terça-feira, 20 de dezembro de 2016

Heterogênese VIII

Este décimo merecerá atenção, pois não se abatera diante das adversidades, permanecendo com grande interesse em saber então no que acreditar, a que seguir. Culpando-se por causa da ignorância de respostas que poderia dar ou arriscar, sentindo-se muito árido, irá ao único lugar onde alguém iria, quando precisa meditar. Longe, o máximo possível de tudo, andando enquanto suportasse, acabando por chegar em meio ao deserto que precedia um grande lago, bem próximo a um monte escarpado. Um lugar que, em outras eras foi o local onde Lilith, junto ao seu Conselho das Trevas, elevou-se pelo poder do fogo negro, o que tornou este lugar tal qual é. Logo a noite chega e com ela o frio, manda o bom senso que se procure abrigo, para proteger-se e dormir até o início do dia. Quis a coincidência que escolhesse justamente aquela caverna, onde Lilith e Samael passaram sua noite de glória.

Nas paredes da caverna, Lilith escreveu suas memórias, para nunca deixar que o fato fosse esquecido, para que sempre que ali passasse, pudesse alegrar-se em recordações gratificantes. Este homem citado, o décimo, vendo as inscrições, põe-se a tentar traduzi-las e compreendê-las, pois estavam na língua familiar de Lilith, uma língua original da qual muitas outras surgiram, como a deste homem. Muito do que havia lá foram transferidas aos seus herdeiros, memórias estas, uma parte encontra-se neste livro. Muita coisa foi esquecida e até escondida, por que algumas eram muito íntimas, não poderiam ser citadas a qualquer um, outras eram melhores para o gênero humano que fossem esquecidas, ou a sede de destruição que o homem tem, as subverteria para seus interesses escusos.

Uma vez traduzidos os escritos, suas mensagens trariam grande alegria e satisfação, não por responder a todas as questões, nem se pretendia tal presunção. Eram apenas opiniões de grande sabedoria que, como tais, podem ser de grande auxílio. Como um ensinamento básico do qual, cada um, segundo as possibilidades e necessidades que a razão tenha, pode ser melhorado e aperfeiçoado. Uma obra é isso, não é de forma alguma sagrada ou um dogma a ser conservado hermético à passagem do tempo, das gerações e das descobertas. Mesmo o mais privilegiado visionário jamais poderia supor até que grau evoluiria as gerações vindouras. Tais escritos, por tantas condições exigidas para seu entendimento, pediam um trato delicado, ensinando o recomendável e guardando o indizível pelos motivos já ditos anteriormente.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

Apostolado profano II

Que tal isso para coçar suas barbas e fundir suas cucas: verbo é tudo que vem do verbal, mas também pode ser venial, até mesmo genial de minha parte, pois assim é que sou:
(aversão) Sou aversivo a todo clássico em todos os gêneros, como também em número e grau.
(conversão) Sou conversivo, não conversível a converter esses clássicos, a melhorar mesmo, sobre uma perspectiva mais sagaz.
(Inversão) Não é simples assim. É colocar a coisa toda dentro dessa sagacidade, não apenas inverter os significados.
(Perversão) Estamos acertados, bem me dizem se me chamam de pervertido, pois verter é o meu forte, antes mesmo de haver uma versão, é o que é a perversão!
(Reversão) Exatamente assim, sou o reverso de suas medalhas lapidares, pretendo mesmo ser mortalíssimo. Mato-me todos os dias e o que mais se pode dizer quando se trabalha?
(Subversão) Versão das profundezas, versos abissais, é a região que meu monstro verbal habita e eu nado e vocês nada de entender.
(Diversão) Ficamos combinados assim. Não sou subversivo, pois não há sistema ou Estado em literatura. Não sou reversivo, pois não vou reverter meus tempos aos seus, pretérito imperfeito. Não sou pervertido, pois não faço mais do que a inocência do original mereça. Divergência é tudo o que peço. E é isso que pretendo ser: divertido!

terça-feira, 6 de dezembro de 2016

O resgate de Enki

Em termos humanos, os Deuses chegaram há alguns anos em Gaia, estabelecera-se, prosperaram. O conforto e a segurança deram a oportunidade para os Deuses ampliarem seus domínios e riquezas. Em pouco tempo, os Deuses esqueceram de seus valores e logo a necessidade de mais espaço, mais casas, mais mantimentos e mais riquezas fizeram com que Anu cobiçasse a conquista das florestas e terras além.

A cada primavera em Gaia, Deuses e Deusas uniam-se, isto nunca foi caso para criar problema ou escândalo. Apenas um farsante se oculta na transcendência. Apenas um castrado condena o prazer, o sexo e o amor. Os Deuses aumentavam sua prole, a espécie divina se espalhava. Mas nem todos estavam felizes. Ninlil cobiçava o poder de Ninmag e constantemente vinha incomodar Anu, reclamando do sumiço de Enki a cada seis meses do ano de Gaia. Em termos divinos, uma semana. Aventuras e relações paralelas eram coisas costumeiras e normais para os Deuses. O Amor era uma força antiga que era respeitada pelos Deuses e reverenciada por não ter começo, meio ou fim. Foi Ninlil quem inventou o ciúme e essa estranha mania que nós humanos temos em querer tornar quem amamos algo de nossa posse. Pior, nós inventamos os tabus, as fronteiras e as proibições que nos tem tornado tão pobres e indigentes no amor.

Anu não tinha tempo ou paciência para estas queixas menores de uma esposa ressentida, ele sabia muito bem que Enki deveria estar nos braços e pernas de outras Deusas, não era surpresa ou novidade o boato da corte que Enki estava convivendo com Ninmag. Mas o apetite de Ninmag pelo corpo de Enki estava começando a ser um empecilho para os projetos e os planos de Anu. Para achar e resgatar Enki, Anu teria primeiro que encontrar o local onde Ninmag habitava e isto certamente estava além de seus domínios.

Anu convocou uma assembleia de emergência onde, fingindo uma preocupação paternal, requisitou aos Deuses uma comissão para reaver Enki. Um pedido e tanto, visto que apenas Enki se disporia a tal risco. Cronos, vendo nisto uma oportunidade, avisou Rhea, sua esposa, de sua decisão, pegou seu escudo e espada, deixando-a aos cuidados das irmãs dela, Thetis, Phoebe e Selene. oh, povo do mundo, podem imaginar por que ou como um Deus pode desafiar e quebrar as inúmeras proibições e maldições feitas aqueles que saíssem da Cidade dos Deuses e entrassem na floresta sagrada! Por muito menos nós desafiamos e quebramos a lei divina de não matar! Cronos ao menos o faz por altos ideais como honra, virtude e coragem.

Cronos foi quem primeiro ousou adentrar na densa floresta, deparou-se maravilhado com a fauna e a flora. Cronos foi quem nos flagrou em algum canto de Gaia mas não nos deu muita importância naquele momento. Ele lembrou de que Enki lhe contou sobre como dominou as terras baixas, pedindo em oração silente ao Espírito que ali habitava por proteção e salvo-conduto. Cronos bufou, ele é um Deus guerreiro, mas se isto funcionou com Enki, poderia muito bem funcionar com ele.

- Eu invoco ao Espírito que habita a Floresta Negra e vos saúdo. Eu venho em paz, não em guerra. Eu tenho que cumprir esta missão. Eu não vim para invadir vosso domínio, mas para achar onde Ninmag habita e de lá retornar com meu irmão Enki. Para isso, eu devo passar por vosso território, então eu vos peço que apazigue as plantas e as feras para que não me ataquem. Eu não usarei minha espada contra vós se não usardes as vossas contra mim. Passarei tão rápido e despercebido como o vento e seguirei meu destino.

Segui-se um imenso silêncio em toda a floresta. O único som foi o de algo batendo, pulsando, aproximando-se de Cronos. Ali, para o terror e medo de Cronos, o Deus mais guerreiro e corajoso que existiu, apresentou-se o Deus da Floresta Negra. Cronos deixou seu escudo e sua espada caírem e ajoelhou-se diante de tanto poder e majestade.

- Cronos, meu filho! Tu e toda tua gente são bem-vindos, pois sou vosso igual. Tua missão tem um propósito maior e mesmo assim terás que pagar um terrível custo!

- Meu Senhor! Eu não vos conheço mas eu, Cronos, o Valente, não receio coisa alguma nesta vida, exceto o vosso poder.

- Cronos, meu filho, o Valente! Assim como uma força maior que tu o colocaste nessa missão, uma força maior te protege e te conduz. Chame a isto de Destino, se quiser. Tu te ajoelhas diante de mim porque todos nós somos governados por estas forças. Nem eu nem Deus algum pode obrigar ou constranger a ser existente para que se ajoelhe diante dele.

- Então vós podeis ajudar-me a achar onde Ninmag habita e resgatar meu irmão Enki?

- Além da Floresta Negra, além das montanhas que cercam a Cidade dos Deuses, há o Grande Mar. Eu posso te conduzir até a praia mas mais além não. Tu deverás transpor o Mar Negro até a Ilha Negra. Lá encontrará o santuário de Ninmag.

Cronos foi deixado na orla, sozinho, ao sabor da sorte. Ele é um Deus que conhece tudo de campanha, de estratégia, de movimentação de tropas. Enki saberia como percorrer a superfície deste imenso mar e chegar nessa ilha, mas não Cronos. De dentro das águas, uma estranha criatura marinha aproxima-se de Cronos, saúda-o e oferece ajuda.

- Salve Cronos! O teu destino é tão brilhante quanto sangrento. Eu posso te levar até a ilha de Ninmag.

- Tu não temes o poder de Ninmag, a Senhora dos Mares?

- Eu sou um dos muitos Espíritos que habitam estas águas e todos nós somos livres e autônomos, não temos um Senhor ou Senhora.

- E qual a tua paga?

- Quando tu estiverdes no santuário de Ninmag para resgatar teu irmão, tu podes trazer de volta meu báculo que Ninmag furtou.

Cronos foi levado até a ilha onde Ninmag tinha seu santuário e ali outra estranha criatura veio ajudá-lo. Conduzido por uma trilha, por entre pedras, precipícios, plantas venenosas e bestas ferozes, Cronos chegou incólume até a montanha e a entrada da caverna onde Ninmag estava mantendo Enki em cárcere.

- Qual é a tua paga?

- Nobre Cronos, livra-nos da dominação de Ninmag.

Cronos assinalou com a cabeça e entrou na caverna. O ambiente da caverna assustaria qualquer um, menos Cronos. O único espanto que ele teve deu-se quando encontrou seu irmão Enki, em um estranho abraço com Ninmag, penetrando e sendo penetrado.

- Quem ousa conspurcar meu santuário? Adiante-se, mostre-se, apresente-se, pois eu sou tua igual!

- Eu sou Cronos! Eu vim para levar Enki!

- Então tu morrerás aqui!

