sexta-feira, 4 de agosto de 2017

Meu daimon

Cipriano estava chegando próximo da idade em que ele deveria pegar seus brinquedos e oferecer no templo de Juventas, cortar o cabelo e trocar sua túnica. Seu pai, Tertuliano, o havia ensinado como honrar os ancestrais, como ofertar aos Penates, como ofertar aos Lares e como adorar o Deus de sua Gens. Sua mãe o ensinou igualmente como ver, ouvir e falar com os espíritos e gênios locais. Seu pai era totalmente romano, patrício filho de patrício, sua mãe era romana por cidadania escolhida, ela era etrusca. Cícero herdou as crenças de Roma e da Etrúria. Vivendo entre o norte e o sul, entre a urbes e a villae, Cícero não se sentia ambientado em nenhum dos mundos.
– Cipriano meu filho, para honrar seus ancestrais e prestar o devido culto aos Deuses, que tal irmos à casa da vovó? Ali naquela cidade existe um lugar que dizem ser próximo do Orco. Com ajuda de sua avó, podemos pedir aos nossos ancestrais e Deuses que te concedam um daemon.
– Que bom, mamãe! Ali na casa da vovó eu me sinto mais à vontade. Mas eu notei que ela não faz nem suas oferendas, nem as do papai.
– Isso porque, Cipriano, sua avó segue uma crença campesina, uma crença muito antiga que provavelmente existia antes dos Etruscos e Romanos.
– Podemos ir agora? Eu estou cansado de não me encaixar em lugar algum.
– Cipriano, você não devia se preocupar com isso. Você ainda é jovem, mas caixas foram feitas para guardar coisas, não pessoas.
Tertuliano, o pai de Cipriano, tomou-o em mãos e foram se arrumar. Uma caravana de comerciantes persas passaria em breve por Nabância e com sorte conseguiriam um bom assento para ir a Saragoza.
– Querida, melhor levar Cipriano hoje mesmo. Estamos próximo das calendas de Lemúria, o dia está propício para ofertar aos ancestrais e pedi-los por um daemon para nosso garoto.
Leucótea, a mãe de Cipriano, concordou e o garoto foi alegremente arrumar-se para ver sua avó.
Cipriano chegou com seus pais na cidade de Zaragoza, onde foram recebidos por um tio de segundo grau que os levou até a Nona Guardia, como a avó de Cipriano era conhecida. Inquieto, Cipriano chamou de longe sua avó.
- Nona! Nona!
- Eu vou agora mesmo! Cipriano! Que bom destino te traz aqui?
- Boa tarde, dona Serena, eu trouxe meu filho para que ele possa ter seu próprio daimon.
- Oh, que bom! Obrigada por confiar ele a mim, Tertuliano.
- Leucótea vem em seguida. A carruagem onde ela estava quebrou o eixo da roda.
- Então vamos todos arrumar a mesa, assim podemos todos comer assim que meu bebê chegar.
Foi o tempo de requentar a comida, arrumar a mesa, posicionar os pratos e talheres, abrir uma garrafa de vinho e cerveja e servir o assado que a mãe de Cipriano chega, senta e se serve. Depois de todos se alimentarem, esperaram o tempo da digestão conversando, fazendo piadas e música.
- Bono, bono! O sol se foi. Podemos ir até a Casa di Averno onde Cipriano poderá encontrar com alguns daemons. Eu espero que vocês tenham vindo com os preparativos.
- Mamãe! A senhora acha mesmo que eu iria esquecer a herança de nossa família?
- Ah, querida, muita coisa nós deixamos de lado quando vivemos nas urbes. Mas se vocês estiverem preparados, vamos andando.
Cipriano chegou acompanhado de seus pais e sua avó na Casa di Averno, uma gruta na base das Estepas de Belchite, cuja entrada era resguardada por colunas, arcos, muros e outras construções em ruínas. Diante de uma ara, onde resquícios de muitos rituais repousavam ao redor, dona Serena, chamada Nona Guardia, colocou um cálice de porcelana, duas velas e um incensário. Tertuliano cuidou de amarrar um carneiro jovem. Leucótea cuidou da bacia de oferenda e de manter a pira acesa. A avó de Cipriano entoou um cântico em uma língua desconhecida, mas que soava familiar para a alma do jovem.
– Agora, queridos, chamem pelos seus ancestrais. Depois nossos ancestrais trazem os daemons e Cipriano escolhe ou sente aquele que for mais adequado a ele.
Tertuliano entoou os nomes de sua descendência até a sétima geração. Não demorou para aparecerem muitos dos fantasmas com seus daemons. Leucótea entoou os nomes de sua descendência até a sétima geração. Não demorou para aparecerem muitos dos fantasmas com seus daemons.
– Agora é contigo, Cipriano. Olhe bem, sinta, escolha.
Cipriano andou por entre figuras tão distintas, alguns daemons pareciam guerreiros grandes e poderosos, outros pareciam antigos sábios e doutores. Andou até a beira da gruta e, ali escondido na sombra, ele viu pequenos olhos vermelhos. Como se tivesse sido chamado, Cipriano aproximou-se para ver de quem eram tais olhos. Viu uma criatura pequena, acanhada, coberta por um longo e grosso pelo negro. Sentindo compaixão, Cipriano tentou conversar com a criatura.
– Olá, meu nome é Cipriano. Você veio com alguém? Você está sozinha? Eu gostaria que você fosse meu daemon, se você aceitar.
A criatura olhou espantada para Cipriano. Então se ergueu, mostrando que era apenas um pouco menor do que Cipriano e parecia ser uma garota muito peluda. Chegou perto, olhou, cheirou, pegou no cabelo de Cipriano, tocou em seu braço.
– Kelek gosta jovem humano. Kelek fica jovem humano.
Cipriano voltou alegre para seu lar, acompanhado de Kelek, que observava tudo com curiosidade e interesse. Anoitecia, então Cipriano tratou de trocar suas vestes, quando se lembrou que agora tinha uma companhia.
– Kelek, você se importa se eu trocar de roupa?
– Kelek não sabe o que é roupa.
– Esse pano que uso por cima do meu corpo. Eu tenho que tirar esse e colocar outro.
