sábado, 30 de janeiro de 2016

O culto asturiano aos bosques sagrados

Escrito por Alberto Alvarez Peña
Original: Fusion Asturias

A palavra "Nemeton" usado para descrever o espaço sagrado no mundo celta, aninhado nos bosques, ou mais estritamente na clareira, como acontece em algumas partes do celta antiga.

Com o surgimento de Nemetona como deusa associada com Marte (deus da guerra indígena) através de divindades como a Matre Nemetiales, em Grenoble, na Hispânia Céltica também aparecem estas referências para o bosque sagrado. Nas Astúrias, temos a lápide descoberta em Uxo (Mieres), encontrado atrás da casa paroquial e dedicada a Ninmedo Assediago. Esta lápide, datável do século II D.C. afirma: "Ninmedo Assediago / G. Sulpicius / VSLM Africanus" que se traduz como "A Ninmedo Assediago, Caio Sulpício Africano oferecido livremente o seu voto para o favor recebido". Assediago apresenta a raiz indo-européia "SED" o que poderia indicar "sentado". Quanto a "Ninmedo" dissemos que vem do Céltico "Nemeton" que viria a transformar lugar sagrado e morada dos deuses, que mais tarde seria também latim para "Nemus" (bosque sagrado) também se encontram em Nemedus Augusto, na Caverna da Grega em Pedraza (Segóvia) dentro da área de celtibérica. A clareira onde a divindade também aparece entre os alemães, e Tácito disse um deles afirma: "não considerado digno dos deuses representam paredes ou colocá-los em forma humana, e para consagrar bosques e dar-lhes o nome de deuses que algo misterioso e só pode ver com os olhos de reverência. " Estrabão cita também Drunemeton como um centro de culto e de organização política dos gálatas que ocuparam uma parte da Ásia Menor.

Anos mais tarde, Martin Dumiense, em seu "Correctione Rusticorum" alerta entre os asturianos para o que ele considerava uma adoração pagã: coloque velas ao lado de rochas, árvores ou fontes, ofertas de árvores pão e fontes, enrames, etc. Com o advento do cristianismo muitas árvores e bosques sagrados foram cortadas, embora alguns sobreviveram a árvore ao lado do santuário cristão onde a divindade, como na velha religião, que se manifesta na árvore. Como um lembrete daqueles dias ainda existem textos antigos e carvalhos ao lado das capelas rurais. As árvores eram intocáveis. Leite de Vasconcellos disse em Portugal que, quando as árvores eram cortadas no bosque sagrado de Arvaes com ferramentas de ferro era necessária purificação pelo sacrilégio. A meados do século XV, Jerônimo de Praga ", disse que cultuavam florestas consagradas aos demônios e especialmente aos velhos carvalhos". Em "Vida de São Willibrord" diz-se dos frísios e suas florestas sagradas, "Ninguém se atreve a tocar em nada, nem mesmo tirar água da fonte que borbulha lá, a não ser em silêncio." Entre os celtas irlandeses se venerava o teixo de Ross, o carvalho de Mughna e o freixo de Visnedr; na França foi batizado o carvalho de São Quirino.

Muitas vezes na árvore sagrada oferendas e ex-votos foram colocados. O Cristianismo tentou, num primeiro momento, erradicar essa prática derrubando a árvore. Assim São Barbate ordenou derrubar a árvore sagrada dos Lombardos onde pendia peles de animais e carne. São Amador, bispo de Auxerre, mandou derrubar um pinheiro em cujos ramos pendiam as cabeças de animais mortos na caça. São Bonifácio derrubou a árvore sagrada dos Hesios e Carlos Magno mandou derrubar Jrminsul, a árvore sagrada dos saxões. Em toda a Europa, árvores antigas caiu sob o machado impiedoso do Cristianismo. Os ex-votos colocados na árvore oferecidos à divindade também poderiam ter referência à razões de saúde, então se faziam representações das partes do corpo afetada, pernas, braços, troncos, etc. Isso era muito comum entre os gauleses, tanto que Gregório de Tours condenava como um costume pagão. Ao longo do tempo, a Igreja foi assimilando estes oferendas nas capelas dedicadas a santos e virgens, dos deuses protetores de pequenos animais, saúde, cabeça, etc. Assim, ainda podemos ver em Astúrias ex-votos em cera, na forma de membros ou gado.

Traduzido com a ajuda do Google Tradutor

quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

As crianças de Woolpit

As crianças apareceram não se sabe de onde. Eles falavam uma língua desconhecida, usavam estranhas roupas. Não comiam e tinham uma pele verde. Eles pareciam não ser deste mundo. Quem eram eles e de onde vieram?

Essas crianças misteriosas entram em nosso mundo através de uma janela do tempo, de outra dimensão ou emergiram do submundo? Depois de muitos anos, muitas pessoas têm se ocupado com estas questões, tentativas para encontrar uma explicação para essa estranha ocorrência que só torna o caso mais inexplicável.

A história começou há muito tempo atrás; as duas notáveis crianças foram descobertas na vila de Woolpit, em Suffolk ― UK. O incidente se deu durante o regime do rei Stephen da Inglaterra (1135-1154), numa época difícil. Os camponeses estavam trabalhando quando as duas crianças, um garoto e uma garota, repentinamente emergiram de um fosso profundo. As pessoas ficaram de olhos arregalados diante do fato.

Estavam vestidas com roupas de material nada familiar e suas peles eram verdes. Era impossível falar com eles por que tinham um dialeto desconhecido. Os dois foram levados para o dono do feudo, Sir Richard de Caline. Obviamente, eles estavam tristes e choraram por vários dias.

Os pequenos esverdeados se recusaram a comer e a beber qualquer coisa até que alguém ofereceu feijão ainda no talo para eles. Eles sobreviveram comendo feijão por vários meses. Mais tarde eles começaram a comer pão. O tempo passou, o pequeno e esverdeado garoto entrou em depressão, adoeceu e morreu. A garota adaptou-se melhor a sua nova situação. Ela aprendeu a falar inglês e gradualmente sua pele foi perdendo a cor verde. Mais tarde se tornou uma saudável jovem e se casou.

Ela era sempre perguntada sobre seu passado e de onde tinha vindo, mas tudo que falava só fazia aumentar o mistério sobre suas origens. Explicava que seu irmão e ela tinham vindo de "uma terra sem sol", com um perpétuo crepúsculo. Todos os habitantes eram verdes. Ela não tinha certeza exata onde se localizava sua terra. Ainda, ela chamava de "Luminous" a outra terra, que era cruzada por um "rio considerável" separando o mundo deles.

Também são inexplicáveis como as crianças apareceram naquele fosso. A garotinha disse que ela e seu irmão estavam procurando o rebanho do pai e seguiram por caverna escutando o som dos sinos. Vagaram na escuridão por um longo tempo até que acharam uma saída; de repente, eles ficaram cegos por um clarão de luz.

A luz do sol e a temperatura diferente deixaram-nos cansados; descansavam quando ouviram vozes, viram pessoas estranhas e tentaram fugir. Entretanto, não tiveram tempo de se mover da boca do fosso onde foram descobertos. As fontes originais dessa história são William de Newburgh e Ralph de Coggeeshall, dois cronistas ingleses do século 12.

Muitas explicações têm aparecido para o enigma das crianças verdes. Uma das teorias sugeridas é que as crianças eram imigrantes flamengas que sofreram perseguição. Seus pais teriam sido mortos e o garoto e a garota se esconderam na floresta. Esta idéia explicaria as roupas diferentes, mas não esclarece o fato das crianças falarem uma língua desconhecida, embora alguns habitantes locais achassem que era uma corruptela de flamengo.

Outros sugerem má nutrição ou o envenenamento por arsênico como a causa da pele verde. Também havia um rumor que um tio tentou envenenar as crianças, mas isso nunca foi confirmado. No entanto, outras pessoas como o astrônomo escocês, Duncan Lunan, sugeriam que as crianças eram alienígenas enviados de outro planeta para a Terra.

