplina e hierarquia, apregoados quotidianamente
pelas diferentes categorias de clérigos. Os que nelas acreditassem estavam
subordinados ao poder de Satã. Tornavam-se, assim, passíveis das mesmas penas
que os condenados pelo exercício de cultos não oficiais.
Nessa mesma perspectiva, os penitenciais, principais
instrumentos de controle da vida cotidiana da população, demonstravam uma
especial preocupação com as crenças subjacentes às práticas religiosas
divergentes. Mas, ao condenar formalmente as práticas da magia, eles visavam,
sobretudo, as crenças a ela relacionadas que, neste momento, cumpria esvaziar
de todo sentido. Visualiza-se aí uma atitude de pragmatismo com relação às
massas que lhes dava sustentação. Em período de evangelização, de conversão, lutava-se,
antes de qualquer coisa, contra a preservação, danosa à ação doutrinária da
Igreja, de crenças consideradas por ela como supersticiosas. Como argumenta
Nogueira (1995): ―A igreja do século XI ainda argumenta com as crenças
populares, procurando demonstrar a ilusão que elas contém, punindo
exemplarmente a crença, e não a ação mágica‖ (NOGUEIRA, 1995, p. 35).
Toda ação repressiva apoiava-se, então, antes de tudo, nos
perigos espirituais a que estavam sujeitos os homens, aproximados, através de
certas crenças e práticas, ao universo satânico. Excomunhões, penitências,
penas pecuniárias, aplicadas às diferentes categorias de magos e aos seus
clientes, e graduadas de acordo com o tipo de magia ou de categoria social do
acusado, resumem o procedimento acusatorial utilizado pela Igreja durante toda
a primeira parte da Idade Média. A Igreja esforçava-se por fazer valer as suas
críticas e reprimendas, mas a reincidência da elaboração de cânones e
penitenciais relativos ao assunto são uma prova clara da sobrevivência de
certas crenças e práticas tradicionais e, portanto, da inoperância da Igreja no
sentido de sua proibição:
Aqui, chocam-se duas tendências: uma religiosidade que é
vivida pela coletividade e entremeada de crenças tradicionais e a tarefa da
ortodoxia de ganhar o poder sobre as consciências e levar a coletividade a
aproximar-se e sujeitar-se ao discurso eclesiástico (NOGUEIRA, 1995, p. 13).
Irrealidade dos atos mágicos e ilusão demoníaca foram, portanto,
as idéias que nortearam a postura oficial da Igreja frente às práticas e
crenças relacionadas à magia, pelo menos até o início do século XII, quando
vários movimentos religiosos dissidentes começaram a tomar corpo no Ocidente.
Sobre essas idéias se apoiaram as leis, os documentos e os textos que serviram
de justificativa para os primeiros atos de repressão e os primeiros processos
contra os magos, mas também contra os simples crentes na magia.
Na passagem do século XII para o XIII, novas idéias passaram
a orientar a abordagem eclesiástica sobre as atividades mágicas e seus agentes.
Particularmente no XIII, século dos grandes debates teológicos envolvendo
princípios filosóficos, ordens e tendências religiosas, a Igreja reafirmou a
participação no plano do demoníaco de toda crença e de toda ação que, alheia ao
seu controle, aspirasse a qualquer contato com o sobrenatural. Acirra-se a luta
pelo monopólio das relações com o sagrado:
A Igreja do século XIII, a Igreja das Universidades e das
Summae canônicas e teológicas, mestra de toda ciência e senhora de todo poder,
a um passo de realizar o sonho hierocrático rigorosamente difundido por
Inocêncio III, já não podia considerar com a tolerância habitual a
subsistência, nem sequer nas margens da cristandade, de antigas e não
integradas superstições (CARDINI, 1982, p. 73).
O demônio passa, pouco a pouco, a ocupar um papel, na vida
dos homens, tão importante quanto o do próprio Cristo. A ele foram
relacionadas, até o final da Idade Média, todas as formas de exercício das
artes mágicas, para as quais se procura afirmar, desde então, a efetividade.