– Trocar de pele? Muito trabalho. Kelek vive e dorme com mesma pele.
– Então Kelek não vai ficar envergonhada ou brava comigo se eu “trocar de pele”?
– Kelek quer ver mestre trocando pele.
Meio envergonhado, Cipriano tira sua túnica que usa durante o dia e coloca pouco mais que uma faixa ao redor dos quadris. Kelek não deixa de observá-lo, com atenção, curiosidade e interesse.
– Corpo do mestre bom, forte. Não tem pelo. Tem apenas um pedaço pendente. Corpo do mestre bom.
– Ahm…você deve estar falando do meu trabuco, Kelek. Não era para você ver. Eu fiquei envergonhado.
– Trabuco do mestre? Kelek viu muitos trabucos no Orco. Kelek gosta mais trabuco mestre. Por que mestre envergonhado? Trabuco bom.
– Eu fui educado assim Kelek. A moral diz que eu só posso mostrar o meu trabuco apenas para a garota que eu estiver amando.
O daemon feminino ficou com sua negra pelagem eriçada e seus rubros olhos brilharam. Cipriano acha que viu um rubor na face de Kelek.
– Mestre gosta de Kelek? Kelek gosta mestre. Kelek mostra sua concha para mestre.
A criatura afasta algumas mechas do seu pelo na parte íntima revelando uma entrada tão normal e comum como de qualquer garota humana. Cipriano tem a reação que qualquer homem teria em ver as partes íntimas de uma mulher. Tendo o corpo nu, a ereção ficou ainda mais evidente. A criatura observa, com atenção especial.
– Mestre quer concha Kelek? Kelek quer trabuco do mestre. Mestre quer amar Kelek?
Apesar do recato e da vergonha, Cipriano vivia em um tempo feliz onde o contato físico entre homem e mulher era algo normal, natural e saudável. A criatura parecia muito uma garota peluda. Cipriano fez aquilo que parecia inevitável. Deitou-se em seu catre e chamou Kelek para compartilhar o leito com ele naquela noite.
Cipriano acordou no dia seguinte com Kelek aconchegada ao seu lado. Sua cama estava bem bagunçada e com sinais de que ele teve um contato bem íntimo com Kelek. Sentindo seu corpo dolorido, com arranhões e mordidas, Cipriano levantou, sentindo as pernas bambas, mas decidido a ir à cozinha para o café da manhã, sacudiu Kelek.
– Oi Kelek. Bom dia. Vamos tomar banho antes do café?
– Banho? Kelek não sabe se banho é bom.
– Venha comigo. Você vai gostar.
Curiosa e interessada que Kelek era em aprender tudo sobre os hábitos humanos, ela segue Cipriano até uma banheira escavada em um tronco de árvore. Cipriano pega água do fogareiro e põe na banheira, completando com água tépida dos vasos. Em seguida, pega o sabão, tira a túnica e entra na banheira.
– Venha! A água está ótima!
Kelek olha com um pouco de desconfiança, aproxima, toca a superfície da água com seus dedos. Cipriano oferece um pouco de sabão para ela cheirar, para tentar tranquilizá-la. Kelek abre um sorriso e pula dentro da banheira.
– Banho bom. Sabão cheiroso.
Conforme se banham e se esfregam, as brincadeiras acabam provocando outra ereção em Cipriano que é imediatamente aproveitado por Kelek. Inclusive com arranhões e mordidas. Quando acabaram, Cipriano saiu primeiro e mostrou a Kelek a toalha para se secar, pente, perfume. Kelek imitava tudo o que Cipriano fazia e sorria satisfeita.
– Agora nós podemos comer o café da manhã.
– Kelek com fome.
Leucótea, a mãe de Cipriano gostou de ver seu filho e seu daemon se darem tão bem. Colocou na mesa bastante leite, pão, queijo, presunto, biscoitos. Cipriano comia, Kelek imitava.
– Queridos, assim que acabarem não esqueçam que hoje o Cipriano tem que ir ao templo de Juventas para ofertar seus brinquedos e sua velha túnica.
Cipriano arrumou-se com sua melhor túnica e saiu à rua, acompanhado de Kelek, que andava com seus quatro membros ao lado de Cipriano, sem roupas humanas, com todo aquele pelo negro ela mais parecia um cachorro grande. Alguns velhos praguejavam nas esquinas dizendo que um cachorro deveria andar com coleira. Cipriano não atinava, pois para ele Kelek era uma garota peluda.
Diante do templo de Juventa Cipriano encontrou Helena, uma amiga de infância. Ela ficou assustada com Kelek, mas gostava muito de Cipriano. O convidou para uma conversa particular. Cipriano levou Kelek porque ele não queria que tivesse segredos entre eles.
– Cipriano, hoje nós entramos para a vida adulta. Eu queria que soubesse que eu te amo. Aceite-me como sua mulher.
Helena abriu seu roupão mostrando seu corpo jovem em formação, os quadris curvilíneos, os seios firmes e suas coxas esculturais como colunas e seu arbusto de pelos negros. Cipriano gostava de Helena também e teve a reação que qualquer homem teria diante da nudez de uma mulher. Kelek nada disse, apenas observou curiosa. Saindo do templo, Apolônio, um rival de Cipriano, que trabalhava com os estranhos sacerdotes do Deus Cadáver, não gostou de ver Helena entregando-se a Cipriano. Ignorando a presença de Kelek, o empurrou com força.
– Saia daqui, Cipriano! Você ainda é criança! Helena deve ter um homem! Saia daqui e leve esse seu cachorro feio!
Kelek não gostou de ver seu mestre machucado. Colocou-se em pé, sobre suas pernas e esmurrou Apolônio, jogando-o longe, para o outro lado da rua. Helena, assustada ao ver Kelek sobre duas pernas, como humanos, saiu correndo. Cipriano olhou para a cena, mas não repreendeu Kelek.
– Venha, Kelek, nós temos que entrar no templo de Juventa. Eu quero ser homem.
Ambos entraram no templo, sem que os sacerdotes protestassem com a presença de Kelek. 
Diante da estátua de Juventa, Cipriano ofertou seu brinquedo mais querido, sua velha túnica e seu cabelo cortado e enfaixado com uma fita vermelha. Kelek observou em silêncio e com respeito. Assim que saíram, Kelek resolveu falar.
