Contudo, havia uma problemática: os Estados Papais, sob domínio de Pio 9º, conservador e contrário à unificação. É importante explicar: o que hoje conhecemos como Vaticano, um pequeno território de 44 hectares no interior da cidade de Roma, esteve um dia dentro dos Estados Papais, com mais de 40 mil quilômetros de extensão, ocupando todo o interior da Itália. A Igreja Católica Apostólica Romana era governante, tanto da fé, quanto da administração desse espaço.
Assim, Pio 9º queria garantir, tanto os territórios, quanto a entidade política autônoma da Igreja. Ao mesmo tempo, Napoleão III temia o avançar das tropas republicanas ao norte, o que representaria uma invasão de terras francesas.
O Napoleão que citamos aqui era sobrinho daquele mais famoso. Foi também o primeiro presidente eleito pelo voto direto na França, mas quando não pôde concorrer ao segundo governo, organizou um Golpe de Estado, assumindo o trono de Imperador em 1852. Napoleão III tinha seus planos frustrados pela baixa natalidade na França: no contexto de 1869 os famosos Boulevards parisienses já haviam soterrado a Paris medieval. A urbanização e industrialização destruíram a antiga cidade da Comuna de Paris, na qual vielas e becos prejudicavam o avançar de cavalarias e canhões sobre os revoltosos, reconstruindo Paris em forma de Cidade Luz.
Foi nesse contexto de disputa de territórios e poder político, somado à industrialização da França, que Pio 9º e Napoleão III se uniram militarmente. As tropas francesas defendiam os Estados Papais, logo Pio 9º dependia do Imperador da França para manter sua integridade.
Assim, em 1869 o papa Pio 9º declarou que a alma humana era incorporada na concepção, condenando a interrupção da gravidez sob pena de excomunhão. É relevante pontuar que em 1588 o papa Sixto 5º já havia condenado o aborto de maneira muito similar, contudo, seu sucessor, Gregório 9º voltou atrás e declarou que o embrião não formado não poderia ser considerado humano, logo, abortar seria diferente de cometer homicídio.
Até Sixto 5º, teorias que tratavam sobre a problemática da alma humana já eram debatidas, sendo a tese oficial da Igreja aquela antes defendida por Aristóteles: o feto tinha vida a partir dos primeiros movimentos dentro do útero, o que para meninos ocorreria no 40º dia de gestação, enquanto para meninas, apenas no 90º dia — não se pode esquecer que Aristóteles defendia a inferioridade intelectual e física das mulheres. São Tomás de Aquino e Santo Agostinho concordavam com Aristóteles e foi seu endosso que propiciou que a teoria fosse alçada à tese oficial da Igreja.
Sempre que a questão do aborto é trazida ao debate, argumentos da ordem religiosa aparecem. Normalmente, a noção de que a vida se inicia na concepção é a mais citada por aqueles que são contrários ao ato de interromper a gravidez, equiparando-se, assim, o aborto ao homicídio. Por meio dessa explicação inicial, buscamos historicizar a visão da Igreja sobre o aborto: o que muitas vezes nos é apresentado enquanto intrínseco à fé cristã nasceu há menos de duzentos anos, em uma articulação entre um Papa ameaçado pela unificação e um imperador que buscava maiores taxas de natalidade.
A Questão Romana, como se chama o imbróglio sobre os Estados papais, só seria resolvida em 1929, após acordo entre Benito Mussolini e o Papa Pio 11, o Tratado da Santa Sé, na qual os Estados Pontifícios foram reconhecidos, com total soberania administrativa da Igreja Católica Apostólica Romana. As relações entre fascismo e Igreja são estabelecidas desde então por sociólogos, filósofos e outros estudiosos.
Fonte (citado parcialmente): https://www.pragmatismopolitico.com.br/2022/06/que-esta-jogo-falamos-aborto-desigualdade.html
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