A proposta deste artigo é apresentar uma matriz figural para o masculino, determinada a partir das representações parietais e escultórias do Paleolítico, em confronto/conjunto com o feminino, na qual a protofiguratividade (conjunto de traços mínimos) é recorrente e dela se conota um sentido, um significado pleno de valor para a sociedade do período, que poderá ser reconhecida ao longo das eras em sua essência, embora recoberta pelos novos valores culturais.
A partir da distinção feita entre a representação do masculino e do feminino é possível estabelecer uma leitura significativa das representações parietais e escultórias encontradas no Paleolítico. Enquanto a figura da mulher ocupa o centro das atenções e representa a grande Deusa Mãe, o masculino é representado, principalmente pelos machos animais, privilegiando as regiões de força/virilidade, o dorso e o sacro (características sexuais primárias – órgãos reprodutores); a cabeça alongada e os chifres, que, como o corpo, têm inscritos os elementos de força, tomados aqui como arma de defesa ou de ataque e, portanto, de virilidade. A sobreposição de imagens de animais machos às figuras femininas, ou sua representação nas paredes dos abrigos onde as estatuetas das vênus foram encontradas, indica uma relação entre esses animais e as vênus.
O estudo do simbolismo sexual em contextos pré-históricos
Não se trata de ignorar os aspectos tecnológicos ou materiais da vida em sociedade, mas de considerar que são de igual importância as representações sobre a vida social, em qualquer época e lugar, mas tanto mais no que se refere aos povos do passado. Essas representações simbólicas seguem lógicas que são diversas daquelas derivadas do racionalismo iluminista e que caracterizam a ciência moderna. Os sistemas de crenças de cada grupo humano são meios de compreensão do mundo, de modo que, quando os azandes, por exemplo, tomam a bruxaria como uma realidade, essa explicação mágica se torna não apenas lógica e racional, como fornece um significado moral para o que acontece na sociedade.
Cremos que não e isto nos leva ao segundo aspecto da nossa abordagem sobre o passado mais antigo do seres humanos e suas representações: a sexualidade. De fato, haveria algo mais típico da nossa época do que a preocupação com o sexo? Não, por certo, no sentido de que a modernidade seja mais dedicada ao relacionamento sexual do que outras épocas ou sociedades: de fato, não há prova alguma de que, nesses termos, sejamos os modernos ocidentais mais propensos a tais atos do que nossos antepassados. O que nos caracteriza é a invenção da narrativa sobre o sexo, ao qual damos o nome de sexualidade, e somos, aí sim, prolíxos e prolíficos.
Preocupação central não é pouco e isso resulta dos movimentos sociais como o feminismo, mas também pela diversidade em geral. A própria discussão da masculinidade, neste contexto, adquiriu contornos novos e relevantes, em direção à discussão das identidades multifacetadas, plurais e mesmo conflitantes. Os temas relativos à sexualidade e ao gênero foram particularmente relevantes para a revisão do estudo da mais alta pré-história. Neste artigo, tratamos de uma forma de representação pré-histórica bem conhecida e estudada, mas pouco explorada em seus aspectos simbólicos a um só tempo religiosos e sexuais. Para isso, nos valeremos de uma perspectiva semiótica que permita discutir alguns aspectos do simbolismo dos nossos antepassados mais distantes.
Do chifre ao falo
A representação do macho (animal e/ou homem), diversamente das vênus, apresenta uma circularidade nas transformações sêmicas, ou seja: o lexema chifre, após as transformações, recai sobre o lexema falo, e vice-versa. Ambos (falo e chifre) apresentam o mesmo percurso, só que inversamente, confirmando a leitura antropológica do consorte da Deusa como veículo de morte por excelência e, ao mesmo tempo, veículo fertilizado. Dessa forma, o círculo em que ele se inscreve é caracterizado pelas transformações classemáticas e sêmicas por que passa a forma cilindróide e que levam do animal ao cutural, retornando ao animal/humano.
A análise de diversas representações animais, como o Bisão de Altamira, o Touro de Lascaux e outros machos sobrepostos às ancas/sexo das imagens femininas, levou a definição do conjunto sêmico e ao seguinte percurso temático-figurativo.
