Bruxaria é uma realidade poética – nascida das libélulas que tomaram forma nas fagulhas do martelo do primeiro ferreiro – e assim Ele forjou a Beleza na caverna da Sabedoria
[The Nocturnal Gospel, Frisvold & Ristic (obra em progresso)]
Bruxaria Tradicional é a arte de forjar o mundo de acordo com o seu próprio Destino -mas é também a arte de moldar o Destino em algo bom e verdadeiro, tanto quanto forjar o mundo para que ele se curve à sua vontade, e fazer toda a natureza imóvel em seu momento de impossibilidade régia, onde você é Um.
Isso transforma a bruxa em uma trabalhadora do Destino – e isso atrai a necessidade de conhecer a alquimia secreta dentro da criação – e em particular, a própria natureza.
Qualquer tentativa de se definir a bruxaria tradicional será sempre um desafio – como ela é a definição do praticante desta arte, “a bruxa”. Andrew Chumbley refere a ela como a “arte sem nome”, os sábios escandinavos chamam-na simplesmente de “A Arte” e o poeta grego Kostis Palamas a chamou “o que ainda não tem nome”.
É justamente este anonimato da bruxaria que a define, o que dá um contraste interessante com o ditado basco, que diz: “Se tem um nome, existe” – sugerindo que a nomeação em si é dotada de forja mágica e força. Então, como vamos discutir formalmente e logicamente sobre bruxaria? Simplesmente não o faremos – porque a Arte fala com o coração e é compreendida pela mente – e nesse processo o eixo à compreensão da Divindade e todas as coisas divinas na criação é erigida e verticalizada.
O termo “bruxaria” e seus muitos sinônimos, que vão de malefício em geral, ao sortilégio e magia, foram condenados desde os tempos da Mesopotâmia. Esta condenação foi continuada na Bíblia, onde encontramos a famosa passagem em Êxodo 22:18, dizendo “Não deixem viver a feiticeira” [1] . O termo “bruxa/feiticeira” na Vulgata foi traduzido de “maleficos” – ou “maléficos”. Em 1 Samuel 15:23 é afirmado que a prática da bruxaria é condenada. Encontramos na Vulgata que o que é referido como “bruxaria” em na versão King James é “magis” – e então magia é equiparada à bruxaria.
Estes dois exemplos devem ser suficientes para sugerir que a natureza da bruxaria – o que esta arte realmente é – tem sido objeto de hesitantes tentativas de definição anteriores à Vulgata. Parece que o denominador comum é que é algo que gera insegurança social em sua falta de taxonomia. Esse algo lida com o mundo invisível e não só é difícil de entender – mas tampouco seus praticantes nunca revelam muito. O sigilo muitas vezes atrai a suspeita e uma série de idéias são formadas como tentativas de se olhar através de um espelho negro que nega o reflexo.
Aqueles do sangue entendem porque a Arte é assim, e aderem ao seu sigilo e anonimato enquanto caminham pelos mundos em sussurros e rumores. Esta é apenas uma das muitas coisas que tornam os marcados visíveis.
Este fator tem feito com que algumas pessoas assumissem a expressão como algo vazio de significado. Coloridos por uma exigência moderna de se definir a tudo e colocar as coisas em caixas apropriadas, uma grande variedade de praticantes modernos adotaram esse termo, uma vez pejorativo, para definir um conjunto de práticas pagãs, folclóricas ou new age. Ao fazerem isso, criaram conselhos e fundaram tradições sem a mínima compreensão do que a arte tradicional é, e estabeleceram e continuaram erros – assim como obscureceram a natureza da bruxaria ainda mais.
Dois pólos parecem ser particularmente presentes em nossos dias. Um deles é a Wicca, que se transformou em uma religião pagã da natureza, cujos praticantes se denominam alternadamente como bruxos e wiccanos. No outro pólo temos os reconstrucionistas, que geram tradições ilusórias sobre invenções folclóricas e costumes pagãos – nomeando a isso como bruxaria tradicional. Mas um bruxo não é um pagão – enquanto um pagão pode ser um bruxo.