De acordo com outras teorias, as crianças vieram de um reino subterrâneo ou, possivelmente, de outra dimensão. Poderiam as crianças verdes de Woolpit ter vindo de um mundo paralelo, um lugar invisível ao olho nu? É importante lembrar que a garota disse que "não havia sol" no lugar de onde ela teria vindo. Disto se pode deduzir que ela habitava de um mundo subterrâneo. A verdadeira origem das crianças nunca foi descoberta e este caso continua um mistério.

sábado, 23 de janeiro de 2016

A "Roda do Ano" latina

Os pagãos modernos pelo mundo todo adotam o que se convencionou chamar de “Roda do Ano”, um calendário supostamente Celta que divide o ano em oito datas que os pagãos modernos se apropriaram da Wicca Tradicional.
Como um pagão moderno estudioso, eu percebi que essa “Roda do Ano” não é Celta e não possui qualquer relação com qualquer civilização de origem Indo-Européia. Muitos dos ditos “sabats” que os pagãos modernos celebram tem origem em datas festivas galesas, datas festivas germânicas e algumas são simples invenções modernas.
No entanto a base de nossa crença é o sagrado na natureza, no mundo. Então a “Roda do Ano” é mundialmente adotada pelos pagãos modernos, conforme as datas das estações locais e os solstícios e equinócios, que são eventos astronômicos, historicamente atestados como datas festivas celebradas por diversas culturas e povos.
Ao visitar o blog Chakaruna, eu fiz um achado que vem bem a calhar para os pagãos latinos: a existência de uma “Roda do Ano” latina e uma astronomia Tupi-Guarani.
Eu vou citar os trechos mais importantes:

O tempo é uma constante da natureza em que existimos e todas as civilizações do mundo desenvolveram sua maneira própria para compreender e ser relacionar com ele. A civilização Qolla, por exemplo, conta com dois calendários: o primeiro é o CALENDÁRIO AMAWTA, contendo as metáforas sobre a origem do tempo e suas respectivas idades; o segundo é o CALENDÁRIO QOLLA. Ambos, no entanto, têm referência astronômica e são calendários luni-solares.
Em sua versão ancestral, o calendário qolla sistematiza o ciclo solar, lunar e agrícola usando uma unidade de tempo chamada KUMI - um período de 20 anos, muito conhecida nos Andes e ainda hoje usada, sobretudo pelos mais velhos, que contam o tempo de 20 em 20 anos. O kumi é formado por cinco TAWA, e cada tawa tem quatro anos. Um tawa une-se ao seguinte por intermédio de um dia chamado JACH’A URU ou JUTUN P’UCHAY, que significa “O Grande Dia”.
O termo andino para significar o ano é MARAWATA. Mara significa “ano” na língua Aymara; em quéchua, mara é uma pedra especial, aquecida pelos raios solares e wata significa “reforço” ou “remendo”,com o sentido de sustentar algo. Portanto, MARAWATA significa “sustento do ano”. O marawata se expressa através da INTIWATANA (as amarras do Sol), um gnomo: uma coluna de pedra usada para acompanhar a passagem do ano através da sombra projetada pelo sol nas diferentes épocas. O campo dessa sombra é dividido em dois tirsu, que equivale a meio ano, e quatro taru, que é a quarta parte do ano. As estações do ano de acordo com o material lítico e as informações orais que nos chegaram, se traduzem em quatro PACHAS [indicada pelos quatro taru], que são:
 Juyphipacha (tempo do frio), começa em 04 de Maio e termina em 02 de Agosto. Em 04 de Maio acontece a FESTA DA CHAKANA, talvez a mais popular em todo Andes, sinalizada pelo Cruzeiro do Sul (Chakana) que atinge seu ponto mais alto no céu. No dia 21de Junho – solstício de inverno – acontece o INTIRAYMI ou a FESTA DO SOL. Essa festa começa a ser preparada a partir da lua nova antes de 21 de junho, e dura três dias antes e três dias depois solstício, ou seja, de 18 a 24 de junho.
 Wayrapacha (tempo do vento), começa no dia 3 de agosto e acaba em 1º de Novembro. No dia 21 de Setembro – equinócio da primavera – acontece a QHUAYARAYMI ou FESTA DOS JOVENS
 Jallupacha (tempo das chuvas), começa em 1º de Novembro e termina em 02 de Fevereiro. No dia 21 de Dezembro – solstício de verão – celebra-se o QHAPAXRAYMI ou A GRANDE FESTA DO SOL, festa da família.
Llamp´upacha (tempo do calor), vai de 2 de fevereiro a 2 de maio. No dia 21 de março – equinócio de outono – acontece o PAWKAR RAYMI ou FESTA DOS SÁBIOS, das pessoas mais velhas.
O ano qolla é composto por 13 meses lunares de 28 dias aproximadamente chamados PHAXIS, que começam sempre na Lua Nova. Em aymara, “phaxis” tanto significa “mês” quanto “lua”. Dessa forma, o ano tem normalmente 364 dias. Para equivaler ao ciclo solar, recebe um dia extra chamado MARAT’AQA ou WATAP’ITI, que significa “ruptura do ano”.
O Marat’aqa é considerado um dia fora do ano, um tinku – a ponte entre o ano velho e o ano novo.
Só bem depois, os dias foram recebendo nomes mais fixos e associados às cores do arco-íris – outro símbolo potente nos Andes:
Sábado - Chupuru - VERMELHO
Domingo - Wanturu - LARANJA
Segunda - Q’illuru - AMARELO
Terça - Ch’uxñuru - VERDE
Quarta - Laqpuru - CELESTE
Quinta - Larmuru - AZUL
Sexta - Qulluru – VIOLETA
Fonte: Chakaruna

Desse mesmo blog vem a informação mais crucial aos pagãos latino-americanos, que é a astrologia tupi-guarani, que ordena e organiza seu calendário pela constelação do Cruzeiro do Sul.
Eu vou citar os trechos mais importantes:

O Cruzeiro do Sul fica em plena Via Láctea, sendo a constelação mais conhecida dos indígenas do Hemisfério Sul, que a utilizam para determinar os pontos cardeais, as estações do ano e a duração do tempo à noite. As Plêiades ficam em segundo lugar, sendo utilizadas para calendário.
Segundo d’Abbeville, os tupinambá conheciam muito bem o aglomerado estelar das Plêiades e o denominavam “Seichu”. Quando elas apareciam no lado leste, ao anoitecer, afirmavam que as chuvas chegariam como chegavam, efetivamente, poucos dias depois. Como a constelação aparecia alguns dias antes das chuvas e desaparecia no fim para tornar a reaparecer em igual época, eles reconheciam perfeitamente o intervalo de tempo decorrido de um ano a outro. Da mesma maneira, atualmente para os tembé, que habitam o norte do Brasil, o surgimento das Plêiades anuncia a estação da chuva e o seu ocaso, quando elas desaparecem no lado oeste, ao anoitecer, indica a estação da seca. Para os guarani do sul do país, o aparecimento das Plêiades anuncia o verão, enquanto o seu desaparecimento indica a proximidade do inverno.
Fonte: Chakaruna

Nossos índios não eram ignorantes como nos fizeram crer. Eles foram capazes de fazer observações astronômicas e astrológicas. Os tupi-guarani tem até seus próprios sistemas de signos astrológicos. Então a sugestão que eu dou a todos os pagãos latino-americanos é que adotemos referências que têm mais afinidade com a natureza e as nossas origens e raízes neste continente.

terça-feira, 19 de janeiro de 2016

Espiritualidade indígena

Quando as pessoas morrem, dizem os Suruí-Paiter, as almas têm que percorrer um caminho largo e longo, o MARAMEIPETER, aberto na floresta dos céus. É uma viagem terrível, e os pajés e parentes dos mortos choram e rezam na terra para que os deuses tornem possível a travessia. Os pajés acompanham a alma, podem ir ao além e voltar para os vivos.

A morte antigamente não existia. A lua também não. Os mitos que explicam a vida e regem o cotidiano ainda são encontrados e contados nas aldeias. Há cerca de 170 línguas diferentes, faladas por 200 povos indígenas no país. As religiões seguidas pelos índios no Brasil não foram esquecidas, embora sejam poucos os jovens que sigam os passos dos seus pais e avós.

