Hoje celebra-se o Dia Internacional do Orgasmo. Uma boa desculpa para o praticar, é verdade. Mas também para recordar como é que o momento de maior prazer sexual foi retratado, analisado, enaltecido, escondido, temido ou venerado ao longo da história da humanidade. Das pinturas rupestres à internet.
Bendito orgasmo. A nossa vida é determinada por ele: o orgasmo que nos colocou aqui, pobres bípedes; o orgasmo adolescente que marcou a nossa vida madura; o orgasmo adulto que consumou a nossa paixão; o orgasmo que manteve o nosso namoro; o orgasmo que moldou o essencial da graça, e uma fatia da personalidade, dos nossos filhos; o orgasmo que nos terminou com o casamento (este texto é como o prazer: existe um pano de fundo moral, mas não há moralismos). Aquele orgasmo mais pujante que nos interrompeu de vez o coração (se os franceses chamam la petit mort à melancolia após o orgasmo, nós poderíamos chamar bela morte a um clímax fatal).
Pois é: o orgasmo. Andamos todos aqui por causa dele. Com a exceção de um pequeno acontecimento – morrer – e de um grande acontecimento – nascer –, o orgasmo é o momento mais importante da existência humana. Resultado: todas as atividades criativas, ancestrais ou modernas, deveriam refletir essa importância. Mas isso não acontece. Porquê? Antes de mais, porque o poder instituído – todo o poder, do militar ao eclesiástico – tem um medo louco dos orgasmos.
À partida, esse medo não faz grande sentido. Enquanto estamos distraídos com os nossos orgasmos, está cientificamente provado que não pensamos em mais nada (durante o sexo e, sobretudo, em pleno clímax, a zona do cérebro responsável pelo planeamento e pela memória entra de férias). Ora, essa desmiolada fruição deveria fazer as delícias do poder – como a história nos mostra, a ausência de pensamento individual é a primeira condição para o exercício do poder absoluto. Em 1984, de George Orwell, a mais célebre das distopias totalitárias, escrita na desilusão do início da Guerra Fria, todos os cidadãos estão submetidos ao controlo de um superestado, Oceania, cujo Ministério do Amor se dedica à tortura e à lavagem cerebral. A certa altura, o protagonista, Winston Smith, apaixona-se por Julia, fervorosa adepta da Liga Anti-Sexo que, na realidade, odeia tanto Oceania e a temível Polícia do Pensamento como Winston. A desgraça de Winston e Julia surge quando não resistem a fazer amor – não resistem ao orgasmo, e quem os pode censurar? – num quarto alugado por cima de uma loja de antiguidades, ignorando que o quarto pertence a um membro da Polícia do Pensamento. Porém, mesmo após quebrarem nos interrogatórios do Ministério do Amor, Julia e Winston sabem – e essa é uma das mensagens de Orwell – que nunca foram tão livres, e tão autónomos da multidão, como quando se entregaram um ao outro. O amor – e o orgasmo que consagra esse amor – é uma expressão maior da individualidade, a máxima fuga ao poder coletivo. Não admira que os estados – religiosos e laicos – tenham passado boa parte do seu tempo a tentar controlar ou a ocultar os nossos orgasmos.
Nem sempre foi assim. Paradoxalmente, ao contrário do que o livre arbítrio amoroso, a multitude de expressões sexuais, o fácil acesso à pornografia, a liberalização de costumes e o alegre deboche da vida contemporânea podem deixar entender, estamos hoje muito mais distantes do culto do orgasmo do que no período fundacional da humanidade. Mas existe um elo comum aos dez mil anos de história humana, a ocidente e a oriente: todas as grandes iniciativas éticas, religiosas, culturais e artísticas da civilização pressupõem uma tentativa de reprimir ou de exaltar o orgasmo. Se o sexo sempre esteve em todo o lado, a vontade de o ocultar não esteve menos presente.
No início era um regabofe. De Lascaux, no Sudoeste francês, às grutas indianas de Madhya Pradesh, não havendo tantas pinturas rupestres de entusiasmadas cópulas como as há de caça à gazela ou ao bisonte – a fome de sobrevivência era um bocadinho superior à fome de sexo –, existem em número de sobra para atestar a extasiada sapiência do Homo sapiens. As numerosas esculturas de Vénus, essa espécie de indústria pornográfica avant la lettre, descobertas nas montanhas e cavernas do Mesozoico e do Paleolítico, reproduzem mulheres de ancas enormes e seios anormalmente grandes, símbolos de fertilidade tão importantes como os falos gigantescos, comuns a culturas como a etrusca, a egípcia ou a romana, ubíquos do Japão ancestral à primitiva Escandinávia.