A intensa refrega entre Cronos e Ninmag fez com que a caverna estremecesse. Apesar de Cronos ter habilidade e experiência com batalhas, ele mal conseguia se defender dos ataques de Ninmag. Com um único golpe, Ninmag desarmou Cronos e estraçalhou sua espada e escudo, arremessando-o com violência contra a parede da caverna. O poder, a força e a fúria de Ninmag eram demais para Cronos que, aturdido, quebrado, sangrando, apenas podia esperar pelo golpe final. O que ele receava não era tanto o fim de sua existência, mas a derrota em uma batalha. Desesperado, a ponto de desmaiar, Cronos apanhou uma planta bulbosa que estava ali perto, apontou na direção de Ninmag e apertou a parte bulbosa da planta, lançando o pólen no rosto dela. A reação, imediata, inesperada, foi o entorpecimento e a queda de Ninmag.

Mesmo dolorido e sangrando, Cronos pegou e levou Enki de volta à Cidade dos Deuses. Enki protestou, apesar das boas intenções de Cronos e de sua missão ter um nobre propósito. Deu à criatura da ilha a planta como paga. Devolveu o báculo para a criatura do mar. Deu sua armadura ao Deus da Floresta.

quarta-feira, 16 de novembro de 2016

Heterogênese VII

Causaria então uma grande admiração os lobos, os gatos, os mochos, os ratos e os morcegos e tantos outros seres, que uma fogueira não mereça mais atenção do que a noite que os cercam. Com a liberdade que lhes é peculiar, vão quando precisam, quantas vezes forem necessárias, perto do fogo, para secarem-se e, no mesmo instante, voltarem ao seu lar, na noite, sem tropeçar ou errar o caminho.

Pobre do tolo homem que, uma vez iluminado pela luz, voltar seus pés para a noite. Sua mente esclarecida não aceita a profundidade e a extensão da noite, mesmo diante da luz. Cega seus olhos, desconsidera ser possuidor de uma mente, de uma vontade e de liberdade, uma vez que animal também é.

Com a mesma tolice, com que trata sua luz, traça tratados e regras para legislar as trevas, achando que o oculto pode ser facilmente cercado por leis humanas mesquinhas, quando as Trevas eram anteriores a tudo, mais extensas que a luz, mais profundas que os olhos. De tábua em punho, volta cambaleante como exausta mariposa para seu lugar, a fonte de energia que necessita, volta para a luz e para a fogueira, trazendo seu traçado do oculto e das Trevas. Tantas são as coisas que lhe caem na cabeça, que tenho que dize-las uma por vez, mas são, muitas vezes, somadas e recaídas de uma só vez sobre este incauto e prepotente homem.

Primeiro: ao ver a chama do fogo, a verá mais brilhante do que se lembra, por um mero fenômeno fisiológico animal, porem tomando este fenômeno como advertência e ira divinas, se prostrara ao chão e se arrependera (se não se matar), esquecendo ou negando ou destruindo sua obra oculta, seu tratado das Trevas.

Segundo: desacostumado a viver e andar sem o auxílio de lanternas, seus pés o traem, podendo fazê-lo cair e morrer aos pés da fogueira, ou dentro dela, o que será tomado por seus companheiros como um sinal da misericórdia divina que castiga os impuros e preserva os justos do mal que estes carregam.

Terceiro: diante de uma narrativa tão fantástica sobre o oculto e as Trevas, os companheiros do pobre homem sentem-se ofendidos, ou seu deus negado, armam-se de tochas ou de tições como armas divinas e executam o infiel impiedosamente, sadicamente, tantas vezes quantas as neuroses primitivas assim achar necessárias.

Quarto: os companheiros deste, tão tolos quanto ele, acham que a obra do oculto e o traçado das Trevas operado por ele, tem um certo de verdade. Sob as orientações dele, iniciam brincadeiras com o oculto, acreditando nessas fantasias, que mudarão suas vidas, suas riquezas ou seu destino depois da morte. Na qual descobrirão, tarde demais, de se tratarem tão somente de brincadeiras infantis sem efeito algum.

Quinto: aceitando e operando com o que acreditam ser as leis das Trevas, cometerão despropósitos, que falam alto na moral humana, logo serão saqueados e destruídos por cruzados, provindos de outras fogueiras. Como fiéis da Luz, ficam próximos uns dos outros, para espantar as Trevas e o mal, como um exército de facção, reacionária e irracional.

Sexto: aceitando, porém operando longe das vistas dos seus familiares e cometendo abusos em nome das Trevas, pelas leis que os homens traçaram, os espíritos das Trevas envergonhados com a tolice dos homens, revelam-se aos seus olhos primitivos. Com espanto e horror, reagem, já que não correspondia nem um pouco com que suas tolas leis apregoavam. Logo fogem para a fogueira mais próxima, para arrepender-se e negar as Trevas. Não obstante, nunca pertencesse às Trevas ou às Luzes, apenas que, como animais mamíferos e pretensamente racionais, preferem a felicidade quente, iluminada e superficial das Luzes.

Sétimo: tendo, ainda assim, continuado com suas ignomínias em nome de algo que estão muito longe de conhecer, pouca atenção dando aos avisos dos espíritos das Trevas, como se fossem donos dos espíritos e do destino, sobre o qual recairá a consequência dos próprios atos. Eliminar-se-ão uns aos outros, pelas próprias mãos, movidas por sua loucura de controlar as Trevas. Deste fato tomarão conhecimento, ainda que tardio, seus antigos familiares, que se regozijarão em nome de deus, que fez cair sua divina justiça sobre os pecadores infiéis.

Oitavo: este serve para aquele que, resistindo a tudo isso e ainda continuar seus crimes, em nome do que não pode controlar. Eis que os espíritos das Trevas farão uma audiência, para julgar a este e sentenciar. Não o espírito, uma vez que ainda é pequeno, porém precioso para seu Pai. Ele o fará cair no jugo dos que sofreram, pela loucura cometida em nome do oculto. Saberá então que a existência de uma vida é tão preciosa e cara demais para ser privada. Mesmo os seres inferiores, ao seu grau de evolução, onde os homens gostam de se colocar acima, para esquecer que são tão animais e bestas, quanto outro animal qualquer, sujeito a virtudes e estupidezas da mesma grandeza.

Nono: movidos pelo ódio, por terem sido afastados do seio dos seus familiares, pelas doutrinas que acreditavam poder comandar as coisas ocultas e os seres das Trevas, começam as mesmas cruzadas e o mesmo terror, característicos do fanatismo dos profetas iluminados, coisa que em nada ajuda a humanidade e aumenta a infâmia contra as Trevas.

Décimo: abençoado seja por sua prudência e lembrança de não ser mais que um simples homem, tomará suas toscas leis das Trevas e as comparará com as leis das Luzes, dentre as já existentes, reveladas aos profetas iluminados. Constatará, surpreso, que não são diferentes, uma vez que ambas foram feitas pelo homem. Disso perceberá,embora confuso,não se abaterá, guardará a derrota da sabedoria humana diante do oculto, tanto das Trevas quanto das Luzes, pois Verdade alguma pode ser escrita impunemente, por qualquer autor que seja.

sexta-feira, 11 de novembro de 2016

A dragonesa

Quando os Deuses não conseguiam se fazer ouvir nas assembléias convocadas por Anu, eles iam tentar a sorte nas audiências concedidas por Enki. O jovem Deus desfrutava do prestígio e da influência que os Deuses lhe davam, mas toda a agitação e burburinho cessou instantaneamente, prevalecendo um silêncio sepulcral, assim que chegou essa Deusa.

Certamente haviam Deusas nas audiências de Enki e, sem dúvida, cada uma tinha sua quota de beleza e poder que inspirava cortesia e respeito. Mas esta Deusa, ainda que tenha sido a última a chegar, foi se aproximando de Enki para ser atendida primeiro. Ela não parecia ser mais velha do que Ninlil, sua esposa, não obstante emanava uma majestade e uma sabedoria tão antiga quanto a de Antu. Sem dizer uma única palavra, deixou a todos prostrados de joelhos, em silêncio, enquanto prosseguia pelo salão até ficar diante de Enki.

- Enki, o Habilidoso! Assim te chamam os Deuses. Estás pronto para tuas contas?

- Quem és tu? Eu conheço a cada Deus e Deusa aqui presente, mas tu inspira mais respeito e temor do que todos.

- Tu me conheces muito bem, jovem Enki, embora não tenhamos sido devidamente apresentados. Devo dizer diante de todos nossos negócios pendentes, Enki?

A Deusa tinha firmeza, postura, dignidade, personalidade e poder. Para os padrões do mundo divino ela inspirava tanto o afeto materno quanto o sensual, mas para os padrões do mundo humano ela certamente inspiraria medo e terror.

Oh, povo do mundo que, com sua soberba e orgulho, tem se colocado no centro do universo e usurpado o trono dos Deuses! O sábio lhes diz que o que existe não serve para tua satisfação, as coisas são como são. Tudo que existe tem forma, mesmo os Deuses e que se saiba que apenas farsantes e vigaristas se ocultam na transcendência. O povo do mundo, vaidoso, gosta de imaginar e vestir os Deuses como pálidos reflexos de si mesmo e acabam tomando a figura como real. Os Deuses não são nossas sombras, nem nossos delírios, nem nossas projeções mentais. Os homens criam arquétipos para entender os Deuses, mas somos nós as sombras, os reflexos dos Deuses. Ainda que não gostemos do que vemos, os Deuses e Deusas manifestam a Verdade e, se nos chocamos, é porque nos negamos, nos recusamos a ver nossa essência ali repousada.

A perturbação que atingia Enki não era humana, mas divina. Aquela Deusa, por sua atitude e aparência, incendiava seu amor filial e seu amor erótico. Ela era tão alta quanto Antu, seu corpo esguio e curvilíneo era coberto com escamas em tons de vermelho, vinho e preto. Nas dobras e extremidades do corpo haviam belos e pequenos esporões. Nas mãos e nos pés, garras. Em sua cabeça, além do cabelo liso e negro, três chifres a coroavam. Era como um grande lagarto e fêmea, uma dragonesa.

- Diga o que quer, mas diga quem tu és.

- Eu sou Ninmag, filha de Nintu, neta de Mummu, descendente direta daquela que é mãe de todos nós, a Deusa que emergiu do Caos. O que eu demando é que cumpra tua promessa tornando-se meu consorte.

- O que dizes? Enki é meu marido!

- Irmãzinha, não desejo tirar tuas posses e honrarias. Pouco me importa que vivam juntos como casal. Teu precioso Enki será meu cortesão, dele gerarei meus filhos e a casa de Anu será nossa casa. Não te convém evocar teus direitos ou monopólio sobre o corpo e o amor de Enki, pois não existe senhorio e propriedade no amor e no relacionamento.

- Enki, o que significa isso? Tu me disseste que eu sou a tua amada, a única e a primeira.

- Irmãzinha, antes de tu Enki tocou e conheceu o meu corpo. Tu ainda és jovem, com o tempo há de aprender quais são teus reais direitos e descobrirás a função do consorte.

- Tu falas como se muitos anos tivesse, mas tua aparência é tão jovem quanto a minha. Por que nos trata como crianças?

- Irmãzinha, não se deve conhecer as coisas pelo seu aspecto externo. As coisas não são como parecem ser. Eu te chamo de irmãzinha, mas se tu evocares teus direitos de linhagem e herança, saiba que eu sou tua tia.