Os pajés costumam ter reuniões em lugares ignotos e invisíveis, entendem-se e conversam uns com os outros mesmo quando falam línguas distintas e pertencem a diferentes povos — assim nos explicam os Gavião-Ikolen de Rondônia. Com seu poder de invocar quem rege o universo, constituem uma só humanidade. Nós, que não temos essa capacidade, enfrentamos a barreira das 170 línguas indígenas brasileiras, e pouco sabemos em que acreditam os mais de duzentos povos do país. Eles convivem conosco, e ainda agora a grande maioria mantém sistemas de diálogo com deuses próprios e com o além.

Como cada povo tem uma explicação do mundo, que julga ser a verdadeira em contraposição à dos outros, não podemos falar em crenças ou religião dos índios como um todo. É preciso tomar alguns casos, para procurar compreendê-los melhor, e para estimular a pesquisa e a curiosidade sobre a imensa diversidade espiritual indígena.

É verdade que há características semelhantes e genéricas. As tradições dos índios brasileiros inserem-se numa vasta vertente religiosa, a do xamanismo, com a qual autores como Mircea Eliade ou Alfred Métraux, por exemplo, tanto nos fazem simpatizar. Famosos na Ásia, passando por todos os continentes, sabemos da existência de xamãs ou pajés, capazes de voar aos céus, descer às profundezas subterrâneas ou das águas, transformar-se em onças e outros animais, atingir o êxtase e o transcendente, casar-se com espíritos, expressar-se em línguas incompreensíveis para o comum dos mortais. Submetem-se a provas e rituais como prolongadas reclusões, suportam temperaturas excessivas, a do fogo ou a do gelo (alguns podem dormir na neve e derretê-la com seu calor interno), vêem as almas dos mortos, causam e curam doenças e males. Recorrem a alucinógenos ou tabaco e utilizam instrumentos como bastões e maracás dotados de poderes especiais, via para o sagrado, para convocar os deuses e chamá-los à terra, ou para o abandono transitório do corpo pela alma, no sonho ou na vigília, subindo para esferas imateriais.

A matéria-prima para as observações que se seguem são as pesquisas de campo da autora, em cerca de quinze povos indígenas de Rondônia e Mato Grosso, realizadas desde 1979. A bibliografia disponível, leituras e fontes secundárias, contribuem para o conteúdo (como o livro de Franz Caspar, Die Tupari, um estudo feito na região há mais de meio século). Mas o fundamental é a experiência vivida, contada e registrada em suas línguas por uns quarenta pajés, que se tornaram amigos próximos e colaboradores. Quase todos são homens, embora também algumas narradoras tenham transmitido conhecimentos preciosos.

Os povos em foco nessas linhas têm contato com a sociedade brasileira há poucas décadas — cerca de trinta anos os Suruí-Paiter, sessenta os Gavião-Ikolen, assim como os Arara-Karo ou os Tupari, ou há uns setenta, os Macurap. Apenas os Suruí, e há poucos anos, não estão praticando os rituais de cura, embora fossem até 1995 os mais avessos ao cristianismo. Mas mesmo entre eles, como em todos os outros, as tradições religiosas continuam acesas. Deve-se reconhecer, porém, que estão agora mescladas a novas influências, como do fundamentalismo protestante e de informações vindas da cidade, e que praticamente não surgem novos pajés ou jovens que pensem em seguir o caminho dos pais e avós.

Os pajés Gavião-Ikolen de Rondônia aprendem, ao longo do seu ofício, a transformar-se em animais. E sob a forma de papagaios, periquitos, araras que voam em busca das almas dos doentes, roubadas por entes do mato, como os ZAGAPUY ou os temíveis ZEREBÃI, que as camuflam em sua morada, em cestos, pedaços de algodão, esconderijos vários. Dialogando ou ameaçando os predadores, os pajés trazem de volta as almas ao corpo enfermo, curando-o. Pajés também se metamorfoseiam em animais ferozes: gostam de ser onças, lontras, porcos-do-mato e outros. E quando muito experientes, divertem-se assustando um jovem que desejam ter como aprendiz: ameaçam-no, tomando a aparência de jaguar, revoam em torno dele, falam, invisíveis.
É quando "acontece", conta quem se iniciou, um desmaio, vozes esquisitas na floresta, febres estranhas ao voltar. É o chamado para o difícil caminho de se tornar pajé, a revelação. O aprendiz não pode ter medo da onça que encontra (como saber se é o pajé mais velho ou um animal selvagem?); deve fitá-la nos olhos. Com o tempo, também conseguirá ser um jaguar. Há casos de pajés que flecharam a si próprios, quando incautos andavam em forma de onça... e acordaram no dia seguinte com a boca entranhada de pelos. Cada pajé mais velho cobiça alguns aprendizes, perpetuando a sua sábia linhagem.

Em 1981 os Gavião-Ikolen haviam abandonado os rituais de pajelança, pois eram dominados pelos missionários da seita “Novas Tribos do Brasil”. Foi então que o pajé Alamãa desapareceu misteriosamente da Casa do Índio em Porto Velho, e nem a polícia nem os parentes descobriram qualquer pista sua. Meses depois, reapareceu na aldeia, a centenas de quilômetros, em transe permanente. Sua chegada foi precedida por animais tidos como zerebãi, espíritos assustadores. Alamãa contou que aprendera com eles a arte de transformar-se em lontra, ave, onça, e sobreviver como animal, e que voando, nadando ou caçando viera pela selva reencontrar os seus. Com ele, recomeçaram a pajelança e os rituais de cura; índios e FUNAI expulsaram os missionários, a luta pela terra ganhou força vitoriosa contra os numerosos invasores. Anos depois, em 1992, Alamãa sumiu outra vez – agora em desespero pela ação ilegal dos madeireiros, ao ver tombar a floresta milenar, morada dos deuses. Na sua última fuga, exibiu tal vigor que cinco fortes guerreiros jovens não conseguiram retê-lo; desapareceu nas brenhas. Ainda hoje há ocasionais boatos de que vive em terras dos índios Zoró, mas outros acreditam que se juntou aos Goianei, Espíritos das águas, e nunca mais voltará na forma anterior.

Quando as pessoas morrem, dizem os Suruí-Paiter, as almas têm que percorrer um caminho largo e longo, o Marameipeter. Quem tem doenças graves também faz a viagem, vê os seres queridos que já se foram e, se sarar, retorna à vida normal. Há, assim, muitas testemunhas do que se passa nos céus.

Grandes perigos acometem os viajantes na estrada misteriosa. São descomunais para os covardes, os transgressores, os criminosos, como quem cometeu incesto ou matou parentes, mas se tornam diminutos para os bravos, os corajosos, de conduta correta, que fizeram muitas roças e sustentaram grandes famílias.

Os homens deparam-se mais adiante com uma mulher gigante, LAPOTI, com a vagina semelhante a uma caverna para engolir o viajante. Para o homem valente, a boca e a vagina se suavizam e diminuem, como em uma mulher normal, com quem ele copula, seguindo sossegado. Para as mulheres, há um homem com pênis gigantesco, dilacerando as que foram malcomportadas; ou apenas com uma tirinha de nada, suportável, para as bem-sucedidas em vida.

Há muitos outros pavores. Lembremos o GRANDE FOGO, queimando quem merece, ou pequena chama para os virtuosos; os ESPINHOS DESCOMUNAIS; as PEDRAS QUE ESMAGAM; os próprios parentes mortos que retêm quem chega, por amor e saudade talvez, mas o extingue; a LANÇA QUE FURA AS ALMAS; a minhoca imensa MOTINGNI, mordendo os covardes ou desfazendo-se em mil fragmentos para os fortes; a ONÇA DEVORADORA, e muitos outros. Quando vencem, as almas bravias chegam a uma morada paradisíaca, onde vivem com deuses e com os parentes que foram capazes de afrontar os monstros.
Quando os pajés relatam como se iniciaram, delineia-se um padrão. Há um elemento de hereditariedade, predominando pajés em algumas famílias. Dentro do parentesco, o acaso ou revelação: sonhos ou visões súbitas, e a proximidade com a morte, por doença grave ou, com freqüência, por mordida de cobra. Os deuses causam as doenças e, pela intervenção dos pajés, fazem-nas desaparecer.

É sempre um susto para quem é atingido: vai ao país das almas, enfrenta monstros e grandes perigos, e encontra os deuses, que anunciam as reclusões e duras provas a que deve submeter-se, como a travessia do Caminho das Almas. Os jovens, ou mesmo seus pais, sempre desejam fugir do chamado, que aterroriza, exige coragem sobre-humana e regras rígidas de comportamento, como longos períodos de abstinência sexual — mas não há como recuar diante da vocação imposta por desígnios divinos.