Tomás de Aquino, por exemplo, preocupado com a participação dos demônios na
vida dos homens, denunciou, em inúmeras passagens da sua Summa Teológica, os
praticantes da superstição, vício que, por excesso, é contrário à religião
(vitium religioni contrarium). Embora não tivesse utilizado a palavra magia na
sua classificação dos fatos entendidos como supersticiosos, Aquino revelou uma
particular preocupação com as adivinhações (superstitionem divinationum). Para
ele, as práticas divinatórias demandavam, necessariamente, consultas aos
demônios que eram atendidas mediante pactos tácitos ou expressos – quae
daemones consulit per aliqua pacta cum eis inita, tacita vel expressa. Através
da invocação dos demônios, argumenta Aquino, os indivíduos manifestam sua predisposição
ao rompimento com Deus.
Sobre as idéias de Aquino assentaram-se as diversas
transformações do pensamento religioso que contribuíram para a afirmação de
novas concepções e novos procedimentos relativos à magia. Atuaram no sentido da
renovação e sedimentação do novo pensamento eclesiástico, os movimentos
heréticos e as várias respostas voltadas para o seu desbaratamento, as diversas
formas de expressão do movimento mendicante e o processo de atualização do
aparato inquisitorial. Também contribuíram para essa renovação a presença permanente
das guerras, das epidemias e os cismas religiosos, efeitos dos grandes
fenômenos sócio-econômicos e político-religiosos, sintomas de uma crise geral
que, nos dois últimos séculos da Idade Média, impressionaram os líderes da
cristandade Ocidental.
Como resposta aos desafios materiais e espirituais
decorrentes da crise, os representantes da cultura dirigente procuraram
corrigir e resgatar para o domínio da cristandade todos aqueles que,
agrilhoados a antigas tradições, agiam no sentido contrário à expansão da fé
cristã. E o fizeram inserindo-os no contexto da luta universal entre Deus e
o(s) demônio(s). Um clima de obsessão demoníaca foi, então, engendrado nos
centros de elaboração eclesiástica e acabou por contaminar a população do
Ocidente.
Nas elaborações doutrinárias e na legislação civil,
procedeu-se à paulatina assimilação entre as atividades mágicas e as heresias e
resgatou-se dos modelos culturais clássicos a idéia de pacto entre os agentes
mágicos e as forças demoníacas. Pautados em textos da antiguidade latina, as
fontes jurídicas e os escritos teológicos dos últimos séculos da Idade Média se
esforçaram por atribuir aos magos, e em especial às representantes femininas da
magia, a capacidade de dominação dos deuses às paixões humanas:
Na antiguidade clássica é evidente que houve consciência de
que a técnica das magas se achava, em grande parte, baseada na existência de um
contrato; de um pacto, em suma. Há que se aprofundar no estudo da natureza do
pacto e em sua relação com outras situações que podemos definir como legais ou
ilegais: chega a analogia jurídico-religiosa a tal grau que, em determinados
casos, a ação mágica se pode considerar como um operação de chantagem. O
ameaçar os deuses entra no jogo, como meio (CARO BAROJA, [1975], p. 184-185).
Na transição da Idade Média para a Idade Moderna, as idéias
de pacto e servidão demoníaca passaram a orientar as construções teológicas
sobre a magia. Os agentes mágicos adquiriram, aos poucos, reais poderes de
intervenção sobre a natureza, agora por força de um contrato estabelecido com
os demônios. Satã, assim como Deus o era para os agentes do bem, tornou-se
senhor de todos aqueles indivíduos associados às crenças e práticas, que, no
momento anterior, a Igreja tratara como frutos da ilusão demoníaca. Elaborada
sob o papa Gregório IX, a bula Vox in Rama, reflete a obsessão do diabo que,
desde então, começou a se impor à sociedade a partir das estruturas de poder
eclesiástico.
