sexta-feira, 10 de junho de 2016

Heterogênese II

Encolhendo-se perto de uma tosca fogueira, estava Adão, que não conseguia dormir e entender porque uma noite pode estender-se tanto. Achava que o fogo o manteria a salvo das Trevas e manteria sua voz próxima à de seu Pai, o Espírito das Luzes. Como toda criatura arrogante, que se contenta com a felicidade superficial da luz, por esta fornecer-lhe calor e visão, tremia de impotência ante ao frio e densidade das Trevas, que não cessa de requisitar a argüição dos seres inteligentes.

Mais ainda nesta noite, que tinha agora um ser vivo para representá-las e melhor ainda, pois além de ser mulher, era filha do Espírito das Trevas, nascida no signo da lua nova, Lilith, a dúvida em forma carnal tentadora, a crítica em olhos flamejantes sensuais. Adão ao enfrentar a simples presença de Lilith frente aos seus olhos, aproximando-se dele, altiva e magistral, com passos flutuantes, vinda das Trevas da noite, tomou-a como sendo um demônio, como muitos dentre aqueles que seu Pai, o Espírito das Luzes, lhe advertiu cautela. Ora, instruído por seu Pai, Adão quis combater esse demônio com suas próprias armas: fogo para combater fogo. Porém Lilith, que foi talhada na pedra pelo relâmpago, não iria temer as chamas de uma mera tocha. Visto que sua arma não fazia efeito, Adão achou prudente tentar uma aliança com ela por enquanto, até que numa distração, pudesse submetê-la a seu jugo.

Quando Lilith estava ao seu lado, Adão percebeu que era uma mulher perfeita, um corpo mais evoluído e melhor que as fêmeas dos seres semelhantes a Adão. Foi somente então que passou por sua cabeça a ideia de que ela poderia ser a tão prometida companheira, presente de seu Pai, o Espírito das Luzes.
Lilith porém não pôde suportar a ideia de deixar Adão se deliciar da maneira opressiva de amar dele. Nem sequer passou pela sua cabeça a ideia de deixá-lo usufruir suas carnes tão precocemente. O vento noturno fez sentir ainda mais sua fúria ao repreender Adão:

-Longe de mim, besta humana. Por que me toma, para querer me possuir como se fosse um fruto de árvore, a se oferecer à primeira mão que se lança? Não vês como sou tua igual, como tantas outras e mereço o mesmo respeito que nutres por ti? Pois bem, animal infeliz! Que fique sabendo que sou Lilith, filha do Espírito das Trevas e não será de ti que farei gerar os meus, por causa de tua ignorância. Não é o único ser que possui cabeça, nem tão pouco és o primeiro homem. Lançarei minha geração longe da tua, com outro qualquer que saiba reconhecer o Universo, o equilíbrio entre as Luzes e as Trevas, assim como a igualdade de todos os seres. Da nossa geração virá aquela que porá abaixo teu Império das Luzes, tuas crenças superficiais e o coloque no plano que lhe é devido. Estarei presente em teu meio, a partir desta noite, como em toda noite de lua nova. Mais ainda quando a terra opor-se no caminho do sol, escurecendo a lua, para acoitar tua consciência e de tua geração, diante das Trevas da noite prolongada. Assim será até que seus filhos te julguem e se envergonhem ao descobrir que tipo de casa tu construíste para os herdeiros do Império das Luzes!

O Espírito das Trevas, vendo que isso foi dito pelos lábios de sua filha, sem ajuda, ficou orgulhoso e permitiu que a sabedoria dela lhe desse asas, a fim de buscar seus iguais, entre os seres. Ao chegar nas margens de um grande lago, a oeste do Éden de Adão, chamado de Mar Morto, Lilith ganiu sua mágoa para as montanhas, o deserto e o lago. Cantava e dançava amargurada de uma dor tão tocante, que logo muitos seres apareceram para consolá-la. Mas Lilith prosseguia, cantando:

Do amor entre o relâmpago e a pedra,
Fui formada e por ordem das Trevas,
Nasci mulher tão bela e perfeita,
Mas para que homem aos olhos apareceria?
Da lua nova, signo noturno,
Minha alma ganhei e da chama dos meus olhos
Na noite, minha sabedoria, faz as Trevas sorrirem,
Mas para que homem aos ouvidos ensinaria?
Homens são tão altivos e superiores,
Mas não conseguem enxergar além dos olhos,
Nem poupa de sacrifício a vida do semelhante.
Antes movesse o pé para mudar a opinião,
Rugisse como igual para o leão,
Olhar antes mesmo da visão,
Viver tendo o semelhante como irmão,
Mas por ser um animal da Luz,
Assim lhe parece cômodo e fácil:
Ver o que, aos olhos, a Luz deseja,
Temer o que a inteligência ignora,
Estar como num trono inexistente,
Limpar do seu mundo o que condena.
Mil vezes sou mais feliz,
Se entre estes seres
Faço meu leito
E junto deles lançar as sementes
Das gerações que ruirão
Com o Império de Adão e das Luzes.

Notando que muitos seres compartilhavam de sua dor, deixou que eles falassem. Estes, com a ajuda do espírito das Trevas, disseram em uma única língua, uníssonos:

Formosa senhorita,
Filha do Espírito das Trevas,
Nascida na noite sob o signo da lua nova,
Forjada pelo relâmpago na pedra.
Teu choro nos enche de dor e repúdio.
Conhecemos também o petulante Adão,
Que diz ser filho do Espírito das Luzes
E que é o primeiro homem,
O ser superior entre todos os seres.
Perdoamos tua ingenuidade,
Pois tens diante de ti seres
Que não somente são iguais
Mas muito semelhantes também
Ao arrogante homem Adão.
Se foi pela estupidez deste,
Não nos culpe a todos.
Sabe muito bem que não é,
Nem foi ou será o único
E último homem dentre os seres.
Mesmo tendo a paternidade
Vinda de um Espírito do Universo,
Este homem é tão besta, se não mais,
Que seus semelhantes aqui presentes.
Nossas mentes são abertas,
Nossos olhos aguçados,
Nossa vida, em dar o que desejamos obter.
Se foi tamanha sua mágoa,
Deixa-nos então te consolar.
Temos vontade e paciência de aprender,
Ainda assim teremos pouco conhecimento.
Façamo-nos colegas, amigos e irmãos verdadeiros,
Que ensinam um ao outro sem censura,
Nem educam pelo artifício do adestramento.

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