Os pajés mais velhos acompanham os aprendizes, ensinam-lhes cantos, que eles aprendem também diretamente dos próprios deuses. Certa ocasião, recluso em sua pequena oca, atendido apenas por crianças, pela jovem noiva impúbere prometida e pelo pajé-mestre, um aprendiz cantou dias e noites ininterruptos, sem dormir, trêmulo, sempre em transe, agarrado ao NARAÍ, seu cetro de xamã, incorporando a cada vez um deus diverso. Por sua boca falava GAPAME, um entre centenas de Espíritos, que desce à Terra acompanhado de ventos, aos quais apenas o seu belo cocar de plumas coloridas resiste, enquanto árvores se despedaçam e folha se esparramam.

Alguns aprendizes fracassam por não ter coragem suficiente. Outros morrem, ao infringir a proibição de namorar no período dedicado aos deuses.

Os pajés e os mortos Ikolen percorrem um caminho das almas nos céus, no GARPI, análogo ao dos Suruí, atormentado por perigos. Mas os pajés acentuam a face prazerosa das suas viagens, destinadas a amparar a passagem dos falecidos, a buscar os doentes e também a passear. As ocas e aldeias do além, eles contam, estão em festa permanente. Enquanto seus corpos adormecem na rede, ao lado das esposas, os pajés passam a noite dançando, bebendo, casam-se com mulheres-espíritos ou deusas, com quem têm filhos, que por sua vez vão amparar os mortais.

Num ritual de cura, os filhos e a mulher divinos do pajé Tsiposegov chegaram à aldeia uma um, proibindo sob grave pena que alguém olhasse para eles na noite sombria. Inquiriram como estavam os irmãos humanos; traziam saúde e a cura e conversaram em voz alta, registrada em gravador. Carne e espírito parecem não se opor; o namoro une o físico ao imaterial. Há, ao mesmo tempo, abstinência sexual, levando as pessoas a fixar-se num alvo e dedicar-se ao sagrado sem dilaceramentos.

Diz o pajé Txipiküb-ob que pisa o chão do Caminho das Almas, mas não é como ir à roça e tocar a terra com os pés: é um piscar de olhos que o faz ir muito longe, por tempo infinito, permitindo voltar. E um êxtase que os que não experimentaram não consegue entender.

As almas podem ser muitas, em cada povo, sediadas em diferentes partes do corpo. Notemos que os Tupinambá atribuíam ao fígado qualidades semelhantes às que nos evoca o coração.

Os Ikolen têm o TI – seria talvez a energia ou psique animadora, a que faz criar –; o ZAGONKAP, o nosso invólucro ou "semente do coração", "casca do coração", que gosta de viajar, com ou sem corpo; o IXO, imagem ou sombra, que não tem morada fixa, erra no mato, a que mais conhecemos e tememos, porque quer nos arrastar. Paixão, hálito, sopro, alento, emoção, daimon, duplo, reflexo, ânimo? Cada alma há de ter um pouco da substância que faz o corpo não ser corpo apenas.

Texto de Betty Mindlin

Original: Chakaruna

sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

A religião, os Deuses e os mitos

Para os índios, são os mitos que contêm a verdadeira história do mundo. Os mitos não são fantasia ou ficção, e sim a explicação do universo: a origem do cosmos, da humanidade, da sexualidade, dos astros, da caça, da agricultura, das mulheres, da arte e da música, de tudo que é possível conceber. Cerimônias, festas, rezas, cantos, proibições, regras de comportamento – tudo aquilo que faz parte do que costumamos chamar de religião – têm como chão um corpo mítico, inerente ao cotidiano, sem nítida distinção entre o sagrado e o profano, familiar para todos, embora os pajés detenham um conhecimento mais profundo e a prerrogativa das viagens místicas.

Na festa de cura e invocação de abundância na colheita e no plantio, como o HOEIETÊ dos Suruí-Paiter, o Lua, um homem, incorpora-se ao pajé, cantando e contando quem é, espetáculo para a comunidade inteira. Antes de existir o Lua, ele visitava sua irmã, que morava sozinha numa pequena oca, em reclusão de vários meses pela primeira menstruação, e namoravam em segredo, sem que ela soubesse quem era ele.

Aconselhada pela mãe, enquanto ele dormia, a moça pintou-o de jenipapo, tinta negra indelével. Desvendou-se a identidade do moço na manhã seguinte, quando a mãe o viu entre os homens da aldeia. Com a vergonha pelo incesto, os dois jovens subiram aos céus e transformaram-se na Lua, um astro assim criado no cosmos: as manchas escuras são o jenipapo, marca da transgressão e da paixão.

Nos povos de Rondônia, como em inúmeros outros, os criadores do universo costumam ser um par de companheiros ou irmãos. Um deles é mais folgado e preguiçoso, sempre na rede balançando; o outro, arteiro e desastrado, inventa e prega peças, mas traz novidades para os seres humanos. Assim é entre os Aruá, com ANDAROB, menos inteligente, o de cabeça vermelha, e PARICOT, assanhado. Não havia mulheres, embora tivessem uma irmã (mistério!). Para casar, Paricot copulou com o morro de cupim e, meses depois, do fundo da terra, nasceu a humanidade, que ele soltou abrindo um buraco nas rochas. Paricot inventou a agricultura, trouxe a água, o fogo, com seu irmão sempre atrapalhando, e até morreram queimados os dois, para depois renascer. Paricot ensinou uma só língua para todos os povos; Andarob fez confusão, fez cada grupo saber uma língua diferente. Juntos criaram o adultério, transformaram gente em animais, para brincar e para ter caça, inundaram a terra, e depois consertaram as modas esquisitas que desencadearam.

Nos Macurap, nos Jabuti, nos Tupari, nos Arikapu ou Ajuru, sempre há esse jogo de opostos; não são o bem e o mal, mas se trata de uma ordem e uma brincadeira criativas. Vale a pena conhecer as suas travessuras e desastres, e saber como chegam a ser punidos pelos homens por exagerar.

Lembremos que os criadores ou demiurgos, em todos esses povos, são sempre homens, nunca mulheres. Nos Suruí, as primeiras mulheres provêm de um homem e uma cabaça; esse homem já tinha mãe, personagem acessória, não aparecendo como ser primordial.
Em muitos povos, antigamente, a morte não existia. As pessoas morriam e retornavam. O grande mal é explicado em cada lugar de um jeito.

Os Macurap contam de um homem que morreu, foi enterrado na própria oca, como era costume, mas disse à mãe que não chorasse, pois voltaria, como de fato fez, na forma de uma criança que ia crescendo aos poucos, com as batatas com que a mãe o alimentava. Quando já estava quase na forma anterior adulta, sua mãe foi à roça, e ele ficou sozinho com uma velha gulosa e exigente que não cessava de lhe pedir o alimento. Ele deu enquanto tinha, mas a batata acabou. A velha ranzinza amaldiçoou-o: "Você não tinha morrido? Por que voltou? Fique lá embaixo!" Ofendido, ele se foi para o reino dos mortos. A mãe, desesperada, seguiu-o, mas teve que morrer, mordida por um escorpião, para ficar junto dele.

Desde então os mortos se afastaram para um domínio longínquo, e têm que ser chamados pelos pajés para serem homenageados. Cada morte, hoje em dia, exige complexos rituais e dedicação dos pajés, com muita dor e tristeza de todos.

Os Tupari contam que antigamente os mortos voltavam. Um homem, Patopkiá, havia proibido as irmãs de chorarem quando morresse. Mas quando elas o viram morto, quiseram aprender a chorar, porque só sabiam assobiar, e pediram à velha Ubaiped que lhes ensinasse. A velha ensinou um canto e um choro, só que no caminho elas sempre se esqueciam.

Tropeçavam repetidas vezes, e esqueciam. Até que a velha resolveu acompanhá-las, e quando encontraram Patopkiá saindo da sepultura, foi uma choradeira de fazer medo. Ele ficou furioso, atirou pedras na velha, porque não agüentava mais a barulheira dos lamúrios, e pendurou-a no meio do rio. Desde então existe a morte, por causa dessa velha.