– Mestre é homem. Desde que nasceu, mestre é homem. Kelek não entende templo. Vazio. Mestre deve ofertar a alguém presente. Kelek gosta mestre. Pode ensinar a evocar Deus. Mestre ama Helena? Kelek tem mesma coisa que Helena. Kelek pode cortar pelo como mestre fez.
Usando suas garras, Kelek desbasta seu pêlo até restar uma cabeleira sobre sua cabeça e uma touceira entre suas pernas. Cipriano ruborizou ao ver Kelek, idêntica a uma garota.
– Kelek, se quer andar como humanos, deve usar uma segunda pele, como eu. Vamos, eu acho que podemos achar uma túnica feminina para você no templo de Juventa.
Andaram ao redor do templo de Juventa e encontraram, como se fosse uma benção da Deusa, uma toga feminina aos pés da estátua da Deusa. A toga milagrosamente serviu perfeitamente para Kelek. Cipriano ficou feliz em ver Kelek parecer mais humana, mas achou por bem não fazer pouco dela em dizer que aquele era um presente de Juventa.
Quando Cipriano chegou em casa com Kelek transformada a mãe dele, Leucótea, estranhou mas ficou feliz por Cipriano finalmente trazer uma garota para casa, para ser apresentada à família.
– Filho, quem é essa formosa dama?
– Mãe, essa é a Kelek!
– Nossa, como você mudou! Se você quiser, Kelek, eu tenho algumas túnicas que podem servir em você.
– Kelek gosta segunda pele. Kelek aceita oferta de senhora.
Tertuliano chegou vendo a cena inusitada na mesa de jantar, com sua esposa conversando com uma garota que ele nunca tinha visto antes e Cipriano.
– Ora, ora! Cipriano mal fez os votos no templo de Juventa e está trazendo sua namoradas para casa? Quem é a garota, Cipriano?
– Pai, essa é a Kelek!
– Entendo. Filho, você gosta de Kelek?
– Sim, meu pai.
– Kelek, você gosta de Cipriano?
– Kelek gosta muito de mestre.
– Nesse caso, eu lhes dou minha benção. Meu amor, precisamos combinar um dia para unir os dois diante de Juno. Cipriano e Kelek, sejam muito felizes juntos!
Cipriano acordou no dia seguinte, dolorido, mordido, arranhado. Na primeira vez sentiu medo, mas agora estava ficando acostumado e ele também começou a arranhar e morder Kelek. Ele percebeu algumas mudanças em seu corpo e em seu apetite. Enquanto Kelek ressoava, satisfeita, cabelos desgrenhados, arranhada, mordida e preenchida com a seiva de Cipriano, este desceu e foi preparar o café da manhã. Ambos ainda moravam com os pais de Cipriano, mas o jovem fez questão de fazer ele mesmo o desjejum e levar até a cama onde Kelek ainda dormia.
– Ei, dorminhoca! Bom dia! Acorde para tomar o café da manhã.
Com preguiça, Kelek ergue o corpo da cama, esfrega os olhos e vê uma mesa móvel com um prato com queijo, frutas, presunto, pães e vinho. Sorriu e foi se servindo, sem esquecer de deixar Cipriano se servir.
– Mestre alimenta Kelek. Mestre bom.
– Kelek, nós vamos viver juntos não como mestre e daemon, mas como homem e mulher. Então, por favor, pare de me chamar de mestre. Eu não sou seu dono. Nunca fui. Você me aceitou como seu parceiro e eu te aceitei como minha parceira. Nós somos iguais.
Kelek parou de comer, até engasgou-se e Cipriano custou a crer que a via ruborizar.
– Kelek tem medo. Mestre pode não gostar de Kelek. Kelek diferente de mestre. Kelek tem outra face que mestre não viu.
Um barulho e uma confusão na rua chamou a atenção do jovem casal. Era Apolônio, com um grupo de sacerdotes do Deus Cadáver, causando tumulto e briga com os vizinhos, tudo por causa de Cipriano e Kelek. Para os sacerdotes do Deus Cadáver, tudo que for diferente do que crêem ou diferente do que conceituam como Deus, eles dizem que é maligno. Cipriano era chamado de bruxo e amante do Diabo. Kelek era chamada de filha de Satan. Para defender seus pais e a sua casa, Cipriano desceu e enfrentou os agressores, homens fortes e armados, que não tiveram misericórdia ou compaixão, atacaram e feriram Cipriano.
A ferida não era muito profunda ou forte, mas o impacto fez com que Cipriano ficasse desacordado e sangrando. Kelek viu seu amado caindo no chão, desacordado. Ela então liberou toda sua fúria. Em instantes, aumentou de tamanho, seus pelos cobriram novamente seu corpo, chifres e garras apareceram. Muitos dos sacerdotes caíram feito moscas, suas vidas ceifadas de muitas formas, mas outros tinham um aparato que os deixava protegidos do ataque de Kelek e podiam atacá-la. O aparato era um artefato místico que havia sido consagrado pelas artes da Goecia, magia negra e apenas isto podia machucar Kelek. Os sacerdotes também não tiveram misericórdia ou compaixão, por Kelek, na verdade, tiveram muito prazer em atacá-la e machucá-la. Kelek também caiu ao chão e estava entregando sua vida aos Senhores do Orco quando Cipriano ressurgiu, avançou, desafiou e venceu os sacerdotes, quebrando os artefatos que carregavam.
– Kelek, eu vi sua outra face. Eu te acho linda em todas as suas faces. Agora que eu não sou mais humano, Kelek vai me aceitar como seu marido?
Kelek ficou constrangida. Ela não havia percebido o quanto Cipriano havia mudado. Ambos tinham dormido juntos, feito amor juntos, morderam-se, arranharam-se, lamberam o sangue um do outro. Cipriano nunca havia pertencido a mundo algum, agora ainda mais, pois tornara-se um ser que vivia no limiar entre humano e daemon.
– Kelek aceita Cipriano como marido.
Uma semana depois, celebraram a sua união, na entrada da mesma caverna onde se conheceram, abençoados por sacerdotes humanos e sobre-humanos. Naquele dia, todas as igrejas dos sacerdotes do Deus Cadáver ficaram em chamas e a região inteira ficou livre de tal praga.