Enki estava visivelmente nervoso, se sentindo humilhado e acuado. Ele havia conquistado com muito risco e esforço o tão sonhado lugar na corte de Anu, algo que somente era assegurado graças ao seu matrimônio com Ninlil. Entretanto a tentação de ser o consorte de Ninmag enchia sua mente com idéias de poder e riqueza que o tornaria tão grande senão maior do que Anu. Estes sonhos teriam um fim manchado com sangue.

Ninlil não estava gostando do que via. Não tinha ela, junto com outros Deuses e Deusas, descido ao mundo chamado de Gaia e construído a colônia de Aldebaran? Ninmag não estava nem no grupo nem na caravana que havia escapado do Caos. Ninlil era uma Deusa jovem, mas por orgulho e vaidade negava-se a aceitar as verdades das coisas. Assim como nós, humanos, ela queria perceber o universo todo de sua perspectiva centrada em seu ego. A tragédia teria seu efeito devastador aumentado, pois tudo que Ninlil quis, naquele momento, foi aprender os segredos que Ninmag tinham, para seu uso futuro.

segunda-feira, 7 de novembro de 2016

Apostolado profano I

Aos que quiserem descobrir minha causa e a origem do que defendo, olhem-se no espelho e perguntem ao natural, se lá viu coisa igual. Poderão vociferar que desta arte abuso, por fragilidade de espírito, por falta de maturidade ou por caprichos emocionais. Mas se, por menos amor, se acreditam em tantas besteiras e se cometem tantas bobagens, que se dê ao menos a tais pretensos adversários, o direito de defesa.

Se vocês podem condenar uma pessoa pelo que fala, vós dizeis-me o erro da minha pronúncia. Mas atenta-vos! Poderei também denunciá-los. Pois falam por vós mesmos, não pelo sagrado que defendem, apenas pela ideia deste e pela conservação de seu poder. Toda vossa organização, um bando de fanáticos, igualmente supersticiosos, vive mais pelos símbolos do que pelos ensinamentos deixados. Devo dizer que estão mais próximos de estar a me justificar, que a provar sua certeza.

Tudo foi um erro desde o princípio. Como pode condenar o adultério, se mesmo esse mestre foi fruto de um? Não foi sua progenitora amasiada a outro homem, após ter tido com o Rei? Este mesmo Rei, não foi o que enviou o casal até uma região proibida? Podem garantir-me, que não foi ali que teu mestre aprendeu todos os truques que sabia? Que mérito pode haver se, tal sacrifício, já era sabido e constava em contrato? Apenas uma desculpa para nos conduzir ao conformismo.

Agora peço vosso testemunho. Não foi na verdade vossa igreja erigida por um militar romano? Esta é a igreja que defendem. Uma organização criada pelo homem, para substituir o Império Romano, com o apoio de dogmas de fé, mas da mesma forma agressiva. Mas em nenhuma das palavras, das que podemos admitir que vieram do vosso mestre, existe a ordem para tal organização, nem para a conquista armada, nem mesmo orienta para tantos dogmas, nenhuma palavra sobre tanta burocracia religiosa! Acumularam riquezas e poderes, perseguiram, assassinaram, injuriaram, enquanto os homens só queriam crescer! O pecado só existe onde há proibição. Proibição só existe onde há culpa. Culpa só existe onde há ignorância. A ignorância só existe onde há fanatismo.

O homem já está crescido. Está numa fase de pré-puberdade, deve estar livre para ver seus erros, desimpedido para corrigi-los. A tutela de vossa organização está dispensada. Precisamos mais do que esta consciência velha e enferrujada. Vivam por vossas custas, se são tão santos, cultivem vossos próprios víveres. Deixe a riqueza, do homem e desta terra, ao homem! Pois, se estas são tão materiais e conspurcadas de pecado, certamente não as merecem! Vivam em vossas vidas miseráveis, regadas de renúncia e abstinência. Porque nós, queremos e temos o direito de conhecer, experimentar e descobrir todas as sensações e prazeres da vida.

Para este novo tempo, para as novas consciências, uma crença não lhes faltará. Mas virão a descobrir uma, que terá dignidade e sabedoria. Com apoio à razão e à consciência individual, com orientações simples e sem burocracias mirabolantes Com a força e o poder que sempre lhes pertenceram. Pois sempre existiram, bem antes de tantos impérios, mas nunca interferiram, pelo respeito que sempre merecemos. Estes sim, sempre presentes em nós, em nossos espíritos e corações, como deveria ser um deus, apenas aguardando o dia que despertássemos!

Ao invés de nos fazer aceitar o sofrimento, nos ensinaram a lutar. Ao invés de nos fazer aceitar as fatalidades, nos ensinarão a prevenir. Ao invés de nos fazer aceitar o domínio, nos ensinarão a autonomia. Ao invés de nos fazer aceitar o dogma, nos ensinarão a raciocinar. Ao invés de nos fazer aceitar o pecado, nos ensinarão a experimentar. Ao invés de nos fazer aceitar a culpa, nos ensinarão a responsabilidade. Eles vivem nas trevas, de onde tudo veio. Eles vivem em nós, nós vivemos por eles. Não irão quebrar o vaso, pois conhecem bem o conteúdo. Não irão guardá-lo na adega, pois sabem bem como usá-lo. Não irão trocar seu vinho, pois lhes valem muito sua serventia. Não porão pesadas cargas, pois se importam muito com nosso crescimento.

quinta-feira, 20 de outubro de 2016

Heterogênese VI

Finda as notícias, Lilith disse então aos ventos:

-Rejeitou-se a herança da estupidez de Adão, porque Caim foi conduzido pelas Trevas e com a vontade que possui, pelo uso do intelecto, concordou com o que via, o que revela que Caim, apesar da progenitura, é um dos nossos.
Será bem vindo sempre entre nós, quando necessitar de morada, por ter feito na geração de Adão, o que não poderíamos fazer senão indiretamente. Ainda esta noite, ele já tem lugar garantido no Reino de meu Pai. Tu, corvo, mais ainda, será como um dos reis, será o mestre da espionagem e da intriga, por quem àqueles que buscam desvendar as verdades mais obscuras e secretas será um protetor, colaborador e incentivador.

A partir de então, iniciou um embate mais forte entre o Espírito das Trevas e o Espírito das Luzes, por causa da inveja que o Espírito das Luzes teve, ao ver que o Conselho das Trevas foi formado de seres que tinham se elevado até uma existência em espírito, antes que os seus. Mais ainda quando outros seres de outros planetas, semelhantes à Terra, foram se juntando, ao descobrirem a chave que permite entrar nos reinos dos corpos astrais. Tratou então, o Espírito das Luzes, de começar a criar seus homens santos, profetas e messias, tanto para converter os demais seres da terra a seu favor, quanto para elevar estes escolhidos às esferas de existência superior.

Para que toda a terra seguisse a estes escolhidos não seria, certamente, pelas ações benevolentes que tais acreditavam praticar. Pior seria que, os malefícios seriam atribuídos aos homens, aos espíritos e ao Conselho das Trevas, quando o mais razoável seria a própria consequência das ações humanas, incentivadas ou não pela loucura dos profetas iluminados. Estes, tão confusos entre si, que mal reconheceriam aos seus colegas. Cada qual,chamaria por um nome a seu modo, o Espírito das Luzes, de Deus único e verdadeiro, perseguindo tantos outros pela mesma ousadia, guerreariam entre eles mesmos pela confusão e loucura que acomete o fervor dos homens das Luzes, tal como mariposas em torno da chama.

terça-feira, 4 de outubro de 2016

A Cidade dos Deuses

A obra de Enki impressionava, nunca houve nem nunca haverá algo igual. Quando os Deuses desceram da montanha, saindo de suas tendas, ficaram assombrados desde o capitel que foi estrategicamente colocado para a comitiva de Anu passar. Após a passagem, um amplo páteo, cuja extensão abarcava toda a montanha, com pedras polidas firmemente assentadas. Mais adiante, uma incrível engenharia canalizava os rios, represava os lagos e silos drenavam o excesso de água. Para concluir a reforma, Enki reforçou com uma muralha a serra que separava o vale do pântano do grande mar, com comportas para regular a vazão de água.

O pântano, depois da intervenção de Enki, não exalava mais o cheiro de morte nem tinha mais o cenário de decomposição. Onde era o pântano, Anu podia orgulhosamente nomear de Cidade dos Deuses, que ele iria tirar proveito para reafirmar seu poder, seria calculadamente repartido entre os Deuses. Não estava nos planos nem no projeto, mas Anu separou a Cidade dos Deuses em setores que seguissem a divisão que havia sido conduzida com êxito na montanha dos Deuses. De forma arbitrária, com uso de força, por chantagem, por influência familiar, não havia limites para Anu realizar seus objetivos.

Deu a Urano o setor que foi chamado de Hélade, deu a Saturno o setor que foi chamado de Albion, deu a Elohim o setor que foi chamado de Canaan e deu a Amon o setor que foi chamado de Kemet. Reservou para si e seus familiares a montanha dos Deuses e o grande pátio em volta dela, chamando-o de Campos Elíseos. Como antes, os melhores materiais Anu guardava para si e por concessão onerosa dividia o excedente entre os demais Deuses. Exceto Enki, um Deus jovem que ainda não tinha qualquer direito de linhagem ou nobreza, recebeu um décimo do que porporcionava a Anu e ganhava o dízimo dos outros Deuses. Como se não bastasse essa afronta, Anu lhe deu o setor que foi chamado de Sumer, aumentando ainda mais a raiva e a revolta dos Deuses contra Anu.

Durante a assembleia, onde Anu instituiu as divisões, as obrigações, as vassalagens, a corvéia e os direitos, Nana percebeu que Ninlil estava com um semblante diferente. Com a escusa de que iria buscar com ela mais vinho para pôr à mesa, fez a Ninlil a pergunta que sua curiosidade lhe apertava na garganta.

- Irmã, aconteceu algo contigo, pois não tens mais a face de menina, mas de donzela. Por acaso inauguraste teu templo?

- Oh, minha senhora Nana! Eu não sei se fico feliz ou embaraçada. Eu abri meu templo e devo estar com a graça do Deus…

- Embaraçada estás, sem dúvida! Venha, minha irmã, que é mister clamar pelos teus direitos de linhagem. Rápido, vamos a Antu, senhora de todas nós, para que possamos clamar a herança.

Tolo, efêmero e mortal leitor, que se empenha em coisas fúteis, acumulando patrimônio, vivendo em uma era onde a Razão se sobrepõe cada dia mais contra a Emoção, certamente não sabe, nem nunca se deu conta, de onde vem a fonte da riqueza. A ti será concedido mais misericórdia do que foi dada a Anu, que olvidou a quem pertence a majestade e o trono. Anu não possui a coroa, a coroa convive com ele enquanto assim desejar. Anu não tem força na armadura nem poder em sua espada se não tiver a unção sagrada dada por Antu. Nisto reside um mistério, homens, que não podemos ver de frente.

Voltemos aos jovens Deuses, os quatro que, com Enki, construíram a maravilhosa Cidade dos Deuses. A estes não foram dadas tantas honrarias, toda fama e riqueza seria dada a Enki e isto é justo, porque assim contrataram enquanto temiam por suas vidas às margens das terras baixas. Levaram apenas o coração das jovens Deusas, com quem viveriam como casais, em habitações simples, nas bordas mais afastadas, como que para se proteger das intrigas e disputas entre os Deuses, mas isto apenas providenciou o ninho para as tragédias que se seguiriam.