Nos Tupari e nos Macurap é uma cobra ou um arco-íris a ponte que leva as almas dos mortos para a esfera imaterial, cruzando um grande rio. Nos Tupari, os mortos perdem a memória, ficam como criancinhas, vão para a casa de Patopkiá, o chefe dos mortos. Antes, porém, têm que passar por duas cobras e dois jacarés estirados, e enfrentam grandes perigos. Nos Macurap, a cobra-ponte é um arco-íris, que vem buscar de mansinho os espíritos dos mortos para levá-los às alturas. Não é simples o caminho, as almas sofrem demais até chegar ao seu destino.

Faz parte da espiritualidade dos índios um leque amplo de seres fantasmagóricos, assustadores, que as pessoas temem encontrar na floresta, sobretudo quando estão sozinhas, ou mesmo quando se afastam no escuro perto das ocas, para pequenas saídas noturnas biológicas ou para namoros camuflados. Nos Macurap, o TXOPOKOD, uma aparição, vive mudando de personagem. Um deles tem o papel de amante proibido; usando apenas a mão, faz o clitóris de uma mulher casada crescer de prazer até tornar-se descomunal. Nos Tupari, é o TARUPÁ o ser maléfico, tanto assim que esse é o nome atribuído ao colonizador não-índio, que trouxe doenças e invenções tecnológicas. Um dos Tarupás toma a aparência da avó de uma criança, oferecendo de carregá-la no colo enquanto a mãe dança, e a rouba. Há uma mulher Tarupá coberta de pelos que quer namorar o caçador. O WAINKÔdos Ajuru também parece humano e finge ser a melhor amiga de uma menina para levá-la para uma velha malvada. Nos Suruí ou nos Gavião e Zoró, o GERBAI e o ZEREBÂI podem parecer gente inimiga, ou animais estranhos, que é preciso evitar, pois querem matar. É comum o ZAGAPUY dos Ikolen engravidar moças solteiras, que se apaixonam por eles, quando assumem contornos de sedutores.

Espectros capazes de destruir, a maioria desses entes são também pouco inteligentes e podem ser enganados por índios espertos. Dois amigos Tupari convencem um Tarupá que estão esmagando os próprios testículos para comê-los como ovos ou coquinhos de tucumã. O Tarupá guloso imita-os, espoca suas bolas... e morre, doido de dor. Suas cinzas têm o poder de tornar as pessoas invisíveis. (Há um episódio parecido em Macunaíma, de Mário de Andrade). Outro Tarupá é persuadido por dois amigos Tupari, que para ter um cabelo bonito como o deles deve submeter-se a um corte com um instrumento afiado, e os dois malandros o decepam. Enganar espíritos é uma arte que vale a pena aprender.

Chamam a atenção, nas aldeias tradicionais, como nas Suruí, as inúmeras reclusões a que devem obedecer as meninas na menarca, as mulheres menstruadas, as parturientes, as pessoas de luto, os pais de nenês pequenos e os que mataram. O isolamento chega a levar meses, com restrições alimentares. Se as regras são desobedecidas, acredita-se que podem advir males para todos ou doenças para os familiares.

Muitas mortes são atribuídas à quebra de tabus, sobretudo quanto à comida. O sangue representa um perigo, como o dos recém-nascidos e suas mães. Há em toda rotina cotidiana um clima sobrenatural, a ameaça permanente de quebrar uma ordem divina ou provocar visagens. As palavras podem desencadear processos indesejáveis, provenientes do invisível. Pronunciar o nome de certos parentes, por exemplo, nos Suruí, os filhos dizerem o dos pais, ou o dos mortos, traz conseqüências funestas, como se estivessem sendo invocadas aparições. Há pios ou ruídos, trovões ou luzes, que anunciam tragédias. O cenário mais calmo, da floresta ou da aldeia, é repleto de transformações virtuais, que fazem a paz desmoronar.

Para assegurar a fartura e a tranqüilidade, a saúde, é preciso providenciar numerosas festas com bebida e comida, unindo a comunidade, trazendo os deuses e honrando-os.

Festas como nos Suruí, o MAPIMAÍ, nos Ikolen, a dos céus GARPII, a do fogo ou dos jacarés para os GOIANEI das águas, e nos povos do Rio Guaporé e Rio Branco (Tupari, Macurap, Jabuti, Ajuru e outros), as reuniões de pajés, com longo preparo de alucinógenos, fazem parte da esfera da produção e do bem-estar, ponte entre os mortais e os eternos, da qual o efêmero arco-íris é uma bela imagem.

É temerário pincelar em poucas páginas o universo místico dos índios, que só de relance conseguimos adivinhar. Não foram sequer aflorados povos muito estudados, nem rituais famosos como o de morte e criação, o Kwarup do Alto Xingu, ou o drama da feitiçaria, com sua intricada relação como mecanismos do poder político, ou as cerimônias e festas proibidas às mulheres por razões religiosas, infundindo temor e reverência em certas ocasiões. Que leitores, índios e editores, invoquem os deuses das matas e campos brasileiros, abram-lhes o infinito espaço que é deles, preparem festas grandiosas e os convidem para beber e comer, conclamando-os a descer às feiras literárias e metamorfosear-se com seus dons mágicos em livros e bibliotecas, faldas e escritas

Texto de Betty Mindli

Original: Chakaruna

quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

Como tratas a Héstia?

Atualmente há toda uma nova forma de interpretar os velhos mitos gregos e de outros povos. Ao invés de considerar os deuses e deusas como entidades subsistentes, agora cresce a hermenêutica, especialmente, após os estudos do psicanalista C.G. Jung e seus discípulos J. Hillman, E. Neumann, G. Paris e outros, de que se trata de arquétipos, vale dizer, de ancestrais forças psíquicas que nos habitam e movem nossas vidas. Elas irrompem de forma tão vigorosa que os conceitos abstratos não conseguem expressá-las mas que o são mediante relatos mitológicos. Neste sentido o politeísmo não significa a pluralidade de divindades, mas de energias que vibram na nossa psique.


Um desses mitos que contem um significado profundo e atual é aquele da deusa Héstia. Segundo o mito, ela é filha de Cronos (o deus do tempo e da idade de ouro) e de Reia, a grande mãe, geradora de todos os seres. Héstia representa nosso centro pessoal, o centro do lar e o centro da Terra, nossa Casa comum. É virgem, não por desprezar a companhia do homem, mas para poder, com mais liberdade, cuidar de todos os que se encontram no lar. Mesmo assim ela sempre vem acompanhada por Hermes, o deus da comunicação (donde vem hermenêutica) e das viagens. Não são marido e mulher. São autônomos mas sempre reciprocamente vinculados.

Eles representam duas facetas de cada pessoa humana que é portadora simultaneamente do animus (princípio masculino, Hermes) e da anima (princípio feminino, Héstia).

Héstia significa em grego a lareira com fogo aceso: aquele lugar ao redor do qual todos se agrupam para se aquecerem e conviverem. Portanto, é o coração da casa, o lugar da intimidade familiar, longe do tumulto da rua. Héstia protege, dá segurança e aconchego. Além disso, a ela cabe a ordem da casa e detém a chave da despensa para que sempre esteja bem fornida para familiares e hóspedes.

Nas cidades gregas e romanas mantinha-se sempre um fogo acesso, para expressar a presença protetora de Héstia (a Vesta dos romanos). Se o fogo se apagasse, era presságio de alguma desgraça. Também não se começava a refeição sem fazer um brinde à Héstia: “para Héstia” ou “para Vesta”.

Héstia, concretamente, significava também aquele canto para onde alguém se recolhe para estar só, ler seu jornal ou um livro e fazer a sua meditação. Cada um tem o seu “lugarzinho” ou sua cadeira preferida. Para saber onde se encontra a nossa Héstia devemos nos perguntar quando estamos fora de casa: ”qual é a imagem que melhor lembra o nosso canto, onde Héstia se oculta? Aí está o centro existencial da casa. Sem a Héstia a casa se transforma num dormitório ou numa espécie de pensão gratuita, sem vida. Com Hestia há afeição, bem-estar e o sentimento de estar “finalmente em casa”. Ela era tida como uma a aranha, por tecer teias que unem a todos, repassando as informações.