Compartilhando dos mesmos núcleos sêmicos e semas contextuais, a flecha e o falo parecem entrar em oposição pelo fato de a flecha ser um objeto de perfuração, cultural, que gera a morte, enquanto o falo é um objeto de penetração, natural (humano/animal), que gera a vida. Mas essa oposição é superficial, pois tanto a flecha pode gerar a vida – alimento e proteção do homem – quanto o falo pode gerar a morte – a reprodução humana como fator de destruição/caça de um maior número de animais e coleta de maior número de frutos, portanto, “morte” da natureza. Assim sendo, os termos chifre, flecha e falo assumem uma equivalência nos princípios de gerar e proteger a vida, mas também no perigo mortal que representam.Ao estabelecer essa equivalência o homem paleolítico criou uma fratura, uma metamorfose radical, na qual as figuras do mundo engendradas pela percepção se transmutam em figuras de sentido; ele transferiu os valores de um objeto a outro, num processo de fusão sincrética de dois termos opostos: natural x cultural, que leva ao mítico, ou seja, há, a princípio, uma negação parcial do processo natural, visto aqui como não consciente, não abstrato, e a afirmação de um “sobre-natural”, ou semi-simbólico: o chifre, a flecha/bastão e o falo equivalem-se e representam um todo que é da ordem do mítico – a agressividade/força/pujança sobre-natural capaz de fertilizar a Terra, gerar vida, mas também a morte.
A equivalência entre arma/falo é reforçada por outra representação maciça das cavernas paleolíticas – as chagas/vulvas sangrando sobre o dorso dos animais ou junto a falos. Um dos exemplos mais originais está na gruta de Fontanet: “num grupo de gravuras que compreendem vários bisões, vê-se nitidamente gravada uma estrutura vulvar simples sobre o dorso de um deles”. A vulva que abre o flanco do animal é um símile da chaga ou ferida feita pela flecha, do mesmo modo como o falo rompe o corpo feminino, “ferindo-o” e fazendo-o sangrar.
O intercâmbio entre caça e cópula > flecha/chaga <=> falo/vulva se estabelece por serem essas duas práticas geradoras de vida para a espécie humana e destruição/morte para a espécie animal: a caça mata o animal, enquanto a cópula (humana) põe em cena um aumento da população, gerando a necessidade de maior exploração do meio, criando um círculo de interdependência homem–natureza que terá de ser equilibrado.
A escolha de animais portadores de chifres, fortes e agressivos para consortes da Deusa Mãe decorre dessa equivalência entre o falo e o chifre. Esses animais cornudos assumem, na perspectiva paleolítica, uma dupla virilidade, sendo, portanto, mais agressivos e pujantes que os animais destituídos de cornos e mais competentes para fertilizar a grande–fêmea–terra.
É nessa ambivalência de vida/morte x gerar/destruir que se inscrevem as figurativizações do feminino: mulher, triângulo púbico, vulva – Deusa Mãe; e do masculino: animal cornudo, falo/flecha – consorte da Deusa. Signos bipolares, semi-simbólicos, míticos, que somados à percepção do ciclo da natureza, das fases da Lua, estabelecem a primeira hierogamia e ordenam o mundo a partir dos princípios macho e fêmea e de sua união – cabendo à fêmea a ligação com a Terra e ao macho, com a força animal e astral, a ligação com o Sol (fogo) e seus raios, com o relâmpago, com a chuva, que, como o sêmen, fecunda a terra.
A representação do homem como um símile animal, mesclando suas características ao do cornudo, por um lado visa atrair para o homem a potência animal, quer seja ela sexual, quer de força/agrecividade/ferocidade e, por outro, o homem “encarna” o animal, assume-se como Natureza – o homem do período agrupa os semas/signos de força de cada imagem, a virilidade está diretamente ligada à ferocidade animal, o falo e os chifres são o motivo fulcral para o estabelecimento do perfil do macho, portanto, o homem vem mascarado sob os traços do animal, como na cena gravada em uma das paredes da gruta de Tuc d’Audoubert, Ariège, na qual duas fêmeas parecem se seguir: uma de rena, outra de bovídeo, esta última com o sexo muito aparente; atrás destas, um homem de pé trajado como um animal. O homem à direita, caracterizado como animal, porta uma máscara com chifres, além da pele do animal sobre o corpo, nas mãos traz um arco musical, indício de uma magia de caça. A correlação aqui é óbvia, o sexo exposto da segunda fêmea e o homem com aspecto animal indicam a ligação entre a caça e a cópula, e vice-versa. Em todas essas representações observa-se o desejo de estimular a fecundidade/fertilidade da natureza, a sorte ou sucesso na caça, de beneficiar a sobrevivência do grupo.