quarta-feira, 19 de julho de 2017

Heterogênese XV

O homem deve vir a saber, o mais rápido possível, de que é um animal, como outro ser qualquer, bestial ou genial, na medida ou necessidade e de que a ruína que lhe cerca, é produto do seu esforço em possuir tudo sob seu controle.
Que isso seja feito não pela violência, método masculino, que só cresce enquanto houver cumplicidade. Mas pela sabedoria, realeza merecida e dignidade que, somente a mulher possui em si. Como brasa, esperando ser exposta, para acender a cabeça do homem onde, em algum lugar, aguarda o fogo negro da consciência, para reformular toda a humanidade, desta vez nutrida pela sabedoria divina da mulher.

Deles virá a nova geração, o filho é a união do homem e da mulher, não pode esquecer sua origem nem negar gratidão.
Crescerá, aprendendo e sendo apoiado por seus pais, consultando-os, para resolver os problemas que encontrar ao enfrentar o mundo. Não deve ser nem mais nem menos que isso. De nada adianta tomar outros comportamentos alheios e costumes fúteis, pois isto não lhe dará o respeito e a dignidade que deseja obter. Tudo vira em seu tempo, pela capacidade de responder aos atos e pela lógica de como usá-los corretamente. Divergir disto, não os torna diferentes, não os tornará adultos, não trará temor ou respeito dos pais ou dos seus amigos. Tenham tanta riqueza quanto quiserem, sejam tão bonitos quanto acharem necessário para impressionar seus pares fúteis, ajam violentamente, irresponsavelmente, infantilmente, achem quantas vezes quiserem que são muito importantes e muito poderosos. Logo a ilusão cairá, beleza não dura sempre e a vida é árdua; riqueza não se mantém diante do ócio; cedo ou tarde cairão vítimas da violência que distribuem; cairão do pedestal, ao descobrirem o quanto dependem dos pais e dos seus amigos, para que consiga suportar o fardo da vida. Terão que carregá-lo sozinhos, se não melhorarem seus hábitos, falecerão rapidamente, pois não terão preparo nem resistência para tanto. Quem quiser evitar isso, que aprenda de uma vez por todas: só se pode obter aquilo que se dá, não se pode cobrar por algo que não se tem. De respeito e o terão de volta, de amor e serão amados.

Quem não faz isto, pode até escapar impunemente, pode até não perceber que, no futuro, receberá de volta a conseqüência dos seus atos impensados, mas estarão condenando toda uma geração que será herdeira desta, a uma vida mais infeliz, mesquinha e medíocre que esta. Ora, se não é contra isso que os jovens lutam, então porque agem desta forma? Por que querem tão mal à vida dos outros, só porque não se encaixam no estilo de vida que impuseram como sendo jovem? Por que querem condenar seus filhos a viverem de uma forma tão baixa e miserável, pior que a dos jovens de hoje, inaceitável para os pais de hoje? Vivam intensamente, vivam futilmente e furtivamente, não haverá futuro, por sua causa.

Estão ocupados em admirar e aperfeiçoar a sua vaidade, fascinados demais por sua beleza e nada é mais importante que seu valoroso eu. Pensam, se ainda há cérebro, que estão, com comportamentos mais irascíveis que irreverentes, negando a antiga sociedade.
Mas não há cérebro, tanto na força bruta quanto na beleza fútil, é uma tolice achar que a sociedade jovem difere da sociedade adulta. Não são mais do que sociedades, com regras impostas, absurdas, repressivas, censoras. Recusam a pensar ou perceber de outra forma, que não a estipulada. Desprezam, humilham, marginalizam todo aquele que apenas quer seguir um caminho autônomo, todo aquele que possui uma mente, que tenha seus pensamentos, que vive experimentando com erros e acertos, que vive aprendendo sem nunca querer ensinar. Tal é o desperdício da vida de pessoas, que em muito poderiam ajudar a humanidade a compreender-se e a cair em si. Eles são, tão pensadores quanto artistas, de todo um mundo de sabedoria, que nunca virá a ser conhecido.

Homem, mulher ou filho não devem lutar entre si, mas sim cooperarem entre si. Tudo vira em seu tempo, segundo o mérito, nada do que for conquistado com violência permanece, pois terá que ser mantido à força. O uso indiscriminado de violência e força só conduz à destruição e à ruína. Nenhuma raça que se preza como inteligente pode desejar a autodestruição. A não ser que a humanidade tenha tomado como sendo essa sua meta maior e definitiva, que terminara em si, não sobrará vestígios, nem tão pouco a existência de tal raça mesquinha no futuro. É fácil perceber isso vendo que o que perdura é a arte e a ciência, com o passar dos séculos. Da violência, apenas o registro histórico, que só é possível por causa da existência de uma linguagem, de documentos de pessoas que usaram a mente, nunca as mãos. Sem o uso da mente, o uso das mãos é vazio.

Mas o homem prefere o uso das mãos, da força. Prefere, como animal, à superficialidade da Luz, da beleza, do poder e da riqueza. Para a Luz, seu fervor, embora tenha sido criado para raciocinar. Para a beleza, sua veneração, embora seu íntimo apodreça. Para o poder, sua obstinação, embora seus iguais morram. Para a riqueza, sua ilusão, embora o tempo ceifa igualmente ao pobre e ao rico.

terça-feira, 18 de julho de 2017

A capela do prazer

No intuito de esclarecer de vez tantas questões e, sobretudo, de encontrar a verdadeira origem de tudo, bem como de conhecer o zênite da humanidade, ou quem é o Senhor, ou Deus, eu tomei cinco mulheres, em um ritual único. Nós viemos a captar estas estranhas mensagens, cujo teor original não poderia ser reproduzido, do contrário todas essas paredes, com as quais a civilização humana constrói o mundo, os conceitos de realidade ou sobrenatural, as convicções racionais ou espirituais. Desfariam-se, como bolhas de sabão que são.

sexta-feira, 7 de julho de 2017

Apostolado profano IX

Nunca vou me esquecer do dia em que tudo foi ficando nebuloso aos poucos para mim. Estava até então muito contente e instalado na frágil balsa de náufrago que nos equipam antes de nos soltar pelo oceano imenso da vida. Meus portos, meus pais, deram-me as primeiras orientações, pude contar com eles em várias situações antes de tomar em mãos os remos e remar por mim, me fazer navegar ao gosto dos ventos da minha mente distorcida.

Mas não era assim no princípio. Era realmente um náufrago entre muitos, diria realmente esforçado em participar da imensa corrente em que me encontrava, seguindo as ondas que eram produzidas para mim de algum lugar, ignorava a origem e serventia, mas me ajudaram durante algum tempo, neste meu princípio. Até este momento, nosso oriente em comum era apontado para a direção de uma cruz, que tomei também como referência para mim porque não conhecia outra referência, outro farol que este que aquela corrente apontava, mesmo sem entender direito o porquê, aceitei e compreendi o que a cruz significava e porque toda aquela corrente de náufragos dirigia-se para ela. Eu concordei por enquanto, na minha inocência desse princípio de vida e acreditei que só existia essa direção, pois a corrente de tão imensa, não se via os limites e encontrava-me bem no meio dela, um tanto perdido e inocente, devo me perdoar por um princípio de vida tão crente e confiante na corrente que me cercava e na cruz, distante e calada, para a qual me ensinaram a me dirigir, na promessa do porto tão esperado e desejado, tranqüilo, seco e seguro, que havia onde a cruz estava cravada e para onde toda essa corrente, na qual eu nasci, se dirigia. Eu apenas seguia para não ser um náufrago da corrente de náufragos. Achava que dessa forma estava correto e estava no mínimo encaminhado para a salvação. Salvar-me de ser náufrago e solitário, nesse imenso oceano da vida.