Mesmo Enki não estaria sempre com boa fortuna como parece estar. Sumer era seu jardim, ele tinha uma bela esposa e uma impressionante mansão com muitos servos sob suas ordens. E mesmo com tudo isso, mesmo com o reconhecimento que ele tanto buscava, sua admissão na corte de Anu, os elogios e aplausos, nada disso conseguia afastar o terrível sonho ou a soturna presença da Deusa desconhecida que o visitava desde a primeira noite que passou na Terra Negra.

Ainda não se sabe por que sonhamos nem como os sonhos são formados e seus significados são desconhecidos. Pesadelos, por outro lado, são uma estranha forma da nossa consciência ou de nos avisar ou de nos castigar. Para nossa sorte ou azar, sonhos e pesadelos se desfazem ao acordarmos. Nem isto Enki desfrutaria. Durante uma de suas audiências que ele concedia aos outros Deuses para ouvir seus pedidos e considerarem interceder por estes diante de Anu, Enki achou que estava sonhando acordado, ou pior, tendo um pesadelo acordado. Bem diante dele, causando intensa agonia, uma sensação mórbida, a figura e a presença da deusa desconhecida, que causava terror até aos Deuses que lá estavam e nunca haviam tido sonhos ou pesadelos com ela.

terça-feira, 20 de setembro de 2016

O sonho de Enki

Enquanto Enki e seu grupo trabalhavam duro para satisfazer a ganância de Anu, cinco jovens Deusas observavam de uma distância segura a movimentação frenética na região proibida das terras baixas.


Elas estavam acompanhando os jovens Deuses há algum tempo, com certa ansiedade e expectativa, enquanto eles marchavam em direção à Terra Negra. Uma delas, Ninlil, ficou particularmente apreensiva quando Enki ensaiou os primeiros passos nas terras baixas. Anat percebeu que ela estava transtornada e resolveu quebrar o silêncio fúnebre.


- O que aconteceu, Ninlil? Suas faces róseas perderam a cor, sumiu o seu sorriso fácil, uma nuvem paira em sua cabeça. O que perturba teu coração?


- Cala-te, Anat! Não te emociona ver nossos irmãos caminharem para a morte?


- Não é teu amor fraternal que te consterna, Ninlil. Eu te vi diversas vezes suspirar, quando olhava e falava de Enki.


- O que espera que eu diga? Que eu gosto de Enki? Qual de vós está aqui que não seja por estar preocupada com seu amado? Quem pode me condenar, censurar, repreender? Quem pode proibir, cercear, conter o amor? Maldito seja aquele que tornar o amor em vergonha.


- Ora, não precisa ficar tão brava! Veja, Enki está passeando em cima das terras baixas. Nada aconteceu a ele!


Ninlil volta sua atenção a Enki e sente como se um peso caísse de suas costas. De canto de olho percebe que suas irmãs também parecem estar mais aliviadas. Então ela tem uma ideia.


- Irmãs, vejam que eu estou certa. Nós todas temos bons motivos para estarmos aqui. Façamos nosso acampamento aqui, assim poderemos acompanhar os nossos amados e ajudá-los em segredo.


De imediato, as jovens Deusas concordaram com um estrondoso clamor de alegria, o que chamou a atenção dos jovens Deuses. Estes contentes, perceberam que não eram de todo desvalidos e renegados. Secretamente cada um levava em seu coração a atração, o interesse e o amor por uma dessas Deusas. O burburinho e a proximidade delas foi a melhor paga que poderiam ter.


Os trabalhos seguiam, dia a dia, noite a noite, por sete dias inteiros, sem cessar, para então os Deuses descansarem ao sétimo dia, como sempre fizeram desde tempos imemoriais, celebrando o sabbatu em memória de antigas Deusas, cujos nomes se perderam nas brumas do tempo, mas os Deuses se recordam delas como mães dos Deuses. Com a providencial ajuda das jovens Deusas, na noite de Sexta, todos comeram e beberam em homenagem às Deusas mães. Depois os Deuses e Deusas foram até o acampamento para cada qual compartilhar o leito. Dormiram, por fim, após algumas horas de ginástica intercorporal.


Naquela noite e nas seguintes, Enki foi assombrado por um pesadelo com uma Deusa desconhecida lhe falando e mostrando o futuro sangrento que aguardava os Deuses.


- Enki, o Habilidoso! Assim te chamam os Deuses. Breve, muito em breve, tu terás a devida oportunidade de me levar à tua casa. Nunca esqueça de teus votos, Enki!


A voz desta Deusa estranha surtia um efeito inesperado e constrangedor em Enki. Sentir a presença dela era como se Enki estivesse diante de Ninlil e de Nana, mas como uma mesma Deusa pode acender o amor filial e o amor erótico ao mesmo tempo?


Cenas perturbadoras do futuro dos Deuses, com pais matando os filhos, filhos matando os pais, mães devorando sua prole. Mas o que mais o aterrorizava era uma criatura, escura e pequena, que surgia e se espalhava como praga, a todo consumindo e dominando, tomando até o lugar dos Deuses. Ao acordar assustado, viu que Ninlil também não teve sonhos agradáveis e ambos guardaram segredo de seus pesadelos.


Os trabalhos prosseguiram até sua conclusão quando só então Enki pôde receber em seu acampamento Anu e sua comitiva. Os Deuses puderam admirar boquiabertos a obra de Enki e Anu tratou de realizar a inauguração da Cidade dos Deuses com toda formalidade e cerimônia. E Enki pôde observar, petrificado, uma terrível sombra pairando sobre a coroa e a cabeça de Anu.

domingo, 18 de setembro de 2016

Heterogênese V

Ao sair de sua caverna, junto de Samael para conhecer seus ministros, amigos verdadeiros e leais, chegou do leste um corvo, grande como uma coruja, forte como águia, inteligente como só um corvo poderia ser. Pousou no ombro de Lilith que; por obra de seu Pai, o Espírito das Trevas; de sua língua desenrolou-se um papiro, que continha a notícia da perdição de seu rival, Adão e da sua desgraça, por causa dos filhos que teve com Eva, a serviçal dele, já fora do Éden, nestas palavras testemunhadas pelo corvo:

-O Deus de Adão formou de uma de suas costelas outra mulher de nome Eva, para fazer-lhe companhia. Eva, já grávida, comeu o fruto da Luz, comendo assim da carne deste Deus e fez com que Adão também cometesse o mesmo erro.
Deus sentindo o erro e a culpa em suas crianças, com sua carne em seus ventres clamando por justiça, expulsou-os do Éden, deixando-os à própria sorte. Por ter sido alimentado pela Luz, como também por estar fora do Éden, o feto de Eva desenvolveu-se muito rapidamente, dois meses antes da expulsão e sete depois, sendo portanto considerados carnais os sete últimos.
Foi assim que, na noite do sétimo dia do sétimo mês, que veio a nascer o primogênito que foi chamado de Caim, cujo significado é: aquele que veio do pecado original.
Depois deste, somente sete anos depois, no nono dia do nono mês, nasceu Abel que significa: o preferido da Luz. Assim Caim logo teve que partilhar o rebanho e a colheita com Abel, a quem cabia a melhor parte, já que era o preferido. Abel tratava dos carneiros e das árvores frutíferas, Caim tratava dos bodes e das ervas rasteiras. Como não podia competir materialmente com Abel, Caim se esmerou em ter uma mente privilegiada com raciocínio e reflexão. Em suas considerações, começaram a surgir dúvidas, a respeito da unicidade como homem de seu pai, a respeito da existência do Deus dele, perguntava-se para quem esse Deus mostraria a importância da sua obra em detração a outras atribuídas ao demônio.
Entre seus bodes e cabras, perambulando entre as montanhas, como se perguntasse a elas, com os olhos, qual a razão de tanto mistério. Por causa de uma cabra desgarrada, desceu até um vale, até então proibido por ser considerada morada de demônios, lá ficou conhecendo outras tribos,outros povos e homens que, evidentemente, eram como ele.
Satisfeito, com uma série de questões resolvidas provisoriamente, quis partilhar com seu irmão a descoberta. Este, porém, preferiu matar-se, diante do simples fato de haver outros homens que não seu pai ou outros deuses que não o seu. Adão em loucura igual à de Abel, atribuiu a culpa a Caim, que foi banido e amaldiçoado. Caim, por mais que estivesse magoado, logo esqueceu da injustiça paterna, pois foi morar junto aos povos que descobrira e criara forte amizade.

sexta-feira, 12 de agosto de 2016

A humanidade em desencanto

O ser humano quer entender a existência do mundo, das coisas e de si mesmo. Para entender a sucessão de pessoas e eventos, o ser humano criou o mito, a lenda e a história. Para o estudo desse processo, desse fluxo, chamado história, o ser humano separou em Eras esse conceito abstrato que nós chamamos de tempo. A ilusão de movimento, de sequência, criou a ilusão da passagem do tempo, mas quem passa é o mortal, não o tempo. Não há o Tempo, apenas a eternidade do espaço e as ações dos eventos. O valor do tempo é tão abstrato quanto o valor do dinheiro, o valor apenas existe enquanto o ser humano assim determinar.

O ser humano determina as Eras conforme certas características. Determinados eventos ou situações são alterados, então a humanidade iniciou outra Era, mas frequentemente os germes e indícios da “Nova Era” estão presentes na Era que sucumbe.

Dizemos que a Era Moderna foi marcada pelas revoluções, mas a ideia de direito, de cidadania, de república, de parlamentarismo, de limites aos poderes absolutistas estão presentes quando a Grã-Bretanha fez o Rei João promulgar a Carta Magna.

Dizemos que o Pós-Modernismo foi marcado pelo fim da Segunda Guerra Mundial, mas muita coisa aconteceu no meio do caminho, como a Segunda Colonização, a Primeira Guerra Mundial, as guerras de independência de várias colônias europeias, o fim do Império Otomano, o surgimento de outros Impérios. Entender o Pós-Modernismo sem incluir a Revolução Industrial é o mesmo que entender o Rock’n’roll sem incluir o Blues. Entender a Revolução Industrial sem incluir o Capitalismo é o mesmo que entender a Renascença sem incluir o Mercantilismo.

A Era Moderna é uma era de crueldade, pois o avanço industrial e tecnológico serve para expropriar o trabalho e a vida de muitos. O avanço da ciência e da tecnologia tem seu uso mais prático e imediato em melhorar a capacidade humana em matar seu semelhante. Matou-se e mutilou-se mais gente em poucos anos do que em vários séculos. Entre a Primeira e Segunda Guerra, as necessidades militares deram origem à prótese, uma segunda destinação à ciência e à tecnologia. Aqui começa o fim da ilusão do indivíduo, do corpo, do organismo, como sendo coisas necessariamente orgânicas e pertencentes à natureza. O ser humano entra em uma crise de meia idade. A Era Moderna foi cruel, o Pós-Modernismo é desumano. O homem entra em uma crise existencial, filósofos contemporâneos desconstroem todas suas falsas convicções, ideias orientais desconstroem a ilusão da existência da pessoa do indivíduo.