Logo que a pintura se refinou, surgiram os relatos suculentos, glorificando o êxtase. O Papiro Erótico de Turim, originário da dinastia egípcia de Ramsés, entre os séculos xiii e xii a.C., é um bom exemplo de transgressão, expondo um respeitabilíssimo bacanal. Os gregos, entre a criação do teatro, da prosa, da filosofia e da República, pelavam-se por um orgasmo de qualidade, sobretudo entre pessoas do mesmo sexo – se a pederastia prevalecesse, tanto melhor, e até a própria palavra vem do grego, orgasmos (literalmente, «o inchaço do órgão»). O homoerotismo saltitava a par da menoridade da mulher e dos escravos, mas sempre sobrava espaço para o lesbianismo, como atesta o sugestivo Hino a Afrodite, da poetisa Safo. No entanto, os limites eram claros: o incesto, talvez a mais importante senha de organização social da história (o facto de as dinastias centenárias e milenares, pelo terror de perderem o controlo do seu destino, serem ougadas por consanguinidade, é uma exceção que apenas confirma a regra), é o tema da peça matriz do Ocidente, Édipo Rei de Sófocles. Nela, o protagonista, sem o saber, desposa a mãe, Jocasta, e mata o pai, Laio. Ao descobrir a caldeirada em que, inadvertidamente, se meteu, Édipo fura os olhos, enquanto Jocasta se mata. Uma verdadeira tragédia grega.
Édipo Rei é importante porque traça as fronteiras do orgasmo: alegre cópula com vizinhos, vizinhas, menores, maiores, generais e prosadores, meretrizes do templo ou prostitutos de rua? À vontade do freguês. Mas nunca desejem um filho, ou a mamã. O orgasmo perde, formalmente, o seu direito à absoluta liberdade.
Porém, não perderá o lugar ao centro da cultura ocidental. A Odisseia, de Homero, não é mais do que a história do adiamento de um orgasmo: Penélope espera, espera, espera por Ulisses, mas sairá recompensada com a noite de uma vida. E a mais importante guerra da Antiguidade, a batalha de Troia, é um hino ao entusiasmo da gulodice: Páris, filho do rei grego Príamo, conhece Helena, a mulher de Menelau, rei de Esparta, num banquete. Vê-se grego para a conquistar, mas, sedento de desejo, acabará por raptá-la, levando a um conflito de proporções lendárias.
O apetite do orgasmo pode arrasar com civilizações. Não foi suficiente para liquidar o Império Romano – o laxismo dos governantes, o cansaço das instituições e a corrupção generalizada ajudaram à festa –, mas a vilanagem sexual, enquanto durou, foi inesquecível. As cidades de Pompeia e Herculano estão saturadas de vasos e de murais com rapaziada crescida a brincar com os apetites dos miúdos, e há ménages a trois nas paredes de veneráveis saunas e prostíbulos. Machões empedernidos apenas na aparência (o «amor grego» entre homens adquiriu estatuto de prestígio nos romanos, desde que praticado com profissionais da matéria), os cidadãos de Roma permitiram que as mulheres respirassem um pouco mais na sua emancipação. Ovídio, esse sensualista, escreveu a sua Ars Amatoria, êxito na tabela de vendas do século i, incentivando as senhoras à masturbação («sozinhas, sem a sua ajuda, as palavras virão em tropel e, no leito, a mão esquerda não ficará parada; os dedos encontrarão o que fazer do lado onde misteriosamente o amor mergulha os seus traços»). Aconselhou-as também a fingirem o orgasmo para conquistar os amantes, um conselho perfeitamente atual, e, aos homens, sugeriu-lhes que exagerassem nos piropos às mulheres (idem aspas).
Mas eis que surge, quando todos andavam bastante entretidos, o inimigo figadal do orgasmo: o cristianismo. O Antigo Testamento já simulara fugir do sexo, em invulgar hipocrisia, como o Diabo da cruz: estamos a falar de um livro que venera Abraão, filho de Noé, que foi pai do oitavo filho, Isaac, aos 100 anos, quatro milénios antes dos ginásios e do Viagra; que coloca o rei David a encontrar a plenitude sexual ao lado do companheiro Jonathan; e onde, num excerto do Cântico de Salomão, se exclama «O meu amor introduziu a sua mão no buraco, e o meu interior gemeu por ele» (capítulo V, versículo IV).
Quanto ao judaísmo, encarregou-se de catapultar os sentimentos de culpa associados ao amor carnal para níveis estratosféricos. Com o estrondoso sucesso do cristianismo, surgirá uma fundamental mudança de mentalidades, rumo à compaixão, à solidariedade, ao amor pelo próximo. Mas deflagra também o maior ataque ao prazer do corpo que a história jamais conhecera. Irrompe a Idade Média, e o orgasmo torna-se a besta escondida na longa noite dos tempos.