Héstia era por todos venerada e no Olimpo a primeira a ser reverenciada. Júpitér sempre defendeu sua virgindade contra o assédio sexual de alguns deuses mais assanhados.

A nossa cultura patriarcal e a masculinização das relações sociais tornaram Héstia grandemente enfraquecida. As mulheres fizeram bem em sair de casa, desenvolver sua dimensão de animus (capacidade de organizar e dirigir). Mas tiveram que sacrificar, em parte, a sua dimensão de Héstia. Nelas se mostrou a dimensão de Hermes que se comunica e se articula. Levaram para o mundo do trabalho as virtudes principais do feminino: o espírito de cooperação e o cuidado que tornaram as relações menos rígidas. Mas chega o momento de voltar para casa e de resgatar a Héstia.

Ai da casa desleixada e desordenada! Aí emerge a vontade de que Héstia se faça presente para garantir a atmosfera boa, íntima e familiar. Esta não é apenas tarefa da mulher mas também do homem. Por isso em todo homem e em toda a mulher deve se equilibrar o momento de Hermes, estar fora de casa para trabalhar com o momento de Héstia, de voltar ao centro e ter o seu refúgio e aconchego.

Hoje, por mais feministas que sejam as mulheres, elas estão resgatando mais e mais esta fina dosagem vital.

Héstia não significava somente a lareira acesa do lar ou da cidade. Também designava o centro da Terra onde está o fogo primordial. Hoje não é mais crença mas dado científico. No centro há ferro incandescente. Logicamente, quando se estabeleceu o heliocentrismo e se invalidou o geocentrismo, houve uma abalo emocional para o pensamento de Héstia, a Casa Comum. Mas lentamente ele foi reconquistado. Se a Terra não é mais o centro físico do universo, ela continua sendo o centro psicológico e emocional. Aqui vivemos, nos alegramos, sofremos e morremos. Mesmo indo aos espaços exteriores, os astronautas sempre revelavam saudades da Mãe Terra, onde tudo o que é significativo e sagrado está lá.

Hoje temos que resgatar a Héstia, protetora da Casa Comum, manter seu fogo vivo e conferir-lhe sustentabilidade. Não estamos rendendo-lhe as honras que merece, por isso ela nos envia seus lamentos com o aquecimento global e as calamidades naturais. Não devemos rebaixar Héstia como mero repositório de recursos mas como a Casa Comum que deve ser bem cuidada para que continue a ser nosso Lar aconchegante e benfazejo.

Autor: Leonardo Boff

Publicado pelo Brasil 247.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

O Banquete dos Espíritos

Os ENAWENE NAWE possuem uma população de 545 habitantes que vivem em uma única aldeia, localizada no rio Iquê, tributário do Juruena, na porção sul da terra indígena. A atual aldeia -Halataikiwa - é composta por dezesseis edificações, sendo quinze residências comunais (hakolo) e uma Casa das Flautas (Yaõkwa ehakolone), onde são armazenados os instrumentos e algumas indumentárias rituais. As casas são grandes edificações que abrigam inúmeros grupos familiares.

As residências são ocupadas por diversos grupos familiares que, ligados por relações de parentesco, se associam com outros grupos familiares formando grupos domésticos dentro dos quais se organiza a produção de alimentos. O conjunto de grupos domésticos de uma casa forma o grupo residencial.

Já a Casa do Yaõkwa representa a presença constante dos espíritos no espaço aldeão. Em formato cônico, associado a um morro (numa referência a morada dos Yakaliti, e também da pedra de onde os Enawene Nawe saíram, segundo o mito de origem), essa edificação possui uma coluna central embaixo da qual, o Yakaliti, Kote, guarda os cantos. Quando um visitante chega à aldeia, em geral ele é acomodado em uma das residências. Mas essa situação não ocorre com todos. Relatos apontam a acomodação de visitantes na Casa das Flautas, o que demarcaria uma situação de hostilidade, como aponta Jakubazko: “Enquanto os visitantes bem vindos ou moradores forasteiros são incorporados pela dinâmica social Enawene Nawe - "adotados" por núcleos familiares, instalados no interior das residências, recebendo insígnias de inserção no universo social Enawene Nawe, enfim: domesticados, submetidos à sua ordem social, neutralizando a alteridade; os Cinta Larga, por exemplo, quando estiveram em visita (1981), ficaram alojados no interior da Casa das Flautas a casa dos Yaokwa (clãs), reduto dos entes sobrenaturais”.

O centro da aldeia é caracterizado como um local de sociabilidade masculina (com encontros diários no início da manhã e fim de tarde quando se conversa sobre diversos assuntos de interesse do grupo) e também palco das performances rituais.

O seu modelo de produção é regulado por padrões próprios. O calendário ritual organiza os plantios das espécies agrícolas centrais (mandioca e milho) e secundárias (feijão, batatas, carás, etc); além das expedições de pesca (nas modalidades de barragem, timbó, anzol, arpão) e coleta (mel, castanha do brasil, jenipapo, etc). Sua dinâmica de ocupação espacial lhes permite percorrer periodicamente grande parte do território (tanto o demarcado quanto o não-demarcado) a fim de cumprir o calendário de responsabilidades clânicas envolvido no jogo de reciprocidade com os Yakaliti e Enoli.

A vida ritual dos Enawene Nawe é tão rica e intensa que podemos afirmar que ela move o cotidiano deste povo; durante todo o ano enawene nawe há sempre alguma atividade ritual/sazonal acontecendo: ou se está em performances músico-coreográficas na aldeia, ou se está em expedição a partes alhures de seu território – sendo que mesmo em muitos períodos de expedição, os que ficam na aldeia também realizam performances diariamente.

O ano nativo é dividido em quatro períodos rituais articulados – YaõkwaDeroheSalomaKateoko - que regulam as relações sociais, econômicas e com o meio ambiente. Estes ciclos constituem a única maneira de manter a harmonia com os ENOLI e YAKALITI, estes últimos, donos dos recursos naturais e causadores de doenças e mortes quando não são saciados pelas ofertas dos Enawene Nawe. Já, com os Enoli, habitantes do eno (céu), eles guardam relações mais amistosas, ligadas a relação de ancestralidade. Dizem os Enawene Nawe que eles são como seguranças que os acompanham em situações de risco.

A realização dos rituais Yaõkwa e Derohe, associados aos Yakaliti, regula as atividades de plantio e pesca. Os rituais Saloma e Kateoko, associados aos Enoli, regulam as atividades de coleta de mel, pequenas pescarias familiares e pescarias coletivas com timbó em algumas lagoas marginais dos rios. Estas atividades são entendidas por Rodgers como elementos fundamentais para a vida cerimonial deste grupo: “as expedições de pesca e o cultivo do milho e da mandioca compõem as atividades imprescindíveis para a mobilidade e funcionamento da máquina ritual enawene nawe”.

Como aponta Silva (1998) “o calendário cerimonial estabelece as condições sociais (e cósmicas) da produção”. Assim, o seu modelo de produção está salvaguardado pelas práticas rituais que o regula. Conforme aponta Santos: “O extenso e complexo calendário ritual enawene é organizado em função de suas cerimônias devotadas a estas e outras subjetividades, em que o peixe aparece como item catalisador. Balizador das pescas de caráter coletivo, seu calendário é formalizado nos rituais”.

Mesmo diante de um novo contexto pautado pela vida em um território demarcado, os Enawene Nawe demonstram preferir manter o seu padrão de ocupação seguindo a lógica da ocupação imemorial, que abrange uma área muito maior do que os 742.088 hectares homologados, uma situação que, ás vezes, culmina em conflitos por uso de recursos com outros agentes regionais, tais como proprietários rurais e outras etnias Isso porque eles não adotam uma visão compartimentalizada ou meramente utilitária do território. Este está entrelaçado com sua concepção de vida (ritual, mitos, religiosidade, distribuição geográfica dos recursos, etc). Sua cultura é intrinsecamente associada às particularidades da hidrografia e do ciclo ecológico. Por isso, qualquer alteração no regime das águas ou na ictiofauna pode trazer conseqüências incomensuráveis ao desenvolvimento ritual, fato reconhecido, pelo Complemento do Componente Indígena: “A médio e longo prazo, pelo efeito cumulativo do conjunto das PCHs, esses impactos tendem a aumentar, causando alterações na qualidade da água – também pelo sucessivo turbinamento -, na dinâmica fluvial do rio, influenciando diretamente os organismos dos ecossistemas aquáticos, principalmente os peixes que são muito sensíveis Às modificações do meio em que vivem, constituindo o grupo animal mais evoluído que depende exclusivamente da água”.