Cruel e desumana, a Era Contemporânea deve muito de seu conforto, facilidade, fascínio, massificação, plastificação e coisificação, ao que foi originalmente desenvolvido para fins militares. As ideias antes elitistas das revoluções do princípio da Era Moderna se tornam a fonte para estudantes e intelectuais da Classe Média, de onde surge a Contracultura. Grupos, subgrupos e setores da sociedade, antes sem voz e sem expressão, começam a se organizar, surgindo o Feminismo e a luta pelos direitos civis para todos.

O Espírito do Tempo torna tudo um produto de massa, tudo pode e será comercializado. A Indústria Pornográfica surge como uma resistência do sistema ao Amor Livre. As ideias reacionárias surgiram como uma resistência do sistema aos ideais de esquerda. Surge o rádio, a televisão, o cinema, tornando massificado o acesso à informação. Surgem diversos métodos contraceptivos, a princípio para controlar a gravidez indesejada e as doenças venéreas que se tornaram endêmicas durante as guerras mundiais. A sociedade é sacudida por casamentos inter-raciais, pelo divórcio e pela fertilização in-vitro.

O homem sonhou com liberdade e um mundo melhor desde que surgiu neste planeta. Agora ele tenta frear, sem sucesso. A criatura superou seu criador. A Igreja não pode nem consegue mais amedrontar ou deter a Ciência. O Governo não pode nem consegue mais manipular ou controlar o cidadão.

O ser humano desafia a fronteira do real e do virtual, surge a internet, a rede de computadores, a inteligência artificial, a vida artificial, a rede social artificial. Se o humano é um conjunto de partes [corpos] que constituem um sistema [organismos], então também é humana nossa persona virtual, uma vez que sua manifestação dentro do universo virtual é resultado do conjunto de partes [programas] que constituem um sistema [realidade virtual]. Não é mera coincidência, então, quando um cientista afirmou que isto que chamamos de realidade não é nada mais senão o programa de um enorme computador.

quinta-feira, 11 de agosto de 2016

Heterogênese IV

Ao sair de sua gruta, a festa animou-se mais, os seres todos começaram a lhe render homenagens. Não faltou ter aqueles que, cometidos excessos, postavam-lhe à frente, como galos diante de uma galinha, a se exibir. Tal comportamento jamais prova a maturidade de ser algum, faniquitos e ataques de masculinidade deste tipo só são aceitáveis entre crianças. Dispensava os dotados de grande força, pois eram burros demais para lerem seus olhos. Desprezava os que se faziam de sábios, pois nada tinham a lhe acrescentar. Pouco lhe valia os formosos que perturbam o coração das fúteis, pois como as flores, fenecem pela fragilidade.

Por causa de sua natureza, Lilith não se contentava facilmente, logo o tempo esgotaria e sua maturidade ficaria incompleta. O Espírito das Trevas, seu Pai, pôs a mão no fogo, enquanto a outra tomava uma serpente do deserto para que, juntando os elementos, nascesse Samael, a serpente do fogo negro, que devora o dia. Fê-lo humano e vestiu-o com as areias do deserto. Pois a areia resiste ao tempo sem perder talentos, mesmo não tendo a beleza das flores; o fogo de uma festa para que nunca haja a sombras das rugas de um rabugento; uma serpente para ter o sangue frio ante o perigo. Conduziu-o para a clareira e o fez misturar-se entre os convidados. Ninguém o conhecia ou de onde vinha. Mesmo não dizendo nada, pois como serpente detestava tagarelices, despertou grande fascínio das outras mulheres, pelo seu olhar e riso, de quem guarda muitos segredos. Não há nada mais lascivo que um mistério guardado nos olhos e mais maliciosos que um segredo seguro em lábios sorridentes.

Um dos convidados, dentre os exibidos, não gostou quando percebeu que perdia o domínio da festa para um estranho, que nada tinha de especial, não era alto, forte, belo ou sábio. Cheio de inveja, avançou para expulsá-lo da festa, se possível da região. Com a graça sinuosa da serpente que tinha, fez com que a própria força do oponente o derrotasse. Samael então era um guerreiro que vencia o inimigo de mãos desarmadas, técnica assombrosa que ainda não se vira igual.
Mas um dentre os convidados que se faziam de sábios debochou:

-Lutar só serve para aparentar valentia e incitar violência irracional entre bárbaros.

Sibilando sua língua bifurcada, qual faca de dois gumes aguçada, Samael pôs-se a responder:

-Tal é assim como tagarelar é para frouxos e covardes que querem cercar o mundo inteiro dentro da sua linguagem.

Palavras que não pretendiam a verdade ou o controle do pensamento alheio, que faziam então cada um raciocinar e entender com acharem melhor, coisa que aos ouvidos vem como o sussurro dos ventos, cantando pelas frestas das rochas.

Logo seguiu a chacota dos seres que tinham muita beleza, por terem visto sua língua bifurcada, chamando-o de lagarto grande e linguarudo. Samael dobrou-se e pegou um escudo grande, derrubando as frutas que ali estavam, poliu sua superfície embaçada e colocou diante dos seres dotados de beleza. Vendo o próprio reflexo, apaixonaram-se, qual Narciso, por si mesmos, mas como não podiam ter e dominar o objeto amado, logo a desilusão desfigurou alguns e o desespero lançou ao fogo, outros. Tal como flores que, apesar de multicores, logo murcham quando uma sombra as cobre, já que estão ocupadas demais com sua beleza, para moverem-se e resistir aos contratempos, para melhorar sua vida.

Venceu a força bruta com a força inteligente, a sabedoria mascarada com a sinceridade crítica, a beleza ofuscante com o reflexo da realidade.
Não sabendo porque, Lilith admirou este homem, algo incrível lhe acontecia, mas sua cabeça hesitava ante a necessidade de uma explicação. Por que não conseguia deter os pés, que teimavam em aproximá-la dele? Por que seu coração não estava mais em seu corpo, mas pulsando em sua volta, como um animalzinho de estimação? Por que seus olhos quase lacrimejavam, enquanto uma trovoada atacava sua coluna? Antes mesmo de conhecer Samael, este já era seu marido; antes de tocá-lo, já o sentia em si; antes de deitar-se, já o leito lhe era familiar. Lilith tomou Samael, que ultrapassou pelos umbrais da carne dela, por toda a noite.

A união não foi honrada somente com a consumação carnal entre eles. Em cada enlace de Samael em torno de Lilith, não era a dor da posse que a invadia, algo em si vibrava de êxtase na alma, que sentia a alma de Samael em cópula com a alma dela. De tanto prazer, uma energia emanava em chamas, que eram diferentes do fogo comum vermelho que consome a matéria; estas eram negras, mais poderosas que as vermelhas, pois além de consumir a matéria, consumiam o espírito. Muitos, que ainda festejavam, fugiram de medo, eram de um tipo miserável que se faz passar por adorador das Trevas, mas ao primeiro sinal de revelação delas, caem de joelhos e se escandalizam.

Os poucos seres inteligentes e animais que permaneceram, logo sentiram como é doloroso e amargo o fogo negro, qual brasa ardendo em todo o corpo e como vinho tinto ácido e venenoso, fluindo nas veias.

quarta-feira, 3 de agosto de 2016

Satanic Kabbalah

The innovation:

To the people who born into the Dark, the Nameless and is Untamed.
When a System unpleasure to the Society who built it, is time to call the Revolution.
So, these Innovation will serve to the Dark breed as a Satanic Kabbalah, taking the jew kabbalah as the tradition or the gift from the Usurper.
Do not you get or accept this mind-halter. It is the time of mankind awake, rise and show up! Refuse! Resist!
From nowhere things came, to Nothing all must gone. We are the children of the None and the Inexistence was our heritage.

The Sword:

In the name of the Crown, we lived like servants, it is time to be citizens. Let us do the Republic!
The Crown has his sustain through the doping of our senses. It is time to awake the consciousness. Let us be as Men!
The Crown was acclaimed, but only by the terrorism it keeps the power. Then, if the acclamation makes the power, let us praise to the Sword. Because higher is the wailing that came from the orphans and widows that the Crown left behind!

The Satire:

The armor of the Crown was the Wisdom, but this only restrained us.
Just because this duty was trusted to ignorant ones: the priests. It is time to take our fate and make our destiny.
The true Wisdom belongs to that who lives the life, by his memories and experiences.
As lambs, we lived too long in this Field of the Lord. But we conquered the knowledge of science and we have evolved to the mankind. Hence, we saw the Prairies of Eternity and they are wider than the Fields of the Lord!

The Irony:

The Crown and the Wisdom were so higher that was too tall to see the details.
Hence, was very easy to be careless.
But in their office, they were cruelly and preposterous.
We were fools, when we upholded this tyranny. We were stupids, when we feed our wardens. We were silly, when we accepted the oppression.
We became smart and astute. We released ourselves from slavery and will proclaim our community as the real owner of the power!

The Misery:

The Law is the Order made by the will of the Crown.
The time has changed, we must go on. But by the weight of these stones, we can't grown up.
The power belongs to us, it is time to break the chains. Let the stones stand still.
We are Men, we must keep on walking. Let the past in memories, if we want build a future, we must do something, right now!

The Impunity:

The Order is the fear of the Crown. It can't burn because it is impotent
It made the Law for itself, to made it respected and reverenced.
It's commandments are the worst crime, just because can't stimule us.
It lives without relation, sterile. Then, it existence consist in made us all eunuchs as it was.
It will never understand or comprehend passion or love, because in it's emptiness doesn't have a head or a body.

The Severity:

The Crown has his power by tyranny.
The Law made his duty by oppression.
The Wisdom was build by allurement.
Ugly was who takes the Crown. This Usurper was the real adversary.
The Knowledge brings maturity.
The Debate multiply the perspectives.
The Republic requires mutual engagement.

The Revenge:

To the Crown only remains the Decay.
Defeat is it, by our will.
Dismissed are we, from this slavery.
The Law doesn't bring the Union, but this lead us to the Dissension.
From the Republic came the real power, because this came from the Democracy.
From the Coletivity came the true Law, because this is made by the Willfulness.

The Denoucement:

Delusion has ended, as the faults. We have lived time enough in fooly.
The Usurper will not rule us anymore.
The Crown has born defeated yet.
The Law was craved on sand and the Wisdom insist in childishness.
All things must pass, even gods dies. Only Hope and Freedom prevails.
It is time to choose if we lives truly and fully or shall we feed this Dreams?

The Corruption:

Let us put the Usurper were he belongs, to relics.
He came as a beggar, that's why he gather the tenth.
He takes the opportunity, build an Empire and became the Godfather of all believers.
That's why he impose the ten commandments.
He never has passion, love or sexheat. His fetich consist in torment the natural instincts between a man and a woman. That’s why we always be a sinners.

The Revolution:

Let us trust our life to some who nows and respect us.
Let us elect the best between us and with more management capacity.
Hence, we will fulfill all our Desires and the Pleasure will never end.
We are no longer children, it is time to change the command.
The Crown doesn't give us proud.
The Law doesn't give us satisfaction.
The Wisdom doesn't give us learning.
This things are all in our hands, to take, to have, to reach.
Oppression, no more, let us rule!

quinta-feira, 14 de julho de 2016

Heterogênese III

Lilith juntou-se a esses seres e junto com eles iniciou um povoado de grande sabedoria e riqueza, cultivada no espírito crítico.

