Pagãos, bruxos e sacerdotes têm citado trechos de textos e
mitos antigos para agradar a população LGBT, que tem se expandido no Paganismo
Moderno.
Nós não somos uma religião de livro, mas eu tenho notado na Comunidade
Pagã uma crescente interpretação dos mitos e textos antigos como se fossem
verdades literais.
No Patheos Sarah Amis cita trechos dos antigos hinos à
Inanna da sacerdotisa Enheduanna para justificar a androginia sagrada. No
Patheos, Dana Corby cita o mito de criação Feri e afirma que este é o mito de
criação, tanto da Wicca Tradicional quanto do Ofício.
Quando o pagão moderno estuda sobre os povos antigos, seus
mitos, seus ritos e sua visão do divino, ele deve perceber qual era a função, a
razão e o propósito, bem como os ritos e cultos. A base de uma crença, uma
espiritualidade, uma religião está na busca por realidades eternas, não na
satisfação de nosso ego.
Sarah Amis cita o trecho onde Enheduanna atribui a Inanna o
segunte discurso:
“Quando eu me sento na cervejaria, eu sou uma mulher e eu
sou um jovem exuberante. Quando eu estou presente em um lugar de brigas, eu sou
uma mulher, uma figura perfeita. Quando eu me sento junto à porta da taberna,
eu sou uma prostituta familiarizada com o pênis; a amiga de um homem, a
namorada de uma mulher.”
Mas para compreender a função , a razão e o propósito, temos
que compreender a cultura Sumeriana e os mitos de Inanna.
A androginia cerimonial tem uma longa história. Na
Mesopotâmia, as pessoas do tempo envolvidas na adoração da deusa são
frequentemente descritas em textos literários relacionados aos rituais do
templo como andróginos ou sexualmente ambivalentes, eunucos, hermafroditas ou
travestis.
As sacerdotisas e os sacerdotes transgêneros têm a habilidade
de trespassar, de revelar duas palavras essencialmente diferentes uma da outra.
Nessa transgressão, a unidade original da criação do mundo é revelada.
As pessoas de gênero ambíguo atuavam dentro dos limites do
ritual do templo. Assim contidos, o rompimento da realidade fabricada permitia
aos cultuadores contemplarem a fragilidade de suas realidades construídas e dar
espaço à instabilidade dentro de seu mundo predominantemente previsível.
Os aspectos rituais da androginia conectam-se ao propósito
sagrado de transgredir para revelar o outro lado, de pertencer a mais de um
mundo. Esta transposição espiritual era mais facilmente atravessada pelos
andróginos do templo porque eles já haviam atravessado as fronteiras
tradicionais da definição de gênero. ["Inanna, Lady of Largest Heart", de Betty De Shong Meador,
University of Texas Press]
A inversão de papéis tem sua função, razão e objetivo na
propagação da ordem social:
Todas as maiores funções da vida estavam associadas a uma ou
mais divindades patronas e um corpo de mitos e rituais. Nossa distinção entre
“sagrado” e “profano”, o reino da igreja e da rua seria ininteligível aos
gregos antigos. E nós não podemos compreender o mundo deles a menos que nós
percebamos que todos os processos da vida estavam interligados com noções
místico-religiosas. Estudantes do passado tem procurado por uma teoria, uma
chave única, que poderia abrir a porta para a compreensão da natureza e do
propósito dos rituais religiosos nas sociedades pagãs. Uma teoria mais velha
via no ritual primariamente um proposito imediatamente pragmático: o alvo do
ritual era promover a fertilidade da terra e da espécie humana, produzir chuva,
pacificar os Deuses ou evitar desastres. A antropologia mais recente tem
apontado o papel do ritual como um perpetrador dos valores sociais e normas
comportamentais, ou em seus méritos psicológicos como ajudar as pessoas a
conviver com as contradições e problemas da vida.
Se o propósito da iniciação é didático, para doutrinar as
futuras gerações com os valores das velhas para que a sociedade continue, os
rituais de escape tendem a proteger os padrões sociais por providenciar uma
liberação temporária e controlada. O significado mais comum que serve a esse
propósito é a inversão de papéis, que é tão atestado quanto a iniciação. Nas
condições controladas do ritual, o excluído, o submisso e o maldito podem sair
das restrições sociais e das limitações da existência. [“Reign of Phallus”, de Eva C Keuls]
No entanto, os mitos principais e maiores dos Deuses tinham
outra função, razão e objetivo:
No rito, o homem se identifica com o primeiro princípio e a
mulher com o outro. Essa união reproduz o Hiero Gamos, o Casal Divino, o
Andrógino, bem como o mistério da natureza desse mundo, um mundo que é
manifestado e condicionado, em que a humanidade aparece como separados em uma
dualidade, vão se unir por um instante. No orgasmo sexual, a lei da dualidade é
suspensa, o êxtase ocorre e, no arrebatamento, conduz os celebrantes à
iluminação absoluta. [“Shiva e Dioniso”, de Alain Danielou]
Os hinos de Enheduanna eternizaram o tremendo poder de
Inanna, a única Deusa que desceu ao submundo e voltou por conta própria. O
poder de Inanna é tão grande que até os Deuses mais antigos temem sua fúria.