Há também um aumento contemporâneo na condenação da bruxaria com base nas crenças que a bruxa é uma “malfeitora” e que está em comunhão com Satanás. Encontramos denominações cristãs pentecostais na vanguarda deste despertar de perseguições à bruxaria. Isto talvez seja mais marcante na região da África congolesa, onde uma caçada às bruxas é feita a fim de se explicar os infortúnios. Seus métodos contam com exorcismos, afogamentos e trepanação – criando buracos no crânio da bruxa para deixar o mal sair – ou torturar os acusados para que o demônio seja forçado a fugir da carne agonizante de seu hospedeiro. Tais questões só continuam o mal-entendido e repetem o fracasso de se entender a arte sem nome. A bruxa, como Robert Cochrane via, era uma buscadora da Verdade – alguém que tinha como objetivo estar em comunhão constante com a sabedoria do mundo.
Para entender o Destino e saber como dobrá-lo e usá-lo – e segui-lo – bem, isso é o trabalho de sabedoria – e sabedoria, a verdadeira sabedoria, fará o buscador sempre humilde nas tempestades insondáveis da luz e compreensão que é a paisagem da bruxa.
A “bruxa” não adora a nada – mas ele ou ela paga reverência a todas as coisas. Trata-se de perceber que se alguma coisa é, ela também possui um significado – não importa o quão inferior ou exaltado – e nisto encontramos o valor pessoal. A bruxa é o seu próprio eixo e a criadora de seu próprio mundo – uma promessa de possibilidade dada a todos os filhos de Deus. A execução bem sucedida de seu próprio Destino reside na própria capacidade de compreender o mundo da matéria e os céus – mas como eles tanto espelham um ao outro e nós somos seres materiais com uma alma caída na carne, a matéria é importante. Na matéria encontramos alegria, propósito e as trilhas douradas das estrelas em todos os lugares. Vemos Deus como deus otiosus – mas sem necessariamente atribuir ao deísmo. Essa postura muitas vezes leva a bruxa a ser vista como panteísta – e este talvez isto seja verdade. Pessoalmente eu aderi ao raciocínio de Platão, que vê nas obras da natureza o jogo divino – mas isso não significa que eu veja uma pluralidade de deuses da natureza como tal, embora veja a obra de Deus as assinaturas inteligentes em toda parte – mas tenho pouca necessidade de transformar isso em uma religião. Trata-se mais de uma perspectiva sobre o mundo – uma filosofia de vida vibrante de sentido e de ser. O que vejo é uma natureza dotada de centelhas divinas, e por isso ao conhecer a natureza podemos conhecer a Deus – e nisto podemos conhecer a origem e a nós mesmos. Nesta premissa, encontramos o ofício da bruxa.
Nossos rituais estão focados na conexão com a terra e para entender quais os espíritos da natureza que nos rodeiam – e nenhum deles são sujeitos a adoração – mas sim reverência, enquanto alguns outros não são. Nisto vemos um pragmatismo que ocorre a partir da própria terra e o que está ao redor da bruxa. Para a bruxa, o lar é um abrigo, sua catedral e refúgio. Como qualquer sábio faz o seu centro imóvel, seu palácio ou fortaleza no deserto da ambigüidade, o mesmo acontece com a bruxa.
Os rituais relativos à bruxaria tradicional não fazem parte de um sistema como tal – é muito mais uma tecnologia em seu sentido grego de “techné”, um trabalho específico e determinado, relacionado com as circunstâncias. Techné, neste contexto, refere-se à “orgia”, ou “milagres ritualizados” – novamente, em referência à palavra grega – e não no sentido hedonista moderno. Assim, dar exemplos de rituais que as bruxas executam sempre trará certa imprecisão. A bruxa faz o que é necessário quando a necessidade informa através da obra e influência do Destino, e assim é isso que está na raiz do que as bruxas fazem – e aqui não pode haver um formato válido para todos – pelo contrário, a necessidade, a geografia e a alma em sintonia com o espírito é o que dita o corpus temporário de rito e prática.
Havia tendências de divulgação do que as bruxas faziam nos anos 50 e 70, em particular os trabalhos de Gerald Gardner, Janet e Stewart Farrar – e aqui outras questões chegam à superfície.
É aqui que vemos os primeiros passos ousados para a formação da Wicca, para que se tornasse uma religião da natureza com a fertilidade em seu centro. Pesquisas recentes realizadas por Philip Heselton e Michael Howard nos dão provas de que Gardner foi, de fato, admitido em um grupo de bruxas tradicionais. Também é dito que ele achou que os ensinamentos eram muito provocativos para serem revelados. Se observarmos os primeiros rascunhos do “Livro das Sombras” de Gardner descobrimos que existem alguns elementos que não pertencem à matriz da bruxaria propriamente, que são Deus Chifrudo e a Senhora dos Bosques.