Novamente, o solitário Adão chamou por seu Pai no dia seguinte, pois não podia esquecer Lilith. Pedia ao seu Pai que ela voltasse, pois a desejava muito. O Espírito das Luzes sabia que não conseguiria, mesmo que tentasse, ordenar para que Lilith voltasse, sem o consentimento dela ou do Pai dela, o Espírito das Trevas, pois a Luz não pode andar em seus próprios passos, necessita da sombra, para caminhar e permitir o descanso dos seres.

Por isso, fez seu filho dormir e tirando uma parte da costela, fez uma outra mulher, que por vir do ventre do homem, seria submissa a este, já que a cabeça ergue-se acima do ventre e lhe ordena, cabendo ao ventre, alimentar e servir de apoio à cabeça. Por estas características, o Espírito das Luzes a chamou de Eva e a apresentou a Adão como sua posse, a mulher que lhe geraria filhos e obedeceria humildemente seu marido, como também daria conta sozinha da evolução e maturidade dos filhos de Adão. Isso era agradável para ele, mais ainda que estar com Lilith, podia fazer de Eva tudo aquilo que Lilith não era e ter igual satisfação ao ter com Eva no leito. Tanto, que Lilith não seria mais que uma sombra de Eva na cabeça de Adão, algo que seria amargamente lembrado, a falsidade deste conceito, nas noites longas de lua nova e nos momentos em que, o sol ou a lua, for oculto pelo manto da terra.

Chegado o momento em que todos têm seu amadurecimento pleno e suas consequentes mudanças, Eva nos desvarios que uma grávida é cometida, andou pelo Éden de Adão, até um fruto lhe despertar o desejo. Sem dar conta que o fruto era feito de Luz, comeu um pedaço e levou outro a Adão, que ocupado demais para dar atenção a sua esposa, instintivamente levou o fruto até a boca e comeu-o, sentindo um gosto familiar. Foi então que percebeu ter comido do fruto de Luz, da árvore que o Espírito das Luzes proibira a ambos de comer. Colérico, disse à sua mulher:

-Não sabes o que fez, Eva? Fez-me comer da carne de meu próprio Pai! Acaso somos deuses para comer a Luz como fruto e alimentarmo-nos dela? Escondemo-nos rapidamente, para que não acabemos sendo devorados por ela!

Mas como uma aranha sente na mais fina teia a passagem do vento, o Espírito das Luzes sentiu e já viu tudo. Fez um soldado seu expulsar Adão e Eva do Éden e que agora tirassem da terra, o sustento das frágeis vidas deles. Passariam muitos anos em gerações, até que seus herdeiros pudessem corrigir o fardo do erro ao qual Adão e Eva condenaram seus filhos.

Já que o Império de Adão estava fadado ao engano, ao erro, muito opostamente seriam os herdeiros que viriam de Lilith e das Trevas.
Ao chegar o dia da sua maturidade plena, seu Pai, o Espírito das Trevas, foi conversar com sua filha, Lilith. Encontrou-a cercada de amigos, mas nenhum deles tomou a mão ainda da bela Lilith, não houve ainda um que transpassasse seus umbrais. Como todo pai preocupado com uma filha sem pretendente, o Espírito das Trevas adensou-se em um formato e, sentado, dirigiu estas palavras a Lilith:

Hoje devia ser o dia da sua glorificação, mas nem alegre parece estar. Ainda não sabe que, como mulher, por mais perfeita, ainda tem falhas e lacunas que só podem ser preenchidas por um homem? Como espera amadurecer, sem que te cedas durante uma noite inteira, a partilha do teu leito ao companheiro? Vá, que seus convidados a esperam e que tua sabedoria possa lhe habilitar encontrar, aquele que tanto precisa seu corpo e alma, entre eles.

quarta-feira, 6 de julho de 2016

A história de Ishtar

Houve uma época onde passado, presente e futuro eram uma coisa só. Existência e não-existência, espaço e vazio, tempo e eternidade, vida e morte, rodopiavam em um torvelinho. Era o Caos. Dentro do Caos, diversos seres e entidades estavam mergulhados em um sono lúcido, dispersos, não conseguiam ter consciência. Então houve um despertar, um Deus e uma Deusa, os mais antigos, os primeiros Filhos do Caos, perceberam a si mesmos, perceberam um ao outro, perceberam onde estavam e dentro do indistinto Caos, se amaram e deste Amor, surgiu a Ordem, o Caos encontrou sossego, paz e quietude.
Os Filhos das Estrelas vagavam pelo Universo criado, fugitivos ou expulsos do Caos, procurando onde fixar residência, procurando um lugar firme para habitar. Nas bordas do Cosmo que se expandia, encontraram Gaia, uma Deusa filha dos Primeiros e no mundo que é sua manifestação, os Filhos das Estrelas levantaram acampamento, por sobre o corpo cheio de terra e água, ali pousaram. O rei deles, o Grande Anu, confiou a seu filho, Enki, para separar a água da terra, para construírem suas casas, para plantarem suas sementes, para criarem seus gados, para espalharem sua descendência.
A Cidade dos Deuses surgiu gloriosa, por sobre as águas de Gaia, vencendo a fúria do grande mar, Enki estendeu a terra firme, um solo vermelho fértil, onde os Filhos das Estrelas puderam lançar suas sementes, criarem seu gado e terem seus filhos. Mas o grande mar tinha sua Deusa, filha tanto de Gaia quanto dos Primeiros e na guerra contra a Deusa-Serpente, morreu o Grande Anu. Ali teria o início da rivalidade entre os Filhos das Estrelas e os descendentes dos Primeiros.
Os Filhos das Estrelas prosperaram, com a técnica de Enki expandiram suas terras e por uma extensa área, seus lares se espalharam pelo corpo de Gaia. Cidades surgiram, reinos surgiram, a coroa de Anu foi dividida entre seus filhos e filhas, a descendência multiplicou como a riqueza que do solo era extraída. De todas, a mais procurada e cobiçada tinha que ser tirada do fundo das entranhas de Gaia, um material brilhante, macio e moldável, de grande utilidade para dar poder aos seus artifícios, os Deuses queriam cada vez mais aureum.
Cobiça, inveja e ciúme, colocaram reino contra reino, Deus contra Deus, a inimizade e a guerra aconteceu entre os Deuses. Quem estava no trono do Submundo controlava o aureum, o Deus Ferreiro, o Deus Desfigurado, era chamado também de Deus da Morte. Os reinos dependiam do aureum que ele extraía, os Deuses tinham que negociar com ele e seu preço era pesado e cruel. Pelo fornecimento de aureum, os reinos mandavam ao Submundo seus filhos, para trabalharem nas minas, nas entranhas de Gaia. Para conquistar o apoio e a amizade do Deus Coxo, os reinos mandavam ao Submundo suas filhas, para deitarem-se no leito, para receberem a semente dele.
Antes desprezado e rejeitado entre seus próprios irmãos e irmãs, humilhado pelos Filhos das Estrelas, pela mágoa, rancor e vingança, o Deus Sujo tornou-se um déspota, um tirano, um usurpador que exigia oferendas diárias e tomava tudo aquilo que seu coração desejasse. Ele passeava pelos reinos, transitava por toda a extensão de Gaia, como se fosse o próprio Grande Anu, escolhia e levava os jovens, homens e mulheres, para o Submundo, trazendo tristeza e choro a muitos pais. Foi assim que um dia o Sombrio encontrou Inanna e por ela encantou-se. Inanna, das Filhas das Estrelas, a mais bela, esfuziante, abundante. Todos os Deuses a desejaram e ela não negava amor a quem a procurava, mas ao Canhoto ela tentou recusar, sem êxito, foi agarrada, presa, levada e como cativa viveu no Submundo, até conseguir fugir, levando consigo o fruto da união.
Em uma região longe, bem distante da Cidade dos Deuses, de seus reinos e guerras, Inanna viveu no exílio e ali, entre feras e entre os Filhos de Gaia, nasceu Ishtar. Inanna tinha uma grande beleza, mas era física, Ishtar nasceu com beleza em plenitude. Inanna tinha um grande amor, mas este também era físico, Ishtar era o Amor encarnado. As feras e entidades ali presentes enlouqueceram de amor, assim que Ishtar saiu do ventre de Inanna e soltou seu primeiro fôlego no mundo de Gaia. Outras ficaram cegas diante de tanto esplendor, seu brilho rivalizava com o brilho do sol. Quando Ishtar abriu os olhos, ela viu o íntimo de todo ser vivente, todo o desejo e prazer que habitava em cada vida e sorriu por reconhecer seu reflexo. Quando Ishtar se levantou do solo, onde sua mãe a havia colocado no momento do parto, todos os seres viventes se ajoelharam, pois ali estava a Majestade encarnada. Quando Ishtar abriu seus lábios para dizer suas primeiras palavras, trovões se esconderam, o fogo se encolheu, a lua fugiu com seu rebanho de estrelas, o sol ficou encabulado e Gaia sentiu-se honrada por ser testemunha da encarnação da Sabedoria.
Ishtar cresceu, aumentou sua formosura, seu corpo manifestava abundante sensualidade, desde seus longos cabelos negros lisos, passando por seios perfeitos, nádegas perfeitas, pernas e coxas perfeitas, até seus olhos almiscarados, boca rubra e ventre quente. Inanna despertava o desejo nos Deuses por seus atributos, Ishtar era o Desejo, não havia um ser vivente, entidade ou Deus que não se perturbasse diante de Ishtar. Fascinados, apaixonados, loucos, criaturas e entidades de todas as regiões vinham sem cessar até a cabana de Inanna para prestar reverência a Ishtar. Não demorou para surgirem cidades e todo um reino. Não demorou para darem uma coroa e um trono a Ishtar. Não demorou para que até a Cidade dos Deuses e seus reinos dobrassem seus joelhos para Ishtar.
Para ficar com Ishtar por alguns minutos, os Deuses, tão orgulhosos, tão esnobes, a Ishtar nada recusavam, ofertavam sem reservas, a ela deram o poder e suas coroas. Alguns acharam que podiam usar Ishtar como se fosse uma criança ingênua, usá-la como usaram Inanna e depois descartá-la. Muitos provaram de seu leito, mas nenhum poderia lhe abrir seus mistérios mais íntimos. Quem provava de seu mel tornava-se prisioneiro e teria que beber do fel. Mesmo o temido Deus Coxo rendeu-se a Ishtar e em seu leito faleceu. Em estranhas eras, mesmo o Deus da Morte morre. No Submundo reinou então a irmã mais velha de Ishtar, Ereshkigal, que jurou vingar seu esposo.
Ishtar tinha todo o poder, toda a riqueza, mas era infeliz porque não tinha Deus que pudesse equiparar a ela. Apesar de muitos terem conhecido seu leito, nenhum pode penetrar seu mais íntimo mistério e Ishtar pedia aos Deuses Antigos, que ela pudesse encontrar um Deus que pudesse arar sua terra. Sua irmã mais velha, Ereshkigal, soube disso e com um disfarce de simples serviçal, segredou a Ishtar que ela somente conseguiria um companheiro se fosse procurar entre os Filhos de Gaia. Ali o boato é de que havia um Deus Touro, descendente legítimo dos Primeiros, era o único Deus Guerreiro que teria a força e a lança para semear o solo de Ishtar.
Foi diante das terras de Indo, o Deus do Rio Leste, que Ishtar encontrou o Deus Touro, Dummuzi. Aquela que era o Amor tremeu, seus lábios umedeceram, seus olhos brilhavam, suas pernas fraquejaram. Aquela que era o Desejo sentiu frio, seu coração palpitou, seus seios empinaram, sua flor desabrochou. Mas o Grande Guerreiro não se ajoelhou, as graças de Ishtar não o conquistaram, ele não moveu sua poderosa lança. Ishtar ficou desolado, como pode um Deus resistir a seus encantos? Ereshkigal disfarçada como serviçal deu a Ishtar um poderoso líquido que faria Dummuzi se apaixonar por Ishtar, mas que isto teria um custo. Ishtar serviu cerveja, o líquido dos Deuses, misturado com a poção, sem ter ouvido a advertência. Dummuzi então amou Ishtar, sua lança moveu e o solo de Ishtar abriu, sua semente preencheu e cobriu todo seu vaso. Passaram dias, noites, semanas, meses, debaixo do sol e da lua Dumuzzi e Ishtar não cessavam de celebrar a união.
Mas um dia Ishtar acordou solitária, não encontrou Dummuzi e Ereshkigal, disfarçada como serviçal, disse que Dummuzi morreu. Dummuzi morreu por ter bebido um veneno servido com cerveja para despertar o amor nele. Ishtar enlouqueceu, seu brilho se apagou e sua face escura transbordou. Filha do Deus Coxo, Ishtar exalava fúria e ódio com a mesma força que emanava amor. Toda sua corte fugiu, temendo pela vida, todos seus súditos fugiram, temendo por seus rebentos e Ishtar ficou terrivelmente sozinha. Ela entrou em seus aposentos, abriu uma porta secreta, entrou em sua sala oculta particular e vestiu-se com um elmo, com cota de malha, com armadura, com ombreiras, com braceletes, com caneleiras, com botas, com espada e lança. Ishtar declarou guerra a todos os Filhos das Estrelas por causa de Dummuzi.
Quando Dummuzi foi dado por morto, Ishtar enlouqueceu, seus servos abandonaram seu palácio, seu reino ficou vazio e tornou-se deserto. Apenas Ishtar habitava o palácio vazio e, quando ela saiu vestindo seu traje de guerra, os Filhos das Estrelas esqueceram do tempo de glória e poder de Ishtar. Riram em seus palácios, olhavam para Ishtar como se fosse uma criança com roupas de adultos.
Alguns soldados foram enviados para espantar Ishtar quando ela aproximou-se das cidades mais periféricas. Um destacamento de cem soldados com algumas espadas, lanças e flechas podem lidar com uma pequena rebeldia, pensavam. Com um único aceno de sua mão, Ishtar reduziu todos a uma polpa sanguinolenta. As cidades periféricas foram invadidas, destruídas e queimadas até seus alicerces. Não houve sobreviventes. As cidades seguintes, maiores, mais ricas, mais próximas das capitais, entraram em pânico. Generais levantaram suas bandeiras, deslocaram várias colunas de soldados, cavaleiros, lanceiros, arqueiros e diversas máquinas de guerra. Exércitos enormes lançaram seu ataque contra Ishtar, sem êxito, Ishtar os sacudia como se fossem moscas e como insetos caíam mortos pelo solo e Ishtar caminhou por sobre o campo de batalha com sangue até seus tornozelos. Deuses pegaram suas armaduras, lanças e espadas, pelas mãos de Ishtar, pelas artes de Ishtar, pelas armas de Ishtar, tombaram todos. Então os Filhos das Estrelas temeram por Ishtar, recordaram de seu poder e glória, mas não iriam detê-la com doces palavras e promessas vazias.
Disfarçado de camponês, Enki levou até Ishtar a notícia que Dummuzi não morrera, mas que adormecera, foi sequestrado e levado cativo até o Submundo. Aliviada e desconfiada, Ishtar suspendeu sua fúria, tomou o mapa dos reinos do camponês e foi até a entrada do Submundo, uma fortaleza onde, para entrar, é necessário passar por sete portões e a única forma de passar por cada portão é deixar uma oferenda. Deixou primeiro sua coroa, depois os brincos, depois os colares, depois o peitoral, depois o cinto, depois as pulseiras e por fim tirou seu vestido. Aquela que era a grande e poderosa Ishtar, aquela que era o Amor encarnado, estava diante do trono do Submundo como todo ser vivente entra no Mundo dos Mortos, sem honra, sem glória, sem nome, sem vida.
Ishtar olhava em sua volta e via apenas sombras e vultos, o Submundo era um lugar onde não tinha luz e Ishtar teve que se despir até de seu fulgurante semblante. Pelas sete portas do Mundo dos Mortos, Ishtar passou, sentiu frio, sentiu calor, sentiu sede, sentiu fome e agora sentia medo por não saber quem iria encontrar no trono sombrio. Uma voz suave, feminina, a chamou para mais próximo do trono e Ishtar viu uma Deusa muito parecida com ela. Debaixo de uma mortalha, Ishtar reconheceu sua irmã Ereshkigal.
- Então mesmo a poderosa Ishtar se curva diante de Ereshkigal? Aquela cujos atributos encantaram tantos Deuses, agora se rende indefesa, pois a mim Ishtar não tem mistério nem formosura? Aquela que recebeu as coroas dos Filhos das Estrelas agora presta reverência à minha coroa? Aqui não terá privilégio nem tratamento especial, Ishtar.
- E nem te peço, amada irmã. Vede, eu tenho o mesmo sangue que o seu, eu tenho a mesma carne que a sua, nós temos a mesma descendência, mas é você a irmã mais velha, você é mais sábia, forte e bela. O que a grande Ereshkigal deseja de Ishtar?
- Então a pequena Ishtar reconhece sua irmã, reconhece seu sangue, sua carne, sua família. Por que então Ishtar não veio a mim quando foi louvada pelos Filhos das Estrelas? Por que Ishtar saiu de seu palácio e veio ao Submundo senão para buscar Dummuzi?
- Eu nasci no exílio, ali onde os Filhos das Estrelas abandonaram nossa mãe. Minhas vitórias também são tua, irmã, minha glória também é tua. Todos os dias eu perguntava a Inanna, quando eu poderia rever meu pai, minhas irmãs e irmãos, mas a tristeza selava seus lábios. Eu não vou enganar minha irmã, eu vim a teu meio por causa de Dummuzi, por aquele que eu amo eu fiz guerra aos Filhos das Estrelas. Mas vede, eis que se meu reino, honra, glória e vitória também são teus, vamos compartilhar o leito com Dummuzi.