Mas não estava seguro! Certamente que não! Haviam náufragos de balsas, náufragos com bóias ou até sem nada e náufragos com botes, barcos, iates, alguns tinham até transatlânticos! Meus pais, meu porto, numa certa data, jogaram minha balsa em meio a lanchas. Estes náufragos com lanchas ignoraram completamente minha condição, ignoraram até minha presença e sem piedade, passaram sobre minha balsa com suas lanchas, inúmeras e repetidas vezes. Lutei para me manter na balsa e dentro da corrente, lutei para que os náufragos com lanchas me notassem, lancei vários sinais, mas eles não queriam me compreender! Eu era apenas um mísero náufrago de balsa, inocente e desinformado. Eles trituraram minha pobre balsa com as hélices do desprezo, da discriminação, da ridicularização, da chacota, da marginalização, do isolamento, sem motivo, apenas porque eu tinha por balsa minha base para navegar pelo oceano imenso da vida.

Machucado, retalhado, abandonado, humilhado, sem saber nadar ou navegar sem minha balsa, deixei a superfície e comecei a afundar nas profundezas, a corrente e a superfície respirável foi ficando mais distante e mais impossível de se retornar. E por que iria? Não fui traído em minha confiança e crença na corrente e no fato de que todos pareciam seguir a cruz? Por que então me vitimaram, por que estou agora afogando na repulsa e na revolta? Minha dignidade foi seriamente dilacerada, junto com a crença e a confiança na corrente e na cruz. Eu afundava e ia observando como, apesar dos esforços, não se deslocavam do lugar, não mudavam as técnicas de navegação, não avançavam, não progrediam, continuavam os mesmos, apesar de seus esforços, que eram inúteis. Quanto mais afundava, mais eu percebia o quão miserável e mesquinha era essa corrente, o quão miserável eram sua crença e orientação e muito provavelmente, a mentira que era a cruz. Das profundezas não se vê a cruz. Se fosse tão importante seria vista. Se fosse tão forte, teria me salvo e punido os miseráveis que me condenaram a morrer afogado.

Mas a cruz, que já na superfície, era distante e calada, agora nem visível se fazia, passei a duvidar e criticar a cruz e a corrente que a seguia, assim como os estúpidos náufragos que se fazem de líderes da corrente, bem como seus filhos cretinos, que me assassinaram a lucidez. Mais rapidamente comecei a afundar, a pressão das águas começaram a se fazer presentes e sentidas. Rompi com meu porto, com a educação, com a crença, com tudo aquilo que eu tinha na superfície e comecei a me reestruturar. A pressão das águas começou a me triturar e esfacelar, já não me reconhecia, eu tinha certeza porém de que seria capaz de me adaptar conforme a profundeza que estivesse.
Mesmo aqui nas profundezas, encontrei muita coisa cheia de gás, o que fatalmente iria me levar de volta à superfície. Soube evitá-las e aprendi a me deslocar na profundidade, em busca das coisas nutritivas. De vez em quando, voltava a olhar para a superfície e via que continuavam no mesmo lugar. Às vezes eu estava adiante deles, às vezes atrás deles e às vezes logo abaixo deles. Aos poucos, nutrido com as coisas certas, fui me adaptando e me transformando até que as profundezas se tornaram meu lar. ainda respondia, por uma questão de honra a meu porto, meus pais, embora fosse mais raro e mais distante a troca de sinais. Eles se preocupavam comigo e quase não me entendiam mais e nem eu a eles.

Foi há pouco tempo, muitos outros já estiveram como eu na profundidade, hoje mesmo existem muitos aqui, embora estejam um pouco distantes de onde estou. Tomei conhecimento deles pelo produto que fabricam, muitos nutritivos, outros nem tanto, outros muito gasosos. Graças a este contato, não fico muito deprimido, nem me considerando o único da espécie. Graças a essa nutrição, tornou-se suportável minha situação, nas profundas águas da razão e do pensamento crítico, foi com a ajuda deles que várias vezes pude juntar aos poucos meus cacos e retomar a lucidez, agora uma lucidez de profundidade.
Minha vida nessas regiões abissais da reflexão tornou-se agradável e deliciosa. Realmente gostaria de agradecê-los e por isso também tento produzir coisas nutritivas para que um dia, alguém possa deliciar-se com elas. Foi quando descobri que não é tão bom alimentar-se desses suculentos produtos. É muito mais saboroso produzi-los e será o meu maior deleite quando alguém se aproveitar dos meus e satisfazer sua fome por esses refinados pratos.

Agora o que me agradou mesmo foi a minha descoberta mais recente. Estava em busca de mais alimento e a produzir minhas guloseimas quando uma sereia encontrou-me. Ou melhor, eu li sobre ela, que soube como me convencer, por métodos sutis, vir a conhecê-la, por isso digo que ela que me encontrou, não o inverso. Fascinado com a idéia de sua beleza e sabedoria, quis encontrá-la, para deixar minha vida nas profundezas ainda mais deliciosa. De tanto procurá-la, acabei achando também nereidas, tritões, serpentes marinhas, dragões abissais e demais criaturas das mais profundas profundezas. Não existe, a meu ver, um porto único para o qual se possa se dirigir, mas creio que posso encontrar ao menos um epicentro e de lá procurar a moradia dessa sereia e dizer o quanto a admiro e a amo.

Tão ocupado na busca, que nem me dei conta mais de quanto prazer tinha em comer e fazer coisas nutritivas, passou a ser algo natural e inerente à minha pessoa. Nem notei sobretudo, uma terceira e grande mutação durante a busca, fruto das novas produções e nutrições que fazia e consumia. Tanto, que me espantei quando uma belíssima nereida me chamou, interessada por mim, eu ignorava o porquê, afinal eu era (ou pensava ser) um náufrago.

-Como é teu nome, belo e jovem tritão?

-Não sou tritão, bela mulher-serpente-marinha, sou um náufrago, esses seres da superfície.

-Nessa profundeza, com essa aparência? Não estou entendendo tua piada, tritão.

-Eu não estou dizendo piada alguma...

-Veja, confuso tritão, tua imagem em meu espelho e diga-me se eu não digo a verdade...

Olhei e vi minhas orelhas como barbatanas de peixe. A barba que deixei crescer de tão ocupado na busca, mais parecia com algas pretas a balançar nas águas. Minhas mãos e pés mais pareciam com a de um anfíbio e não podia negar. Tinha uma bela, forte e longa cauda, desenvolvida aos poucos e certamente fundamental para me deslocar na profundidade. Não era mais um náufrago, era um tritão e nem percebi. Estava procurando o reino dos tritões e demais criaturas abissais para viver,tornar-me uma delas no futuro e já havia me tornado uma delas, sem que percebesse. A nereida, notando minha surpresa e desconhecimento sobre a minha condição sorriu, deu uma discreta risada, mas sem a intenção de magoar, mas pela comédia da situação, acreditou que eu dissera a verdade, quanto à de eu ter sido um náufrago.