O oferecimento de bebidas e peixes, conforme afirma Santos, é considerado a única forma de apaziguar a ira dos Yakaliti: “O peixe,vale dizer, é o artigo mais nobre da culinária enawene, figurando como símbolo de status, ainda que fugaz (até seu consumo), entre as famílias. Sua importância se dá, também, na relação do grupo com os seres pantagruélicos, os iakayreti, detentores do poder de vida e morte, sensivelmente aplacados com a oferta e consumo de peixe”.

Foi justamente por compreender a importância desse processo de harmonização dos espíritos que a antropóloga Virginia Valadão não teve dúvidas ao escolher o nome de – O Banquete dos Espírito – para o documentário realizado por ela, sobre o Yaõkwa, o mais longo ritual dos Enawene Nawe, com aproximadamente sete meses de duração.

Nas palavras de Santos: “Sempre preocupados em produzir e oferecer comida aos iakayreti, os Enawene-Nawe organizam, exclusivamente para eles, fartos banquetes, onde são vertidas bebidas ao chão, que, segundo os Enawene-Nawe, seguem diretamente para suas imensas panelas de pedra já bem posicionadas sob a terra”. A maior parte dos recursos (naturais e financeiros) acessados pelo grupo são envolvidos pela ótica da interdependência entre homens e espíritos.

O peixe tem função central dentro deste banquete. Ele é a moeda de troca, oferta apaziguadora da fúria e da belicosidade dos Yakaliti. É justamente para obtenção do pescado – para subsistência, ou fins cerimoniais - que eles realizam grandes expedições de pesca. De acordo com Santos:“Considerado como o mais nobre e desejado alimento, o peixe é usado como símbolo maior do pagamento do – preço da noiva e da conquista sexual, como retribuição aos serviços de cura xamânica e aos fitoterápicos administrados aos convalescentes e adolescentes – iniciados. Ele é, sobretudo, o mais importante tributo destinado aos deuses e espíritos: aos enore-nawe pela proteção, e aos iakayreti para que não façam mal nem causem a morte das pessoas”

O Yaõkwa é o ritual mais conhecido, e também o mais extenso. A cada dois anos os nove clãs se revezam no papel de anfitriões para realização do cerimonial. Esse rodízio visa apaziguar a relação com os espíritos Yakaliti, como aponta Rodgers: “A música dedicada ao ritual yãkwa, o qual ocupa sete meses anuais, é dos espíritos subterrâneos, dos yakayriti: dos yaka nawe – em linguagem ritual = povo flechador –, e eles não sobem à superfície para brincar em serviço... Há mesmo um excesso dessa presença, essa presença é acachapantemente afetante: o que se pode fazer é entrar vertiginosamente em sua dança para ritmicamente conviver com a inexorabilidade faminta (literalmente!) de suas volições, de seu querer interminável”.

Cada clã está relacionado a um conjunto de espíritos e flautas aos quais os Enawene Nawe devem ofertar peixe, sal e bebidas. O descumprimento destas obrigações implica na represália violenta da legião de Yakaliti, como aponta Santos: “Os iakayreti, espíritos habitantes da paisagem e ‘senhores dos peixe’ são seres que vivem na sua dependência, e que, se não forem fartamente alimentados, ceifarão suas vidas”. Sendo assim, os Enawene Nawe se revezam bienalmente num ciclo de dez anos, que ao seu final deve ter contemplado todo o conjunto de espíritos. O revezamento para realização do Yaõkwa está diretamente relacionado com a organização clânica que abrange homens, espíritos, instrumentos musicais e território¸ como aponta Rodgers: “Entre os Enawene Nawe, música e território, estética e ecologia, estão estreitamente associados através de uma relação ritualizada com a ancestralidade. Para esse povo indígena, a topologia territorial – amplamente reconhecida e detalhadamente nomeada pela população em geral – está supreendentemente associada de forma direta a uma topologia musical da casa de flautas na aldeia (hayti) – algo bastante incomum nesse contexto sociocultural. O elo vital e motor dessa relação estreita é o ritual: toda a vida enawene nawe depende de uma vigília ritual ininterrupta a qual refaz continuamente uma espécie de ciência dos caminhos (awiti), os quais, entre outras coisas, ligam o território à casa de flautas através da noção de pertencimento clânico. Os caminhos atuam em várias dimensões cognitivas como vetores norteadores de toda reinvenção vital e cotidiana de sua sociocosmologia; a ciência de como percorrer, extrair, produzir, mas também desfazer e cuidar desses caminhos e seus ecossistemas (...) Essa ciência dos caminhos compõe uma estética no sentido mais amplo do termo: trata-se de uma ecologia estética, uma ecologia músico-ritual”.

A cada fase da vida o indivíduo é dotado de obrigações e responsabilidades que são imprescindíveis na ocupação de papéis sociais e da transmissão interna dos conhecimentos. O prestígio do indivíduo pode estar também associado ao status sazonal proporcionado à determinados indivíduos de acordo com a posição ocupada dentro de cada ciclo ritual. A cada ciclo, determinados indivíduos carregam certas responsabilidades que incluem, em geral, o direcionamento dos cerimoniais. De acordo com Mendes: “Dizem os Enawene-Nawe que o honerekayti é alguém que se encarrega de transmitir a ‘palavra bonita’ (aware xinakahã) aos pescadores. Este seu papel de conselheiro é exercido já na aldeia, antes mesmo da saída para as pescarias. O honerekayti é, acima de tudo, um mestre de cerimônias, designado especialmente para coordenar os ritos das pescas nos rituais de yãkwa e lerohi. (...) Em todas as atividades que mobilizam os rituais de salumã/kateokõ, aparecem dois tipos de personagens, ikinio e wakaniare(lo). Ikinio são, de um lado, os homens pertencentes a dois ou mais grupos clânicos, e de outro, as esposas dos harekare, mulheres de diferentes clãs; wakaniare(lo) são todos os demais da aldeia, mulheres e homens a partir de cerca de dez anos de idade”.

Ainda, as especialidades figuram como elemento de extrema importância dentro da organização social dos Enawene Nawe. Existem vários tipos de especialistas:
  • BARATALI/BARATALO (herbalistas) – conhece, manipula e prescreve plantas medicinais.

  • SOTALITI/SOTALOTI (xamãs) – cura doenças, retira substâncias deletérias do corpo, acessa o patamar superior, contacta e invoca as divindades celestes, recupera e repõe a alma (hesekonase) retida pelas árvores e a planta de mandioca, executa tapagem contra a fuga da alma usando yakoti.

  • HOWENATALI/HOWENATALO (benzedores) – sopra objetos, lugares e pessoas quando estas estão submetidas às regras de kadena; sopra as manivas de mandioca para o plantio, protege contra o ataque dos atahare-wayate e (do espírito) da planta de mandioca (atolo), lança males, doenças e morte às pessoas.

  • EHOLALALI/EHOLALALO (envenenadores ou feiticeiros) – fabrica e manipula substâncias venenosas, detém poderes e forças do mal, promove doeças e morte das pessoas.

  • SOTAKATALI (mestre de cantos) – detém os textos e partituras musicais, repassa a memória coletiva ao grupo, canta diante do doente grave para reter sua alma.

O sotakatali é a especialidade com maior prestígio e também uma das mais difíceis de exercer, como descreve Rodgers: “Os sotakatare são como guias do povo enawene nawe por entre esses caminhos, e é a sua sabedoria, a sua ciência, que imprime singularidade ao modo de vida enawene nawe”. Além da extrema dedicação despendida para aprendizado e memorização dos cantos, o sotakatali tem que estar atendo a uma série de regras comportamentais que incluem a parcimônia, a concentração, a evitação do sono, etc. Os Enawene Nawe são o povo da música e, por isso, não é mero acaso que os sotakatali sejam as figuras de destaque dentro desse cenário, conforme indica Jakubazko: “Os Sotakatare, por sua vez, consistem numa categoria de agentes sociais que, assim como os outros, dominam especialidades de vital importância para a ordem social Enawene, no entanto são considerados como os grandes pensadores, filósofos dessa sociedade, sendo imensa a admiração, prestígio e autoridade a eles conferidos”.