Os novos processos transformaram, paulatinamente, o perfil
dos acusados: de indivíduos isolados, dedicados a práticas de intervenção sobre
a vida pessoal, eles tornaram-se membros de uma seita satânica, cuidadosamente
estruturada, com seus ritos e sua hierarquia. Por outro lado, procedeu-se a uma
progressiva assimilação entre as práticas de magia e os vários movimentos
divergentes que afrontavam a hegemonia da Igreja. Essa assimilação entre magia
e heresia, cujos primeiros rumores aparecem desde o século XII em resposta aos
primeiros grandes movimentos divergentes, foi objeto de renovadas discussões
que culminaram com a elaboração, sob João XXIII, da bula Super Illius Specula,
em 1326.
Na luta contra o poder crescente de Satã – para onde os
movimentos divergentes pareciam apontar – teólogos e juízes potencializaram as
acusações e redesenharam as imagens dos réus segundo estereótipos de uma
considerável profundidade. As técnicas de repressão foram precisadas e
aperfeiçoadas. Com a anuência das altas hierarquias civis e eclesiásticas, o
número de processos aumentou e as acusações ganharam uma similitude espantosa.
Adaptadas desde o século XII ao objetivo de erradicação da heresia, as técnicas
de procedimento inquisitorial foram utilizadas, desde então, também contra as
práticas de magia, paulatinamente unificadas, nos textos cristãos, sob a
designação genérica de maleficium.
No século XIII, os textos revelam ainda algumas atitudes de
cautela por parte da Igreja. Algumas reservas foram feitas, principalmente
quando se requisitava um aumento do poder repressivo de certos setores da
própria Igreja. Delumeau resgata informações de que, em 1275, o papado haveria
rejeitado os pedidos dos dominicanos que lhe solicitavam um poder de inquisição
contra a feitiçaria, condicionando este poder às provas de que esta estivesse
manifestamente ligada à feitiçaria, mas salienta: ―Combate de retaguarda! Pois
a apreensão diante do poder do demônio aumentava (DELUMEAU, 1989, p. 351).
A tese do pacto satânico, cada vez mais presente nos
tratados teológicos, nos manuais de inquisidores e nos processos judiciários do
final da Idade Média, insere, de forma peremptória, os acusados nos meandros de
uma história que ultrapassa os limites de sua própria vida. Elaborados no
último quarto do século XIV, os manuais para inquisidores contribuíram
sobremaneira para o alastramento da repressão contra as práticas de magia:
neles procederam-se à catalogação dos crimes e à regulamentação dos processos
inquisitoriais destinados à eliminação dos assim chamados cultos satânicos. No
Directorium Inquisitorium de Nicolau Eymerich, de 1376, o culto ao diabo, em
suas diversas formas, aparece como elemento determinante das atividades mágicas
e os agentes da magia são claramente assimilados à condição de heréticos. O
Manual do Inquisidor, de Bernard Gui foi responsável pela enunciação de duas
idéias fundamentais para o período posterior: a da existência de uma doutrina
demoníaca e a de uma epidemia de bruxaria que se alastrava sobre a cristandade.
Ao lado dos manuais de inquisidores emerge, no circuito fechado das elaborações
doutrinárias, uma série de tratados teológicos destinados a estabelecer uma
maior precisão teórica para os assuntos relacionados à magia.
Submetidos ao julgamento eclesiástico, os atos mágicos,
mesmo aqueles voltados para o enfrentamento de problemas e desejos pessoais,
foram, assim, nos séculos finais da Idade Média, esvaziados de suas funções
comunitárias; e os fenômenos mágicos, a princípio definidos como ilusões
demoníacas, evoluíram, gradativamente, para a condição de práticas reais,
determinadas a partir de um pacto demoníaco. As concepções eclesiásticas sobre
a magia tenderam à afirmação de sua participação em um plano demoníaco inscrito
no contexto da grande luta universal entre o Bem e o Mal. Assistimos, assim, ao
alvorecer da grande batalha cultural contra toda forma de religiosidade
divergente que conheceria o seu apogeu na Idade Moderna.