Vi seus olhos brilharem com compaixão por mim, por ter me atrapalhado todo com meu novo aparato, como se nunca o tivesse usado, só por ter tomado conhecimento agora, como uma criança que de repente vê seus braços longos ao alcançar a puberdade. Perde-se toda a coordenação motora. Muito prestimosa, propôs-se a me ensinar a controlar conscientemente essa minha nova forma. Na companhia dela eu flui por vários recifes, escarpas, cavernas, planícies, montanhas, planaltos, depressões e abismos. A vida no oceano profundo é tão imensa, senão maior que a da superfície, mais rico, mais agradável. Trocamos muitas ideias, conversamos muito sobre tudo, sobre todas a s coisas. Sentia que ela começava a demonstrar certo orgulho e admiração por mim, e eu comecei a me apaixonar por ela.

Chegou um dia então, que ela teria de me apresentar ao restante do seu povo, aos seus pais e ao Soberano de toda a imensa profundeza desse oceano que é a vida. Receberam-me muito bem, eu já praticamente era parte deste povo admirável das profundezas abissais, tive tanta aceitação e amizade como nunca havia sonhado, mais do que recebi na superfície... Para facilitar minha vida e adaptação nessa nova família, rompi com meu próprio passado, a última coisa que me ligava à superfície, mudei meu nome e me apresentei como Siron, mais adequado para a transformação que se operou, transformando meu nome anterior. Minha amiga nereida fez então a minha apresentação ao Soberano desse incrível abismo, um dragão terrível, de sete cabeças e dez chifres, mais conhecido na superfície por Leviathan e à sua bela esposa, Nahema. Tomei coragem e lhe perguntei:

-Soberano Leviathan, pode dizer-me onde está tua bela e divina filha Lilith, Deusa da Lua Negra?


A nereida olhou-me apavorada e temerosa. O próprio Sobrerano olhou-me com surpresa e riu uma sonora gargalhada, junto com sua esposa.

-Deusa do quê? Ah, minha filha, que bom comediante trouxeste a nosso lar! Que mais sabe fazer esse jovem tritão?

Quem ficou chocado e embaraçado depois disso fui eu, mas não tenho muita culpa se estava mal informado.

-Como sabe sobre mim? Sobre meu nome? Com os diabos, quem és tu?

-Minha filha! Já nos disse. É Siron. Falamos muito e comentamos muito sobre ele e suas obras deliciosas. Ele é o escritor Siron. O próprio.

Agora sim  havia ficado completamente confuso, abobalhado e perdido.

-Mas claro! Ele... é Siron Kabet! Como pude me esquecer!

-Vós... Conhecem-me antes mesmo de me ter encontrado?

-Lemos suas obras. Simplesmente o melhor prato que pudemos nos deliciar, uma obra simplesmente suculenta.

-Oh, puxa! Nem sei o que dizer... Hã... Lilith...


-Por favor! Sem Deusa da Lua Negra, sim?

-De qualquer forma. Já sabe o quanto a amo, suponho...?

-Bem... Deixemos isso para depois...

Nem tinha ciência, mas tornei-me um mito na terra dos meus mitos, amigos, deuses-demônios, que nessa profundeza só nos resta tê-los como companheiros e orientadores. E eu era um mito para eles!

Mesmo que Lilith esteja casada com Samael, ela me dá muita atenção e carinhos especiais. Talvez essa informação de que Lilith é esposa de Samael esteja errada também. Não que a quero desposar, mas sim amar em toda a capacidade e consequência que todo amor leva (a cópula), sem a necessidade de um compromisso. Quando  você estiver meio à deriva e achar que viu um monstro marinho revirar as ondas e derrubar navios imensos, pode ter certeza que sou eu, me divertindo às custas da imbecilidade dos náufragos da superfície, a quem odeio e me devem muitas explicações, desculpas e justiça. Eles escolheram a pior forma de reconhecerem o erro. Eu os ajudo a submergir na própria culpa, como merecem.

Agora que tenho minhas convicções e certezas, firmados em sólidas bases e me tornei um tritão, com uma vaga possibilidade de ser amado por Lilith, posso me dar ao luxo de fazer essas incursões à superfície, com toda a potência das minhas mandíbulas críticas e estraçalhar aos pouquinhos esse mundo besta dos náufragos da superfície.

quinta-feira, 22 de junho de 2017

A obsessão de Saturno

Os vapores do vinus dissiparam-se e Saturno despertou do sono dos ébrios, sentindo um gosto ruim na boca e a cabeça latejando. Nós chamamos de ressaca e a associação dos efeitos posteriores do consumo excessivo de álcool com o movimento das marés não é coincidência. Povo do mundo, sabei de uma vez por todas que não existem coincidências, o acaso ocorre porque também faz parte do universo, da natureza.

Saturno percebeu que estava só e logo imaginou que seu irmão Urano deveria estar cortejando Gaia, sua esposa. Saturno, ao invés de correr atrás de Gaia, foi em busca de Ceres. Povo do mundo, que vive uma vida sem cor, sem sabor, sem alegria, vós nunca entendereis e manifestareis o real significado da palavra Amor! Vós que misturais agendas pessoais em vossos sensos hipócritas de moral, não tem competência para censurar os Deuses!

Enquanto Saturno procurava por Ceres pelo castelo, chamado de Olimpo, ele recordava-se de sua infância e que os poucos e raros momentos de paz, tranquilidade e conforto foram sempre os que ele passara ao lado de Ceres. Os caprichos do Destino e da Fortuna conduziram Saturno até o jardim onde Ceres estava tão entretida com suas bestas domesticadas que nem se deu conta do sumiço de Gaia. Dentre estas, certamente um casal de nossos ancestrais compartilhavam desse cativeiro dourado, mas mesmo assim nós não fomos notados e não podemos condenar Saturno.

- Saudações, Ceres, minha irmã.

- Pater Saturno, não são belos meus bichos?

- Hã…sim…adoráveis. Querida irmã, devia estar fazendo coisas melhores e maiores. Se vier comigo, tu será a Deusa Mãe, aquela que será reverenciada pelas gerações como a Deusa desse mundo.

- Pater Saturno, o que está me propondo é ousado, perigoso e traiçoeiro. E onde tua esposa Gaia entra nesse seu grande plano?

- Gaia não tem a vitalidade e a juventude para tal cargo. E não é segredo algum que Urano a queria e eu a ti. Então nós temos que acertar as coisas e fazer justiça.

- As coisas são como são, como devem ser. Nós aturamos o que nos desagrada, como diz Urano e, para ser sincera, eu não suporto a ele tanto quanto a ti. Vós, Deuses, meninos, são todos iguais, são apenas estorvos.

- Considere então como isso pode ser consertado se tu, Ceres, tomar o lugar de Antu.

- O que diz? Isso é mais que ousadia, é blasfêmia e heresia. Cuidado com o que deseja, Saturno.