Para Gardner isto foi criado no contexto de fertilidade – o que não é errado, por si só – mas talvez limitado, já que ele claramente falava do Senhor e Senhora das Matas, que chamam a chuva para que possam fertilizar a floresta e a terra. Isto é como tomar um pequeno segmento da natureza e a colocar em um novo contexto, dando-lhe dimensões mais globais – o que também não é errado, mas talvez limitado. A bruxaria é toda sobre a expansão não a clausura; não os limites da cidade, mas as pastagens infinitas é que encantam a bruxa. É a possibilidade de desdobramento do Destino.
A bruxa é a liminar e indomada, é aquela que marca as fronteiras do lícito e o proibido, que desintegra tudo em troca único caminho para que você possa andar na trilha que Destino lhe deu. Deve também ser notado que na Bruxaria propriamente – como na Wicca – a potência do sexo feminino ocupa uma posição única. Na mitologia de vários grupos da Arte européia à mulher é dada a reverência por ser o espírito da natureza propriamente – enquanto em outros grupos é comum dar especial importância à Lilith, Na’amah ou divindades tutelares similares, como as progenitoras da raça das bruxas. A mulher é vista como a pletora do próprio Destino, o primeiro fogo, o fogo da casa e do útero e ela é o que é, e se não, não seríamos… Na Wicca esta reverência especial tomou a forma de adoração à deusa – e nisto uma abordagem mais religiosa foi tomada.
Tudo o que foi até agora escrito aqui encontra uma referência na pessoa de Austin Osman Spare.
Spare é hoje largamente visto como o responsável pela criação da Magia do Caos – mas na verdade esta foi obra de Pete Carroll. E isso é muito intrigante, porque na pessoa e a obra de Spare, vemos como a bruxa se estende além das fronteiras e fazem o tudo e nada seus. Spare mantinha seu próprio centro privado, um recluso que ainda assim inspirava pró e contra sua própria orientação. Nisso ele manifesta a natureza da bruxa como um metamorfo e o fogo criativo no renascimento constante.
Tomemos psicologia: Spare era intrigado por ela. Ele leu e releu Freud e Jasper e constantemente se opôs a eles, tornando-se uma voz silenciosa na psicoterapia que ninguém levou em conta – pelo menos não ainda. Spare tomou o campo da psique e escreveu runas bruxas sobre ela. Da mesma forma ele tomou as idéias de Agrippa sobre o alfabeto mágico e transformou-as em uma linguagem para a psique e a subconsciência. Ao fazer isso ele prefigurou pessoas como Jaques Lacan, que insistia na importância da linguagem única do paciente para o desenvolvimento de uma boa terapia.
O alfabeto do desejo de Spare foi usado para formar sigilos de intenção que eram alojados dentre as sombras da psique, e do recarregamento destes dentre o esquecimento da psique iria trabalhar o caminho para a manifestação. Este era um método prático visando atingir resultados práticos e materiais. Esta técnica foi adotada por Pete Carroll quando ele fundou a IOT (Iluminates of Thanateros). Ele tomou Spare como uma das muitas inspirações ao foco quintessencial na fundação da ordem.Thanateros, um termo utilizado por Spare em relação à técnica de manifestação denominada “postura da morte” subjaz à orientação quintessencial da fundação da IOT. Spare influenciou muito da contracultura ocultista nos anos 70, 80 e 90. Destes em particular a TOPY (Temple of Psychick Youth), onde a admissão consistia em um trabalho inspirado em Spare por 23 meses. Também é digno de menção o interesse que Alan Moore mantém por Spare – e daí ele tomou Spare para o mundo dos quadrinhos e da fantasia ocultista.
Spare se envolveu com a AA de Crowley por um curto período de tempo, mas concluiu que isso não era para ele e saiu após alguns meses. Depois disso se absteve de participar de qualquer ordem, grupo ou coven. Ele se encontrou com personalidades ocultistas famosas como Gerald Gardner, por quem não se sentiu impressionado (Grant: Zos Speaks.Fulgur) e Aleister Crowley, a quem ele parecia pensar que era um tolo – mas uma figura divertida (Phil Baker: Austin Osman Spare2011).
Ele se tornou uma inspiração para magos modernos – mas ele próprio era um homem à parte de tudo. Creio que isto se deve em grande parte por causa de sua abordagem sobre a arte e a psicologia. Ele tomou a terminologia da psicanálise e transformou tudo em uma fórmula onírica-sexual para autotransformação e verdade – que descansa em um pulso cru de quintessência mágica. Estamos falando de uma perspectiva única e primordial – a marca de um bruxo – um assunto raramente lembrado quando seu nome é mencionado.