Inanna é a Deusa do Amor, mas é também a Deusa da Batalha. Fica evidente que é
nesse contexto que Enheduanna atribui a Inanna o poder de mudar o gênero.
Entretanto estes não são os únicos aspectos e atributos de
Inanna. Diversos hinos de Enheduanna são canções de Inanna para Dumuzzi. Nestes
hinos, Inanna demonstra toda sua exuberância, sensualidade e sexualidade
feminina. Estes hinos estão tão carregados de erotismo que seria escandaloso
para muitos pagãos modernos verem uma Deusa que exalta ao máximo os atributos
mais carnais de toda mulher, tornando sagrado, o desejo, o prazer e o sexo.
Dana Corbi cita o que ela afirma ser o “mito de criação” da
Wicca Tradicional e do Ofício:
“A Deusa, sozinha no universo que Ela havia criado, sentiu a
necessidade de ter um companheiro, um reflexo, um parceiro. Então ela própria se
dividiu para criar esse parceiro e o Deus nasceu. Vê-lo era deseja-lo e a Deusa
sentiu desejo. Dançando, mexendo, cantando o primeiro encantamento conhecido,
ela o seduziu. Eles se amaram e se tornaram Um novamente e do seu amor o mundo
da matéria nasceu.”
Este texto é muito próximo do texto do livro “A Dança
Cósmica das Feitiçeiras”, de Starhawk [Tradição Reclaiming/Feri] e muito
utilizado pelas tradições diânicas e pelas religiões da Deusa. De acordo com
Dana Corbi, este é o “mito de criação” da Wicca Tradicional, inspirado pelo livro
“Arádia, o Evangelho das Bruxas”, de Charles Godfrey Leland. Dana Corbi ainda
acrescenta que este é o mito de criação “universal” nas velhas formas do
Ofício.
Por mais que eu respeite Dana Corbi, como estudante dedicado
da Wicca e Bruxaria Tradicional estas afirmações esbarram em diversos
problemas. A Bruxaria Tradicional é tão diversificada em suas práticas e
crenças que é completamente sem sentido afirmar que haja um “mito de criação
universal” nas velhas formas do Ofício. A Wicca Tradicional é Britânica, enquanto
o livro de Charles Godfrey Leland fala da Strega, um tipo de Bruxaria
Tradicional Italiana. Nos textos atribuídos a Gerald Gardner e nos Livros das
Sombras não há qualquer indício de um “mito de criação”.
A Comunidade Pagã está fortemente influenciada pelo “neopaganismo
americano”, como bem explicou John Halstead. O mais provável é que covens
tradicionais acrescentaram o “mito de criação” da tradição Feri. O crescimento,
popularização e comercialização da Wicca resultaram na infiltração de agendas
politicas e pessoais. Para o público curioso, interessado e simpatizante, os
covens wiccanos tem tentado atender, através de ideias, práticas e teologias
mais inclusivas. O que certamente explicaria por que têm aparecido tantos
livros de bruxos e sacerdotes voltados para a comunidade LGBT.
Essa confusão aumenta mais quando grupos, covens e
organizações, para aumentar o interesse do publico geral, acabam se
identificando como sendo wiccanos. Infelizmente o canal de Paganismo do Patheos
tem seguido essa tendência. O engraçado é que a própria Comunidade Pagã reclama
do “privilégio wiccano”.
O conceito de uma Deusa criadora e transgênero é um mito
moderno, construído pelo ser humano, em busca de uma espiritualidade, uma
religiosidade e uma crença que satisfaça suas necessidades egoístas. As
Religiões Antigas mantiveram por milênios os mitos, os ritos e os mistérios de
cada um dos Deuses, mesmo aqueles que acabaram assimilando ou sendo
identificados com os Deuses de outros povos.
Nós que somos pagãos modernos e sabemos o quando devemos aos
nossos ancestrais, devemos recuperar os valores e princípios das religiões
antigas. Nós devemos evitar essa religiosidade de conveniência, essa
espiritualidade sintética, essa crença artificial, inventada e vendida para
satisfazer a vaidade humana. Nosso serviço é para nossos ancestrais e Deuses.