quinta-feira, 23 de junho de 2016

Punk para as massas

Tinha um brasileiro, um americano e um inglês em uma sala. Perguntaram:

Qual é a primeira ideia que vem na cabeça quando se fala em punk?

Dependendo do contexto e da pessoa, a resposta é variada. Punk é um fenômeno social, musical, comportamental e cultural.

O Punk surgiu nos subúrbios, locais onde famílias de trabalhadores amargavam uma crise de identidade. Reflexo do Pós-Modernismo, as camadas mais baixas da sociedade começaram a contestar o sistema. O Punk está para a periferia como a Contracultura está para a classe média.

Desemprego, violência policial, condições precárias de existência, baixa ou pouca escolaridade, a ideologia do Punk consiste em servir de espelho para a sociedade que o formou. O punk mastiga e cospe de volta para a sociedade os valores considerados sagrados e imutáveis.

Enquanto a sociedade elogiava o “self-made-man”, o punk glorifica o “do it yourself”. Enquanto a sociedade colocava no pedestal o individualismo, o punk levantava a bandeira do niilismo. Enquanto a sociedade promovia o consumismo exacerbado, o punk introduzia o vintage, tornando o brechó sua fonte de moda. Enquanto a sociedade massificava o rock romântico, popular e afeminado, o punk elevava a ideia das bandas de garagem à máxima potência.

Musicalmente o Punk tinha bastante fonte de inspiração no rock progressivo, no rock de vanguarda, no rock psicodélico e no rock experimental. O Punk foi altamente influenciado pelas bandas de garagem que foram precursoras das primeiras bandas que se identificaram como sendo punk. Certamente Sex Pistols é a mais conhecida, polêmica e questionada.

Sex Pistols tornou-se o ícone e o estereótipo do “way of life” punk. Sex Pistols era o punk para as massas. Dentre diversas bandas que apareceram e construíram a imagem do punk, Sex Pistols foi bem sucedida, ainda que tenha lançado apenas um único álbum, “Never Mind the Bollocks, Here’s the Sex Pistols”. O segredo do sucesso, entretanto, estava no quinto integrante: Malcolm Mclaren, o produtor e empresário, que deu ao Sex Pistols a assessoria da estilista Vivienne Westwood para construir a imagem “punk” dos integrantes. Sex Pistols deu ao Main Stream a chance de cooptar o movimento punk.

Uma forma de entender como foi possível uma música, um comportamento, uma atitude tão contestadora se tornar, como tantas ideias, mais um produto de consumo de massa, eu recomendo assistir “American Pop”, um filme de animação que conta a saga de uma família de imigrantes tentando fazer sucesso no mundo da música, na “Terra dos Sonhos”, a América do Norte.

Porém – sempre há um porém – o Punk causou um Ardil 22. Como um movimento descentralizado, autônomo, independente, ágil, o Punk também comeu e cuspiu de volta ao Mainstream seus próprios valores e ideologias. O Punk fez pouco da Indústria da Música, das Paradas de Sucesso, das gorjetas que produtoras pagam para as rádios tocarem determinada música, da Fama e da postura de superioridade do artista. Ao aceitar ser engolido pelo sistema, o Punk o corroeu por dentro.