- Pois aguarde meu retorno e te mostrarei que nós, meninos, não somos estorvos, nós temos nossos méritos.

Saturno partiu do Olimpo, deixando para trás Ceres, Urano e Gaia no luxo, rumo ao seu funeral, atravessando por perigosas escarpas entre trilhas, por montanhas desconhecidas. Ceres disse a verdade em sua reação juvenil, temperamental e imatura demais para se importar com tudo isso. Como num péssimo roteiro, Urano e Gaia ressurgem no jardim como se nada tivesse acontecido, para chamar Ceres para o jantar e ninguém lamentou a ausência ou a partida de Saturno. Este, seguindo as instruções de espíritos locais e o impulso da fúria de seu coração, chegou na entrada do santuário de Python e, com suas emoções confundidas com as lembranças da temível Ninmag e a desgraça de Urânia, o poderoso Saturno hesitou. De dentro do santuário surgiu a figura da Pithon, em corpo e altura, semelhante a Ninmag, mas suas cores eram verde, dourado e amarelo.

- Adiante-se! Apresente-se! Mostre-se amistoso e visite-nos em paz e conforto, pois somos o vosso igual.

- Eu perambulei pelas sombras deste mundo por muito tempo. Eu, Saturno, filho das estrelas, venho aqui para humildemente pedir à grande Pithon que me mostre a luz.

- Nobre Saturno, siga-nos e mostraremos o coração, a magia deste mundo.

A Pithon levou Saturno até a fenda sagrada onde, diz-se, o Espírito deste mundo habita e dali Ele sai, trazendo a vida. A visão terrível que Saturno viu foi semelhante à de Enki, pais matando filhos, filhos matando pais, mães devorando sua prole. Mas, ao contrário de Enki, isso não perturbou o coração de Saturno.

- Diga-me, Pithon, como faço para recuperar as relíquias de Anu?

- Mesmo diante da tragédia desejas prosseguir?

- Para viver sem sonhos e com medo é melhor morrer.

- Então não queres vir para a luz. Sonhos que se realizam são justos, os que não, são caprichos do orgulho cego.

- Então mata-me agora.

- Nós fazemos sacrifícios por dever sagrado, jamais por apetite ou vingança. Para ti, damos a rota para o teu destino. Tu terás de humilhar-se mais e pedir a ajuda daquele que mais odeia.

-Este é um enigma ou um jogo? Eu devo arriscar-me em um caminho perigoso e desconhecido contando com a ajuda de quem mais odeio?

- Este é o preço que deve pagar. Não temes a violência e a morte, mas teme este que odeia?

- Jamais! Aquele fedelho nunca foi uma ameaça, apenas uma irritação.

- Então nos traga teu maior desafeto, pois o destino dele está ligado ao teu.

Cada vez mais decidido, Saturno recoloca seu elmo, sobe em sua montaria e, dispensando até sua comitiva, parte sozinho até a região chamada de Anatólia, onde aquele que ele chamou uma vez de filho, Cronos, deve estar escondido em exílio. Povo do mundo, guardem este nome no coração, pois esta é uma das regiões sagradas que ocultam nossas origens.

Saturno não teve dificuldades para encontrar Cronos pois ele, como todos os Deuses das estrelas, estava construindo uma cidade para dar início à uma civilização. Povo do mundo, o nome dessa cidade era Troia. Lembrem-se de Roma, de Atenas, mas jamais se esqueçam de Tróia. Cronos não demorou para sair dos portões de sua cidade com sua armadura completa e espada em punho para enfrentar Saturno.

- Ora, ora. Enfim, aprendeste algo útil. Vamos, guarde essa faca antes que te cortes. Nós temos negócios a discutir.

sábado, 10 de junho de 2017

Heterogênese XIV

Essa é a crença do Homem: quanto mais posses, mais poder. O poder capacita, ao Homem, decidir e comandar milhões à miséria e à ruína, o que é necessário para manter sua riqueza. Que rico poderoso não sente prazer em ver de que forma, seres humanos, conformados e esforçados, dão parte de sua vida para trabalhar por eles, dando cada gota de sangue e suor de seu corpo?

Obviamente, é o trabalho alheio que traz a riqueza aos reis, então também dá o poder a eles. Contam com um amplo apoio do Império das Luzes, visto que precisam dos homens acreditando nesse Império de aparências, de filosofias superficiais; conformados com a vida que levam, como fosse natural e merecida. É desta forma que, o Estado em união com a Igreja, mantém o Homem encarcerado em deveres e tributos, limitando seus sonhos com mesquinharias, afundando sua condição de raça superior pensante no tríptico elementar: sobreviver, ser feliz e bem sucedido. Essa é a promessa da sociedade dominada pelo Estado, a felicidade pelo tamanho das posses, o sucesso pelo poder de influenciar os outros. A troca do Império das Luzes é, para aqueles que, tendo a riqueza e o poder, tenham compaixão e piedade dos infortunados e dêem algo de vez em quando, para aliviar as chagas destes, mas nunca algo de concreto para dar uma vida digna aos miseráveis ou acabar com a situação em que estão. Alimentam um dia, mas deixam esfomeados por um ano de gerações que, não tendo alternativa, irão começar a atentar contra a vida dos de sua espécie. O Estado, pressionado por estes eminentes senhores, começa a caçada, a praticar o assassinato institucionalizado.

As pessoas matam-se umas às outras, por justificativas mil, a serviço do Estado, da Igreja ou da Família. Não é mais do que a deflagração de uma guerra civil escamoteada pelo sistema das aparências, que devem ser mantidas. De outra forma a máscara cairá e será a ruína do Homem tal como se conhece usualmente, conhecimento idealizado e difundido pelo Estado, com a garantia dogmática do Império das Luzes. Infelizmente, isso perdurará enquanto o Homem se desconhecer e ignorar o que já repeti tantas vezes: tudo que nos recai é consequência direta dos nossos atos.

Por melhor companheira do homem que seja a mulher, esta também segue um caminho medíocre. Influenciada pelo sucesso do homem, a mulher lutará por igualdade, não apenas nas possibilidades de realizar o tríptico elementar do homem, mas muitas quererão passar por homens, imitando-o em todas as características.
Para não parecerem fracas, para resistirem diante da dominação do homem, para negar sua condição feminina. Por causa da castração, que a loucura do homem manda reprimir essa condição feminina, elas irão travestir-se e exigirão serem consideradas como homens, muitas matarão com a mesma estupidez do homem, para se garantir no poder. Não percebem que desta forma não são iguais aos homens, mas pior que eles.