O seu ofício tem uma função primordial na garantia da harmonia entre homens e espíritos e, consequentemente, na garantia da existência de seu povo. Rodgers apresenta uma clara definição dessa relação (in)tensa: “Um povo, cujas eternas idas e vindas que são, na verdade, o único caminho possível para o conhecimento, o aprendizado profundo – e portanto para se preservarem da morte através da sábia administração do ritual –, que pressupõem o adensamento das distâncias relativas entre um ponto do território e sua aldeia, entre uma casa de um determinado conjunto de yakayriti e a casa de flautas, entre um motivo musical (ritmo, melodia e texto) e outro, entre um determinado conceito e outro, o único meio, portanto, para se jogar o jogo político das temporalidades sobrepostas”.

A representação simbólica do líder para os Enawene Nawe está condensada na figura de WADALI, antepassado que guiou o grupo na saída da pedra. A noção de chefia, em sua associação com o ancestral mítico, abrange fala calma, capacidade de comunicação, de contornar situações conflituosas e manter as boas relações e convivência na aldeia. Em contraposição ao Wadali, seu irmãoWAYALIOKO é o personagem humanizador da mitologia. Wayalioko “dificulta” a vida dos Enawene Nawe ao descumprir regras sociais, mas, em contraposição, por meio de suas peripécias, ensina a necessidade da força para vencer a batalha da vida.

Segundo sua visão, “antigamente os Enawene moravam dentro da pedra. Um dia um raio atingiu a pedra e fez um buraquinho. Um passarinho acordou e saiu. Lá fora ele viu as flores, comeu peixe-agulha, comeu lobó, comeu traíra, olhou os rios, as árvores, e voltou para dentro da pedra. Na volta, o passarinho passou bem apertado pelo buraco dentro da pedra ficou pensativo e calado. Vendo o passarinho assim, o chefe Wadare falou:
- O que houve titio, você está doente?
- Não, sobrinho, eu sai por aquele buraco eu vi lá fora, é bonito! Eu peguei lobó... Eu vi lá fora, é bonito! Wadare, meu sobrinho, eu vi tudo lá fora, é bonito! Venham comigo, vamos sair lá fora, é bonito!
Wadare chamou o picapau de cabeça vermelha e disse:
- Aumente este buraco para a gente sair
O picapau foi batendo, toc, toc... e abriu um buraco do tamanho dessa porta as pessoas foram saindo da pedra e cada povo tomou um rumo”.

Esta pedra está localizada nas cabeceiras do rio Papagaio (afluente do Juruena), num local que é reivindicado pelos Paresi como área indígena. Após a saída da pedra, guiados pelo ancestral mítico, Wadali, os Enawene Nawe passam por um período de deslocamento ao encontro do local que seria considerado como seu território por excelência, que se estende até a foz do Tonowina (rio Juina-Mirim).

Existem também laços de origem cosmológica com o alto rio Juruena. Foi no salto do Juruena que o tabu das flautas às mulheres foi rompido quando Doliro, filha do Yakaliti Kañawali, sobreviveu à condenação lhe imputada pelo fato de ela ter visto as flautas sagradas do Yaõkwa, após ter se banhado com uma erva – mekali – com efeitos purificadores. O caldo desta erva caiu nas águas do Juruena formando a espuma que, até os dias de hoje, corre abaixo do salto. Esse mito está presente em cantos do Yaõkwa e em versos de cura dos howenerekati: “Hiyeyalo Yaõkwa, hiyeyalo Yaõkwa (Você viu o Yaõkwa). Maiha yako nowayowa, maiha yako nowayowa (Não, eu não o vi)”.

No ritual Saloma, a referência ao salto do Juruena, considerado território e local da aldeia dos peixes. Já no Yaõkwa, a referência à região de implantação do Complexo Juruena aparece na seguinte canção que fala sobre a aldeia dos peixes, onde eles realizavam seus rituais. Nessa história, os peixes convidam uma mulher muito bonita, chamada Ayadero, para dançar no pátio de sua aldeia:“Kohase nawe awerohanaita (Os peixes estão dançando). Halakolo Ayadero ekakwa. (De braços dados com Ayadero)”.

Segundo Santos & Santos, antigamente, para os Enawene Nawe, os peixes eram dotados de características antropocêntricas que foram perdidas, ao longo do tempo, em decorrência do descumprimento de determinadas regras sociais: “Segundo os Enawene-Nawe, no começo dos tempos os peixes dominavam a língua dos humanos, a arte do canto, da composição, da instrumentação e da dança; tinham a habilidade do benzedor, hoenaytare, isto é, de soprar e proferir textos mágicos; obedeciam a certas regras de parentesco e de hierarquia, viviam em aldeias e praticavam rituais, tais como os humanos. A condição social e antropocêntrica primeira dos peixes definia, de antemão, a natureza e o grau de interação entre eles e as demais espécies e criaturas do universo. Tais relações se apoiavam em estatutos de eqüidade entre sujeitos com semelhantes posições sociais e compromissos jurídicos. Fatos marcantes, porém, envolvendo assassinato e antropofagia, desestabilizaram a condição eqüiestatutária entre peixes e humanos, fazendo com que os primeiros fossem arremessados para o limbo da sociabilidade, sem que isto tenha acarretado a perda ou a laminação integral de sua condição antropocêntrica”.

Dessa maneira, os cantos prenunciam o caráter transitório da existência, posto que este pode ser rompido, a qualquer momento, diante do descumprimento das obrigações sociais, tal como ocorreu com os peixes ao perderem o seu ancestral, de acordo com o mito relatado por Santos & Santos:“Depois de ter devorado alguns indivíduos da comunidade dos gaviões, o peixe Dokose, líder e avô de todos os peixes, resolveu também vitimar um garoto enawene. Em resposta, os gaviões e os próprios Enawene decidiram arquitetar sua morte, conseguindo, com a força e astúcia da harpia, arremessá-lo para fora d’água. Mas, com a morte de Dokose, os peixes perderam definitivamente sua memória histórica, esqueceram para sempre o que haviam aprendido: a música, a arte da cura, o papel sócio-político. Outra perda considerável foi sua capacidade de comunicação com os humanas e, com ela, o comprometimento das qualidades antropocêntricas. Com isso, os peixes foram relegados a uam condição quase negativa de sociabilidade com os humanos”.

Observa-se que as relações mitológicas e produtivas entre os Enawene Nawe e o rio Juruena, ultrapassam os limites da área demarcado. Cabe aqui um comentário a respeito da noção que os Enawene Nawe possuem sobre território. Para eles, a paisagem não é mera invenção da natureza e de sucessivas eras geológicas do planeta, como afirma Rodgers: “Trata-se, portanto, de uma ecologia ancorada em fortes referências territoriais e musicais, inextricavelmente imbricada em todos os aspectos da efervescente vida social enawene nawe”.

A paisagem, enquanto morada dos espíritos, foi também construídas por estes. A geografia corresponde a uma noção de ocupação imemorial dos Yakaliti – retomada através dos cantos e sopros de cura - que transitam num intenso vai-e-vem ao longo do território, como aponta Santos & Santos: “Os iakayreti deslocam-se pelas águas dos rios e pelas profundezas da terra. Sua moradia são os acidentes e outros locais da paisagem natural: ilhas, morros, cachoeiras, lagoas, brejos e corredeiras e barrancas de rio”. Sendo estes ocupantes incontestáveis da região, são eles também os donos dos recursos naturais e cabe, aos Enawene Nawe, retribuir com fartura a concessão destes para a utilização dos recursos.
Por tudo isso, podemos afirmar que, onde um de nós vê um morro, um Enawene Nawe pode ver um majestoso conjunto habitacional da legião de Yakaliti; onde um de nós vê uma bela cachoeira – ou bom ponto para se instalar uma hidrelétrica -, um Enawene Nawe vê o pátio da aldeia dos peixes onde eles dançam e celebram seus próprios rituais. Estas relações estabelecidas entre os Enawene Nawe e o alto rio Juruena são desconsideradas pelos estudos antropológicos do Complexo Juruena.

Baseado no texto de Juliana de Almeida

Original: Chakaruna