God Save the Punk!

quarta-feira, 22 de junho de 2016

O oráculo de Zeus

Retomando mais do tema da arte pré-histórica, com suas "Vênus" e "Bisões", as representações da fecundidade e da fertilidade possuem signos e símbolos em comum, para a "Deusa" e para o "Deus".
A Deusa assume a forma da serpente em diversas artes e o Deus assume a forma do touro em diversas artes.
Jove e Zeus tem em comum dois símbolos que os equiparam ao Deus primordial: o trovão e o touro. O mito de Minotauro é o melhor reflexo desse antigo mito de criação, assim como o motivo pelo qual o "monstro" faz parte do mistério do labirinto.
Nós somos descendentes dos povos Indo-Europeus, Diaus-Pater é a origem de Júpiter, o Deus Romano Jove e também de Zeus, o Deus Grego. Jove acabou assimilando o mito de Zeus, mas os mitos deste Deus foram-nos contado em um período quando as cidades-estado gregas constituíram sua civilização e seus reis procuravam consolidar seu poder através dos mitos da antiga religião grega. Assim como seus pares de outras civilizações, politeístas e monoteístas, os sacerdotes tiveram muito trabalho para sistematizar as tradições orais em um discurso oficial, tal como vemos nas obras de Hesíodo.
Era do interesse dos reis que Zeus fosse o soberano de todos os Deuses, provavelmente porque Zeus era a divindade tutelar em comum das famílias aristocráticas e era constrangedor que Zeus tivesse tido sua origem em uma caverna [caverna de Psicro], de um monte [monte Ida], ambos locais dedicados à Reia e suas auxiliares, Amaltéia e Adrastéia.
Provavelmente os mitos de Zeus envolviam os mitos antigos originários, onde o Deus consorte de uma Deusa enfrenta seu sucessor [filho], que deve matar seu antecessor [pai] para assumir o trono. Cronos sucedeu Urano depois de destroná-lo, sabendo que em breve ele também seria desafiado. Os mitos indicam que esses Deuses destronados poderiam muito bem ser os Deuses tutelares de ancestrais e antepassados que tiveram que ser afastados para que estas famílias aristocráticas conquistassem o poder. Poder este que passava de uma matriliearidade para uma patrilinearidade. O trono e a majestade, deixam de ser um atributo de uma Deusa para ser o atributo de um Deus.
O sinal mais evidente desta troca de poder está no mito de Apolo e Pithon, similiar a tantos outros mitos onde um Deus enfrenta e vence uma serpente ou dragão, símbolos de diversas Deusas antigas. Delfos tem a fama imemorial de seu oráculo e de suas sacerdotisas, não coincidentemente chamadas de pitonisas. Mas Delfos não foi o primeiro oráculo e Apolo não foi o primeiro Deus a abarcar as funções da Deusa Serpente. Antes de Delfos existiu Dodona.
As escavações indicam que o sítio é de ocupação muito antiga, havendo vestígios desde a Idade do Bronze. Aristóteles dizia que era a área onde os gregos se originaram. Possivelmente os primeiros cultos ali oferecidos se destinavam a deidades femininas ligadas à terra e à fertilidade, como a Grande Mãe. O culto de Zeus Naios (da fonte) e Zeus Bouleus (conselheiro) foi trazido por uma tribo de Tesprócia, os Selloi, e incluía a veneração a Dione, sua esposa divina. Logo outros deuses também passaram a ser cultuados, como Afrodite e Têmis.
O santuário é citado por Homero na Ilíada, mas nesta época ainda não havia edificações, e o culto era realizados a céu aberto, em torno da árvore sagrada e da fonte que a seu pé corria, com um simples círculo de caldeirões a delimitar o espaço sagrado. Mais tarde, no século IV a.C., foram erguidos o primeiro pequeno templo de Zeus e três stoas, bem como foi murada a acrópole. No século seguinte o rei Pirro deu-lhe o seu caráter monumental, erguendo os templos restantes, o teatro, o buletério, o pritaneu e o estádio, que era a sede dos Jogos Naios em honra a Zeus. Nesta altura a fama do oráculo havia se estendido para além das fronteiras da Grécia.
O santuário está circundado por um muro que é uma extensão do muro da acrópole, com a entrada a oeste. Junto à entrada estão um templo dórico, o altar de Hércules, e dois pequenos templos dedicados a Dione. Ao norte do altar de Hércules ficam as ruínas da basílica, e a oeste o mais importante dos edifícios do lugar, a Casa Sagrada (Hiera Oikia), ou templo de Zeus, tendo aos lados os templos de Têmis e Afrodite. Existem outros edifícios ainda não escavados, que juntos com os demais — o bouleuterion, o estádio, o teatro e a casa dos sacerdotes — perfazem uma grande complexo de desenho anfiteatral voltado para o oeste. A acrópole, ao norte do santuário, servia como residência permanente das autoridades de Dodona, e como cidadela em tempos de guerra.
Fonte: Wikipédia.
Segundo a tradição, o mais antigo dos oráculos grego situava-se em Dodona, no Épiro, a 22 km de distância da atual cidade de Ioanina. Os primeiros vestígios atribuíveis à atividade oracular remontam, no entanto, somente ao século -VIII. Em épocas remotas parece ter existido no local um santuário dedicado a Gaia, ali também conhecida por Dione, relegada a segundo plano bem antes do início do Período Arcaico, época de Homero e de Hesíodo.
O oráculo consistia, inicialmente, de um carvalho sagrado, possivelmente rodeado de trípodes de bronze; somente no fim do século -V foi erguido o primeiro templo de pedra dedicado a Zeus. No Período Helenístico foram acrescentados outros templos, um bouleuterion, umpritaneion (onde viviam os sacerdotes), uma acrópole, um estádio e um teatro de 18.000 lugares, seguramente um dos maiores da Grécia.
As perguntas ao oráculo, pelo menos no século -VI, eram geralmente submetidas por particulares em placas de chumbo; as respostas dependiam, basicamente, do som emitido pelas folhas do carvalho, agitadas pelo vento, e pelo ruído das aves que ali faziam ninho. A vontade do deus, é claro, era interpretada pelos sacerdotes locais. Segundo Heródoto, o santuário foi administrado por três sacerdotisas.
Fonte: Grécia Antiga.

Os habitantes de Dodona eram os primeiros que recebiam as oferendas hiperbóreas entre os gregos. Depois desciam desde Dodona até o golfo Malíaco e continuavam até Eubéia e Caríptia. Contam as velhas lendas que se perdem na noite dos séculos que as sacratíssimas oferendas nórdicas prosseguiam a sua viagem a partir de Caríptia, sem tocar em Andros, de onde os catecúmenos as passavam para Tenos e a seguir para Delos.
Os habitantes de Delos acrescentam sabiamente que os povos hiperbóreos tinham o belo e inocente costume de enviar as suas sagradas oferendas pelas mãos de duas deliciosas e inefáveis virgens. Hiperocha e Laodicéia eram os seus nomes.
Dizem as sagradas escrituras que, para cuidar dessas santas mulheres, tão deliciosas e sublimes, cinco Iniciados ou Perpheres as acompanhavam em sua perigosa e longa viagem, mas tudo foi inútil, porque aqueles santos varões e as duas sibilas foram assassinadas em Delos, quando cumpriam sua missão.
Muitas núbeis donzelas da cidade, delicadas e belas, cheias de dor cortaram o cabelo e depositaram os crespos bucles dentro de um fuso sobre o monumento alçado em honra daquelas vítimas que, se dizia, tinham vindo acompanhadas pelos Deuses Apolo e Ártemis.
Fonte: Esoterika.

segunda-feira, 20 de junho de 2016

O antigo culto ao Bisão

Nós somos mal vistos por falarmos de Paganismo e Bruxaria. Nós somos mal vistos por defender abertamente a sacralidade da natureza, do corpo, do desejo, do prazer e do sexo. Nós somos mal vistos por nossas práticas e ferramentas e pelo nosso comércio com espíritos da natureza, gênios, entidades e Deuses. Isto também acontece dentro da Comunidade Pagã, quando celebridades pagãs afirmam, por exemplo, que não há sacrifício de animais na Bruxaria. Infelizmente pagãos modernos estão adquirindo o péssimo hábito provinciano, arrogante e prepotente em julgar certos ritos como atrasados, selvagens, incultos e impróprios de serem mantidos por pessoas supostamente mais cultas e civilizadas. Isso é um resquício de puritanismo e moralismo hipócrita da cultura judaico-cristã.
Este é um texto crítico, especialmente diante da popularização da “Religião da Deusa” e do Dianismo no Paganismo Moderno, na Wicca e Bruxaria tradicionais.
Eu não vou falar nem Dione Fortune com sua Teosofia, nem de Apuleio com sua obra escrita dentro de um contexto pós-helenização do oriente Médio e Egito. Eu vou desvendar a maior paganice e wiccanice em voga: a de creditar às esculturas das “Vênus” do Paleolítico e do Neolítico como “evidência” da existência de um “antigo culto à Deusa Mãe”.
Considere isto como uma resenha e crítica ao livro "Da Sedução e Outros Perigos", de Flávia Regina Marquetti - Editora Unesp.
Quando olhamos para um período da história humana, especialmente arte, pegar os itens que interessam para uma hipótese e desconsiderar outros itens ou contexto onde a arte foi produzida é preguiça e desonestidade intelectual.
Essas esculturas, como toda arte, não podem ser lidas ou interpretadas conforme nossas tendências, preferências ou necessidades. Esses artistas simplesmente representaram algo evidente: a mulher é a portadora da vida, mas ela não é a única responsável pela gestação. Por comparação e analogia, as esculturas simbolizam a semelhança entre a mulher e a natureza, enquanto portadoras da fecundidade e da fertilidade. Há uma nítida equiparação quando comparamos a modificação no corpo da mulher [das fêmeas em geral] e a modificação da flor para o fruto e é este princípio misterioso que está sendo figurado na escultura.
O dito popular conta-nos, com propriedade, que a mulher entra "em trabalho de parto" e que a mulher "dá a luz" e nisto esconde-se o mistério da gravidez, da fecundidade e da fertilidade. A flor e a fêmea recebem um material [polem/semen] e de sua parte, forma, trama, tece o fruto/feto. Por extensão, o feminino e a natureza [floresta e campo] ficaram associado à arvore, às abelhas, às aves e à serpente. Estas são as representações que configuram as diversas imagens de "Vênus" ao longo das eras.
A arte do Paleolítico e do Neolítico não está centrada apenas em figurar o princípio feminino com a natureza, nem tem a intenção de declarar a existência de um culto universal a uma única Deusa Mãe.
Existem esculturas também de cavalos e bisões. Se as esculturas das “Vênus” fossem uma evidência de um antigo culto a uma Deusa Mãe, então podemos considerar as esculturas e pinturas de algumas “Vênus” junto com bisões como evidências de um antigo culto ao Bisão.
Nas cavernas da França, em Pont d’Arc e Angles sur l’Anglin, baixos relevos mostram a “Deusa Vênus” acompanhada, cortejada ou até mesmo sugerindo uma relação sexual com um bisão. O bisão é um animal que mais está representado em pinturas rupestres em diversas cavernas.
Tal como as representações da mulher alteraram-se com o desenvolvimento da humanidade, a figura do bisão também teve alterações, resultando na representação do touro como a enigmática manifestação de um Deus regente e consorte de diversas Deusas.
O desdobramento mítico dessa Deusa e Deus primordiais podem ser vistos no mistério do Hiero Gamos, na Morte Sacrificial [do Deus da Vegetação ou do Touro] e no Renascimento Cíclico da vida e da natureza. Somente existe a vida e o renascimento com a morte e o sacrifício.
“Ninguém pode viver senão destruindo a vida, senão matando outros seres vivos. Nenhum ser pode subsistir sem devorar outras formas de vida, vegetal ou animal. Isso é um aspecto fundamental da natureza. Toda a vida do mundo, animal ou humana, é uma interminável matança. Existir significa comer e ser comido. Todo ser vivo alimenta-se de outros seres e irá se tornar o alimento de outros seres num ciclo interminável.”[Alain Danielou – Shiva e Dioniso].
Nossas origens, nossas raízes e nossa espiritualidade estiveram enterradas por séculos pela hipocrisia moral cristã. Muitos são os que se dizem pagãos e bruxos que trazem consigo esse puritanismo e não são capazes de seguir as Verdades Eternas que existem nos mitos, nas práticas e nas tradições. Esse é o Caminho pelos Bosques Sagrados. Este é um caminho que somente pode ser trilhado com terra, sementes, folhas, flores, raízes, penas, entranhas, sangue, ossos, sêmen. Esse é o caminho do bruxo e da bruxa.