No século v, Santo Agostinho irá encarregar-se, quase sozinho, de elaborar a infame teoria do pecado original, substituindo o hedonismo das trincadinhas de amor pelo inferno a que estamos condenados desde a trincadela na maçã de Adão e Eva. Por portas travessas, Umberto Eco, graças ao popularíssimo romance O Nome da Rosa, explicou bem o que se passaria em seguida. No livro, William de Baskerville, monge franciscano, descobre que, por trás de uma série de homicídios numa abadia italiana do século xiv, se esconde a vontade férrea de ocultar um conjunto de obras apócrifas, atribuídas a Aristóteles, onde o riso é exaltado. Não há melhor metáfora para o orgasmo: se os conventos e as abadias da Europa medieval se converteram em responsáveis maiores pela preservação das grandes obras literárias da Antiguidade, essas mesmas obras foram cuidadosamente resguardadas do povo, entidade selvagem e primitiva, dada à insensatez da carne. Porquê, então, o riso em O Nome da Rosa? Porque o riso é alegria, insurreição, individualismo. Liberdade. O mesmo acontece com o orgasmo. O orgasmo é poder. Poder de criar, de decidir, de escolher, de negar. De viver fora da estrita ordem estabelecida. E nada aterroriza mais do que o livre-arbítrio.
A literatura e a pintura medievais ocultam o orgasmo como quem coloca um pano sombrio para encobrir o indescritível, o que não se pode nomear. A simples nudez demorará séculos a reaparecer. Fá-lo timidamente com os primeiros «Adão e Eva», ou através do corpo despojado de Cristo.
Mesmo na explosão do Renascimento, o orgasmo espreita ao fundo. A mais bela nudez feminina surge ainda sacralizada, agora através dos deuses gregos e romanos, como em O Nascimento de Vénus, de Botticelli. Mas, ao menos, há curvas, ventre. Sorrisos. E a concha gigante da tela, seguindo as sugestões clássicas, é a inegável representação de uma vagina. Era preciso começar por algum lado.
Apenas 54 anos depois, em 1538, Ticiano pinta a sua Vénus de Urbino: o paganismo converte-se em realidade, o divino em carne; as coxas são coxas; os seios destapam-se. Botticelli ainda pusera o braço a tapar as maminhas da sua deusa e os dedos da mão esquerda (a mão errada, diabólica) da Vénus tocam a púbis, insinuando-se junto ao clítoris. La Fomarina, de Rafael, oferece-se ao coito, Caravaggio inaugura a estética sado-maso – há mais cordas a apertar corpos nus na pintura do génio milanês do que na fotografia pornográfica de Nobuyoshi Araki, 500 anos depois – e reinaugura um ardente e desesperado homoerotismo. Michelangelo sublima os prazeres do orgasmo homossexual em Centauromaquia, aprimora os músculos e o pénis – pequeno, como manda a tradição helénica – do seu David, cinzelando um oferecido e efeminado Escravo Moribundo. O orgasmo, em todas as suas variações sexuais, está de volta.
Hoje, é surpreendente o pouco que se conhece sobre o orgasmo, sobretudo na versão feminina. A ejaculação das mulheres continua a ser um pequeno tabu. Há várias teorias quanto à localização do ponto G, presumível nirvana do êxtase nas mulheres. Não há avaliação científica definitiva quanto ao orgasmo vaginal, e a maioria dos investigadores tende a considerar que este é uma variação indireta do orgasmo clitoriano, resultado da pressão das paredes musculares superiores e anteriores da vagina que possuem ligações nervosas ao clítoris. Ignora-se, aliás, se existem, ou existiram, vantagens evolutivas no clítoris (desconfia-se que não, que será como os mamilos masculinos, sem função darwinista que se veja). E, convenhamos, quantos homens têm um conhecimento extenso e profundo da prodigiosa «pequena colina»? Sabe-se apenas que o orgasmo é a mais singular, extraordinária e definitiva sensação de euforia.
Continuamos, claro, aterrorizados com o seu poder diferenciador, a sua liberdade, a sua força no triunfo dos sentidos face à ordem pública. Os séculos xvi a xix bem nos tentam ajudar. Júpiter e Io, de Correggio, mostra uma ninfa bem nutrida a deleitar-se com um espesso nevoeiro cinzento, de mãos gigantescas agarrando-lhe o dorso e a cintura, como quem diz «possui-me». Pieter Paul Rubens, da escola flamenga, pintou os esplendores da carne, abundante, despojada, menos erótica do que sexual, pronta para a paródia hedonista, contrariando os horrores da guerra e os preconceitos do Estado.