Autores: Flávia Regina Marquetti & Pedro Paulo Abreu Funari
Obra: Reflexões sobre o falo e o chifre: por uma Arqueologia do Masculino no Paleolítico
A partir da distinção feita entre a representação do masculino e do feminino é possível estabelecer uma leitura significativa das representações parietais e escultórias encontradas no Paleolítico. Enquanto a figura da mulher ocupa o centro das atenções e representa a grande Deusa Mãe, o masculino é representado, principalmente pelos machos animais, privilegiando as regiões de força/virilidade, o dorso e o sacro (características sexuais primárias – órgãos reprodutores); a cabeça alongada e os chifres, que, como o corpo, têm inscritos os elementos de força, tomados aqui como arma de defesa ou de ataque e, portanto, de virilidade. A sobreposição de imagens de animais machos às figuras femininas, ou sua representação nas paredes dos abrigos onde as estatuetas das vênus foram encontradas, indica uma relação entre esses animais e as vênus.
O estudo do simbolismo sexual em contextos pré-históricos
Não se trata de ignorar os aspectos tecnológicos ou materiais da vida em sociedade, mas de considerar que são de igual importância as representações sobre a vida social, em qualquer época e lugar, mas tanto mais no que se refere aos povos do passado. Essas representações simbólicas seguem lógicas que são diversas daquelas derivadas do racionalismo iluminista e que caracterizam a ciência moderna. Os sistemas de crenças de cada grupo humano são meios de compreensão do mundo, de modo que, quando os azandes, por exemplo, tomam a bruxaria como uma realidade, essa explicação mágica se torna não apenas lógica e racional, como fornece um significado moral para o que acontece na sociedade.
Cremos que não e isto nos leva ao segundo aspecto da nossa abordagem sobre o passado mais antigo do seres humanos e suas representações: a sexualidade. De fato, haveria algo mais típico da nossa época do que a preocupação com o sexo? Não, por certo, no sentido de que a modernidade seja mais dedicada ao relacionamento sexual do que outras épocas ou sociedades: de fato, não há prova alguma de que, nesses termos, sejamos os modernos ocidentais mais propensos a tais atos do que nossos antepassados. O que nos caracteriza é a invenção da narrativa sobre o sexo, ao qual damos o nome de sexualidade, e somos, aí sim, prolíxos e prolíficos.
Preocupação central não é pouco e isso resulta dos movimentos sociais como o feminismo, mas também pela diversidade em geral. A própria discussão da masculinidade, neste contexto, adquiriu contornos novos e relevantes, em direção à discussão das identidades multifacetadas, plurais e mesmo conflitantes. Os temas relativos à sexualidade e ao gênero foram particularmente relevantes para a revisão do estudo da mais alta pré-história. Neste artigo, tratamos de uma forma de representação pré-histórica bem conhecida e estudada, mas pouco explorada em seus aspectos simbólicos a um só tempo religiosos e sexuais. Para isso, nos valeremos de uma perspectiva semiótica que permita discutir alguns aspectos do simbolismo dos nossos antepassados mais distantes.
Do chifre ao falo
A representação do macho (animal e/ou homem), diversamente das vênus, apresenta uma circularidade nas transformações sêmicas, ou seja: o lexema chifre, após as transformações, recai sobre o lexema falo, e vice-versa. Ambos (falo e chifre) apresentam o mesmo percurso, só que inversamente, confirmando a leitura antropológica do consorte da Deusa como veículo de morte por excelência e, ao mesmo tempo, veículo fertilizado. Dessa forma, o círculo em que ele se inscreve é caracterizado pelas transformações classemáticas e sêmicas por que passa a forma cilindróide e que levam do animal ao cutural, retornando ao animal/humano.
A análise de diversas representações animais, como o Bisão de Altamira, o Touro de Lascaux e outros machos sobrepostos às ancas/sexo das imagens femininas, levou a definição do conjunto sêmico e ao seguinte percurso temático-figurativo.
