segunda-feira, 24 de março de 2014

O Mestre do Sabat

Livros de Bruxaria, sejam históricos, antropológicos, filosóficos, psicológicos, ou testemunhais, em algum momento terá de lidar com o complexo, complicado, intenso, profundo e às vezes traumático tema da identidade e do papel do "Diabo". A figura do Homem de Preto, o Bode Negro do Sabat, o "Diabo", o Deus Cornífero, o Deus das Bruxas, é um personagem crucial e perturbador no meio do Paganismo Moderno.
Nas religiões antigas, especialmente nas urbes, o Deus supremo é Júpiter, Zeus, ladeado por uma corte de Deuses, certamente um espelho da forma como nossos antepassados viam a sociedade e o mundo. Além dos limites das cidades, no campo e nas vilas, o domínio pertencia a divindades mais antigas, mais poderosas, mais sábias. Incontroláveis, portanto perigosas e temíveis, eram adoradas em meio às florestas, em poços, lagos, cavernas, montanhas e encruzilhadas.
Reinos e impérios surgiram, expandiram e conquistaram vários povos, levando ao sincretismo, assimilação ou desaparecimento dos Deuses antigos dentro do culto oficial, mas nas crenças e folclore popular a figura do Deus Cornífero resistiu por milênios. Na Europa não seria diferente, diversos Deuses da caça, da floresta, das feras, do gado e da agricultura fundiram-se em um único Deus que, com a chegada e domínio do Cristianismo, o sincretismo popular e a folclorização do cristianismo, acabou sendo assimilado ou identificado com o Diabo Cristão.
O ressurgimento dos antigos cultos e a adoração do Deus da Floresta foi o resultado de um processo histórico, onde o povo comum queria resgatar a alegria, a felicidade e a liberdade, rebelando-se contra os poderes constituídos, seculares e eclesiásticos. Mas não nos enganemos, a concepção e crença popular diferiam em muitos aspectos do Diabo Cristão, mas certamente usou a iconografia dominante para dar um sentido a essa revolução, como descreve Jean Michelet.
Com o Renascimento, a Ciência, a diminuição do poder da Igreja e o Estado Moderno, o Romantismo do século XVIII trouxe para o mundo artístico e intelectual o culto das bruxas do século XII, dando origem ao neopaganismo, o florescimento do ocultismo, o surgimento de diversas ordens e as missas negras.
Na Idade Moderna, na Era Industrial, com o trabalho de diversos filósofos e o aumento da liberdade de pensamento, foi possível haver uma ruptura do sistema dominante. No pós-modernismo aconteceu a Contracultura e ali o neopaganismo cresceu junto com diversas religiões alternativas. A necessidade cada vez maior por liberdade, pelo fim da opressão e repressão, pela contestação ao poder da Igreja, pela falta de compromisso e seriedade, o ser humano tornou o Deus das Bruxas em um mero arquétipo, confinando-o a conceitos pós-modernos ou, pior, muitas vezes sendo vilificado e negado, como acontece em vertentes do Dianismo e da neowicca.
No mundo contemporâneo, com estudantes sérios e dedicados, a Wicca e a Bruxaria Tradicional tem conseguido, orgulhosamente, remar contra a corrente. Por inspiração, por dom, por honestidade, por honra, muito de nós tem mantido e resgatado essa longa e antiga crença, adoração e nome do Deus Cornífero, o Homem de Preto, o Bode Negro, o Mestre do Sabat.
Descrevê-lo ou defini-lo para o mundo contemporâneo, mesmo para pagãos modernos, continua sendo um desafio, um risco e um problema. Não porque não o conheçamos ou que estejamos proibidos. Mas porque a complexidade e a profundidade de nosso Deus vão de encontro às suscetibilidades humanas e para muitos isso é ofensivo, escandaloso ou vergonhoso. Reinos e impérios viraram pó exatamente porque o ser humano preferiu ouvir sua vaidade e orgulho a ouvir os Deuses. Para os poucos que tem a coragem de falar a verdade há a eternidade do heroísmo. Nosso compromisso, serviço e adoração são para os Deuses, não para nossas preferências ou agendas pessoais.
Eu canto a vós, Senhor. O primeiro existente que nasceu neste mundo. Aceitou nascer, viver e morrer como todos que vem a este mundo, por que vós sois o mestre dos mistérios e conhecedor de todos os caminhos. Vieste a este mundo como o carvalho e o azevinho. Vós fostes posto no solo como semente, brotou, cresceu, floriu, frutificou e foi ceifado. Vós viestes a este mundo como o lobo e o cervo. Vós fostes posto dentro de um ventre, passou pela infância, adolescência, maturidade e senilidade. Conheceu o leite, comeu da terra, gerou muitos para depois aceitar a morte. Vós viestes a este mundo como a caça e o caçador. Vosso é o domínio dos grãos, do gado, das feras, da floresta. Por vós, tudo é santificado e sacramentado. Em vossos rituais nos reencontramos ao celebrar o êxtase da vida. Vós sois o arado que abre a terra, a chuva e a força que faz a semente brotar. Vós viestes a este mundo como bebê, criança, jovem e adulto. Vós fostes o camponês, o sacerdote, o guerreiro e o rei. Vós viestes a este mundo como filho, pai e consorte. Vosso é o domínio do amor, do desejo, do prazer, do sexo. Por vós, tudo é belo e divino. Em vossos bosques sagrados, nos santuários das cavernas, entre rios, vales, morros e encruzilhadas, nós festejamos. Vós sois aquele que nos tira do ventre e nos conduz para a tumba. Vós viestes a este mundo como vencedor e vencido, como herói e monstro. Vossa são as dádivas da vida e da morte. Ave Dioniso, ave Cernunnos, ave Herne, ave Pan!

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