Goya, outro génio, agora espanhol, pintou entre 1790 e 1800 La Maja Desnuda. É uma mulher bonita, disponível, confiante, a olhar para nós, provavelmente inspirada na duquesa de Alba ou em Pepita Tudó, princesa de Bassano e duquesa de Alcudia, amante de quem encomendou o quadro, Manuel Godoy, antigo primeiro-ministro de Carlos IV. Como se atrevera Goya a pintar uma mulher assim, altiva, pronta a receber prazer, pronta a concedê-lo, fora das referências clássicas, da caução helénica, do enquadramento religioso? Claro que a Inquisição proibiu a exposição da tela.
Cerca de seis décadas depois, Édouard Manet, um dos papás do impressionismo, foi ainda mais longe: Olympia, descendente direta da Vénus de Urbino e da Maya Desnuda, retrata agora uma prostituta parisiense, a olhar de novo para nós, ávidos pecadores, orquídea no cabelo – as conotações sexuais da orquídea são tão remotas como a história do orgasmo –, um gato preto a agitar-se na cama (é a felina animalidade do sexo) e um ramo de flores tombado sobre os lençóis, oferta comum após os serviços prestados ao cliente. Claro que a tela demorou dois anos até obter autorização para ser vista, e apenas o conseguiu sob grande escândalo. Nem mais um ano passou para que fosse dada a machadada final nas tentativas de encobrir as delícias do orgasmo: com L’Origine du Monde, Gustave Courbet, um impenitente realista, oferecia ao espetador, agente policial ou juiz escandalizado, uma vagina em plano frontal, sem rosto que lhe identificasse a posse, de exuberantes pelos púbicos. Claro que foi religiosamente ocultada, e apenas em 1995 se tornou parte da exposição permanente do Musée d’Orsay, em Paris. A ousadia de Courbet é tão atual que, em fevereiro de 2009, um grupo de agentes da PSP de Braga apreendeu as cópias de Pornocracia, da cineasta e escritora francesa Catherine Breillat, à venda numa feira local, porque o livro exibia na capa uma reprodução de L’Origine du Monde. A PSP bracarense alegou «iminência de confrontos físicos» para justificar o confisco das cópias do livro.
Sendo a história de uma cíclica teimosia, o medo do sexo – e o pânico do orgasmo – regressou em força por meados do século xix. O romantismo gótico, e os seus suores frios e paninhos quentes, atiçaram o temor. Em O Monte dos Vendavais, de Emily Bronte, Catherine e Heathcliff levam o tormento do amor além-tumba, com os fantasmas da necrofilia a tomarem parte na relação, como se o orgasmo fosse punido por mil castigos caso consumado na vida terrena. Já à entrada do século xx, o irlandês Bram Stoker escreve uma exemplar e aterradora parábola sobre os riscos do orgasmo: o conde Drácula, visitado por um agente imobiliário vitoriano, Jonathan Harker, toma conhecimento da noiva deste, a jovem percetora Wilhemina «Mina» Murray; apaixonando-se por Mina, o conde, imortal desde que começou a sugar o sangue de jovens virgens, acabará por morder – leia-se penetrar – a virgem Mina, não sem antes fazer gato-sapato da melhor amiga desta, Lucy Westenra. Drácula é um conto de advertência sobre os horrores do amor carnal – as doenças venéreas, como a sífilis, proliferavam à época, e podiam matar. Trata-se o sexo como uma doença infetocontagiosa. A cama como arena profana. E o orgasmo como antecâmara da morte.
Cem anos depois, o que mudou? É verdade que o orgasmo se tornou moeda corrente. Está à distância de um clique no rato, de um toque de telemóvel, de uma instrução no comando. E de um instante de consensual felicidade. Mas os governos de todo o mundo continuam a legislar sobre o que se passa debaixo dos nossos lençóis – ou em cima da nossa mesa de cozinha – mutilando o corpo e o prazer de crianças e adolescentes (a excisão genital feminina), condenando mulheres à morte por apedrejamento em caso de infidelidade, impedindo uniões de facto e casamentos entre casais do mesmo sexo, continuando a regular parte da sexualidade dos maiores de 16 anos, levando presidentes até ao limite do impeachment por ejacularem em vestidos baratos. Se o vestido de Monica Lewinsky fosse Gucci ou Dior, sempre daria mais classe à ocorrência (e também não terá ajudado que o dito governante mentisse sobre o assunto). E transformando Miley Cirus, uma miúda com excesso de dentição e défice de autoestima, numa sex symbol de quarenta quilos agarrada a uma bola de demolir prédios.
Fonte: Noticias Magazine