Spare declarou ter sido iniciado quando tinha 14 anos por “Mrs. Paterson” e a memória deste encontro é codificada no obscuro texto “The Witches’ Sabbath” (Fulgur.1992). Este breve texto é apresentando em argumento e enigma os mistérios básicos da importância do “Sabbath”. Para as bruxas e é bem claro no texto que Spare experimentou através da mediação de “Mrs. Paterson” o encontro genuíno com uma arte muitas vezes incompreendida e deturpada.
Nisto temos então o estudo acadêmico da bruxaria onde, talvez, encontraremos os contrastes nas obras de Carlo Ginzburg e Ronald Hutton. Este último parte de grandes pinceladas aos detalhes, e o primeiro se ocupa com as pinceladas maiores que nos dizem algo mais geral. Ambos representam importantes contribuições no estudo da bruxaria – mas também fica claro que um estudo material do que é sem nome e muitas vezes velado em segredo tem as suas limitações.
A problemática em ambos os casos é que a academia, a este respeito, é largamente relegada à história, e a história é feita através do julgamento dos fatos, por escrito (em todas as formas de legado textual) ou manifestos (em parte, o campo da arqueologia). Raramente encontramos tentativas de pesquisar a visão de mundo no campo da investigação histórica, mas é claro, Armando Maggi, Jacques Le Goff e Charles Taylor têm contribuído com preciosas investigações a este respeito – infelizmente, muitas vezes esquecidas. O que esses acadêmicos fizeram foi aceitar a visão de mundo pré-moderno dos estudados como crucial para se dizer qualquer coisa de útil sobre o assunto. Assim, a partir disto, temos o discurso enigmático de Taylor se aprofundando no mundo encantado das bruxas e os estudos do imaginário medieval por Le Goff.
Quando se trata do estudo acadêmico, de premissas formais e a lógica da bruxaria – precisamos ter em mente que é pertinente à Arte escapar de qualquer interpretação e rótulo dado a ela. A Arte não tem nome – e nem vestígios. É o evangelho sussurrado no vento do pinheiro e é o murmurar dos salmos dos corvos e pica-paus. São os segredos impressos em sangue e na terra pelas árvores, estrelas e os homens, e nos feitiços escritos na areia enquanto as víboras percorrem as terras. Assim, devemos tomar como premissa para “bruxaria” de que é uma realidade poética e por isso um estudo da Arte que insiste em fornecer evidências em termos de fatos históricos só apresentam uma peça distorcida da verdade. O estudo da bruxaria é também o estudo da imaginação – a imaginação pré-moderna, que via o mundo como um lugar encantado, onde o visível e o invisível estavam constantemente tocando um ao outro, onde a realidade não é definida pela ótica – mas por todos os sentidos. No mundo pré-moderno o experimento não só estava regulamentado por regras quantitativas – porque em um mundo encantado também o mundo invisível era fator de confiável na experiência, como é evidente nas obras de Francis Bacon. Isso deve nos levar à conclusão que se queremos estudar bruxaria, precisamos estabelecer a confiabilidade das ferramentas com as quais iremos trabalhar – e, neste caso, nos propusermos a estudar o que é anônimo, que está envolto em mito e poesia, memória e uma visão de mundo tida como arcana e irremediavelmente ultrapassada, e não a científica pelos padrões modernos. Se esta é a premissa, o pesquisador já está infestando seu estudo com o viés acadêmico de pesquisa, girando em torno de preconceito – e o trabalho terá como objetivo não a compreensão, mas a limitação e falsificação. Então, no final eu cito Sigmund Freud:“onde quer que eu vá descubro que um poeta esteve lá antes de mim”.
[1] “Feiticeira” e “Bruxa” são termos intercambiáveis nas versões da Bíblia para qualquer pessoa que realizasse feitiços, como encontramos na versão King James Deut 18:10 “There shall not be found among you {any one} that maketh his son or his daughter to pass through the fire, {or} that useth divination, {or} an observer of times, or an enchanter, or a witch,”, em referências à adivinhação e necromancia (interessantemente a adivinhação era ora permitida, ora proibida), ou como a escrava em Atos 16:16, ou à “bruxa de En-Dor”, em 1 Samuel 28:7
Por Nicholaj de Mattos Frisvold – do original em inglês que pode ser lido no blog Starry Cave
Traduzido por Katy de Mattos Frisvold (autora do blog Espelho de Circe)