Compartilhando dos mesmos núcleos sêmicos e semas contextuais, a flecha e o falo parecem entrar em oposição pelo fato de a flecha ser um objeto de perfuração, cultural, que gera a morte, enquanto o falo é um objeto de penetração, natural (humano/animal), que gera a vida. Mas essa oposição é superficial, pois tanto a flecha pode gerar a vida – alimento e proteção do homem – quanto o falo pode gerar a morte – a reprodução humana como fator de destruição/caça de um maior número de animais e coleta de maior número de frutos, portanto, “morte” da natureza. Assim sendo, os termos chifre, flecha e falo assumem uma equivalência nos princípios de gerar e proteger a vida, mas também no perigo mortal que representam.Ao estabelecer essa equivalência o homem paleolítico criou uma fratura, uma metamorfose radical, na qual as figuras do mundo engendradas pela percepção se transmutam em figuras de sentido; ele transferiu os valores de um objeto a outro, num processo de fusão sincrética de dois termos opostos: natural x cultural, que leva ao mítico, ou seja, há, a princípio, uma negação parcial do processo natural, visto aqui como não consciente, não abstrato, e a afirmação de um “sobre-natural”, ou semi-simbólico: o chifre, a flecha/bastão e o falo equivalem-se e representam um todo que é da ordem do mítico – a agressividade/força/pujança sobre-natural capaz de fertilizar a Terra, gerar vida, mas também a morte.
A equivalência entre arma/falo é reforçada por outra representação maciça das cavernas paleolíticas – as chagas/vulvas sangrando sobre o dorso dos animais ou junto a falos. Um dos exemplos mais originais está na gruta de Fontanet: “num grupo de gravuras que compreendem vários bisões, vê-se nitidamente gravada uma estrutura vulvar simples sobre o dorso de um deles”. A vulva que abre o flanco do animal é um símile da chaga ou ferida feita pela flecha, do mesmo modo como o falo rompe o corpo feminino, “ferindo-o” e fazendo-o sangrar.
O intercâmbio entre caça e cópula > flecha/chaga <=> falo/vulva se estabelece por serem essas duas práticas geradoras de vida para a espécie humana e destruição/morte para a espécie animal: a caça mata o animal, enquanto a cópula (humana) põe em cena um aumento da população, gerando a necessidade de maior exploração do meio, criando um círculo de interdependência homem–natureza que terá de ser equilibrado.
A escolha de animais portadores de chifres, fortes e agressivos para consortes da Deusa Mãe decorre dessa equivalência entre o falo e o chifre. Esses animais cornudos assumem, na perspectiva paleolítica, uma dupla virilidade, sendo, portanto, mais agressivos e pujantes que os animais destituídos de cornos e mais competentes para fertilizar a grande–fêmea–terra.
É nessa ambivalência de vida/morte x gerar/destruir que se inscrevem as figurativizações do feminino: mulher, triângulo púbico, vulva – Deusa Mãe; e do masculino: animal cornudo, falo/flecha – consorte da Deusa. Signos bipolares, semi-simbólicos, míticos, que somados à percepção do ciclo da natureza, das fases da Lua, estabelecem a primeira hierogamia e ordenam o mundo a partir dos princípios macho e fêmea e de sua união – cabendo à fêmea a ligação com a Terra e ao macho, com a força animal e astral, a ligação com o Sol (fogo) e seus raios, com o relâmpago, com a chuva, que, como o sêmen, fecunda a terra.
A representação do homem como um símile animal, mesclando suas características ao do cornudo, por um lado visa atrair para o homem a potência animal, quer seja ela sexual, quer de força/agrecividade/ferocidade e, por outro, o homem “encarna” o animal, assume-se como Natureza – o homem do período agrupa os semas/signos de força de cada imagem, a virilidade está diretamente ligada à ferocidade animal, o falo e os chifres são o motivo fulcral para o estabelecimento do perfil do macho, portanto, o homem vem mascarado sob os traços do animal, como na cena gravada em uma das paredes da gruta de Tuc d’Audoubert, Ariège, na qual duas fêmeas parecem se seguir: uma de rena, outra de bovídeo, esta última com o sexo muito aparente; atrás destas, um homem de pé trajado como um animal. O homem à direita, caracterizado como animal, porta uma máscara com chifres, além da pele do animal sobre o corpo, nas mãos traz um arco musical, indício de uma magia de caça. A correlação aqui é óbvia, o sexo exposto da segunda fêmea e o homem com aspecto animal indicam a ligação entre a caça e a cópula, e vice-versa. Em todas essas representações observa-se o desejo de estimular a fecundidade/fertilidade da natureza, a sorte ou sucesso na caça, de beneficiar a sobrevivência do grupo.
Autores: Flávia Regina Marquetti & Pedro Paulo Abreu Funari
Obra: Reflexões sobre o falo e o chifre: por uma Arqueologia do Masculino no Paleolítico