A mulher já é igual ao homem, desde o dia do seu nascimento, mas que, por graça, é feminina. Deve ter seus próprios e sutis métodos de controle. Imita-se muito mal a nós, homens, essas mulheres. Pois odiando, primeiro por ser mulher, terá a tendência à autodestruição. Segundo, por odiar o homem enquanto gênero, como competidor,como gladiadores, onde só com a morte do adversário haverá vitória. Todos perdem nesse conflito, principalmente a mulher masculinizada, porque ela não estará se realizado, mas sim o homem e sua estrutura repressiva, contra a qual estaria lutando. Principalmente ela, porque não poderá voltar a ser mulher,ou virá sua queda, pois os homens mesquinhos só aceitam homens como eles no poder, só sendo como homem que poderá permanecer no trono.

Principalmente todos nós, homens das Trevas, que somos compreensivos e amistosos, que serviríamos à mulher com gosto, se ela conquistasse com seus métodos femininos, o poder. Nós teríamos nossas vidas ameaçadas, pela mulher masculinizada e pela feminista, que atacam a todo homem sem distinção, acabando por sacrificar pessoas humanas como elas, com direito a viver. Pessoas que, se escaparem da repressão dos homens mesquinhos no poder, certamente cairão na ridicularização e desprezo destas. Estas, por pensarem como homens mesquinhos, não aceitarão nada que seja diferente do que se decretou arbitrariamente, como sendo normal e aconselhável que todos tenham, para pertencer à sociedade. Principalmente se levarmos em conta que, tal sociedade, deveria ser formada por todos e cada um. Deveria estar, a sociedade, desta forma definida, quando na verdade é a imposição de um grupo para milhões poder tentar subsistir.

Deixem essa imitação fajuta de lado, mulheres, que nossos hábitos são muito baixos para vossa dignidade e nobreza. Considerem que existem muitos tipos de homens, até merecedores de vossa misericórdia. Tenham também seus tipos variados, não é vetado, mas que mantenham sua condição primeira. Não esqueçam que é da mulher o alimento que nutre a ciência, o poder e a existência do homem. Portanto, até o pior deles haverá de prestar contas ao princípio divino e sensacional de onde provém toda a existência. Princípio divino, para quem toda a vida serve, até a morte. Seja mulher, como nunca poderia ter sido imaginado, por que assim será dada ao homem sua consciência e vergonha dos seus abusos contra a vida e seus semelhantes. De quem mais, senão da mulher, que o homem renovado, se nutrirá a fim de prosseguir?

quarta-feira, 7 de junho de 2017

Apostolado profano VIII

Sabe porque tem tantas pessoas que rezam e pensam em Deus? Estão todas preocupadas com a salvação da alma. Sem dúvida, dedicar um dia de cada semana ou mesmo de um mês e ir a missa ou coisas do gênero são capazes, pela ingenuidade do sujeito, de deixar aliviada até as consciências mais culpadas. Até mesmo os sacerdotes e santos das religiões não escapam. Somos os “eternum pecatorum”, estamos compulsoriamente condenados por uma instrução dogmática.

A razão existencial de uma religião poderia estar baseada na premissa primeira da existência justamente do que querem combater e evitar? Sem o pecado não há culpa nem condenação, consequentemente não haveria tanta necessidade que a humanidade tem em afundar-se em religiões e cultos que expiem esse pecado que nem se tem mais conta ou memória (diria até mesmo culpabilidade).

Podemos até mesmo admitir que tenha existido esse tal deus, de qualquer que seja a religião, que fez em seguida o homem. Mas todo processo da existência da própria humanidade e até das instituições religiosas só se tornou possível graças a esse tal pecado. Tendo partido dele mesmo, resta-nos adivinhar por que esta criatura divina a cometeu, não outra e o que a levou a tal à revelia e desconhecimento de deus (tanto que o castigo é dado depois que se tomou conhecimento do fato, o que demonstra que este deus não é tanto assim onisciente e onipresente). É como se o Criador e a criatura fossem seres completamente distintos e distantes, o que não é muito racional ou lógico, quando encaramos a relação de deus com o homem, que dogmaticamente é tida como integradora, ambi- compensadora e ambi- referencial. Pelo que poderíamos admitir então, já que este deus não era tão poderosos e que o homem não era tão dependente e integrado a este deus, é que não só eram seres distintos, distantes e independentes entre si, eram completos estranhos numa relação onírica entre um ser de dotes supremos, se comparados aos do homem que era considerado o primeiro, e este homem dominado por este, por formas outras que não as sobrenaturais atribuíveis a este deus (o que se provou não o ser).

Como este pecado foi assim definido pelo julgamento deste deus contra um erro do homem, só percebido ao ter sido verificado o fato (como já foi considerado) como pode este homem tê-lo cometido sem ter noção de tal justiça e da pena que incorria em cometê-lo? Ele já tinha noção, sem dúvida e o que o levou a cometê-lo é porque sua noção pessoal assim decidiu, porque em sua própria consciência isso não era pecado, a princípio! Só assim pode ser compreendido tal fato, este deus não era tão poderoso nem tão senhor do homem. Este, apesar de ter sido criado pelo primeiro, já tinha uma consciência própria e anterior ao fato o que estranhamente é a negação do princípio dogmático que o homem conheceu a consciência após o fato, de que o homem era criatura deste deus e dele recebera as primeiras noções e a este deus deveria servir e seguir estas noções, assim como a consciência deste deus (ou sua justiça, a seu gosto). E que o princípio do pecado só se tornou real quando este deus puniu-o por julgamento deste, um ato que para o homem era natural e instintivo, causado e assumido por sua consciência pessoal e individual, distinta e desvinculada do seu Criador (o que, pela lógica, é impossível ou improvável, sem que levemos a considerar as causas e conseqüências necessárias a tal, como já o descrevemos). Este deus, sem dúvida, deve ter sido um ser e Senhor do homem, dono de uma consciência e de uma justiça que, por elas, condenou o homem. O homem, sem dúvida, acreditou ser este deus seu Criador porque assim lhe ensinaram mas apesar disso já tinha noções e consciências próprias e desvinculadas do seu Senhor que o era então, apenas fisicamente, não espiritualmente como querem os dogmas e as religiões. Não existe qualquer outra consideração a ser feita a respeito que possa ter mais razão e lógica que esta, embora sendo antidogmática e contrária a idéia que se subentende numa relação entre deus e homem, que por hora se requereu tão necessária ao passar dos anos e da evolução dessa mesma humanidade sem a qual teríamos sérios problemas existenciais.

Mas creio que já amadurecemos bastante e já está na hora de renegar este passado e consciência estranha à nossa condição e realidade. Pois, retomando a questão, não somos culpados de pecado algum nem somos tanto assim servos deste ser que se nomeou deus e que pela ideologia dele (não a nossa) nos culpamos e cumprimos uma pena por uma justiça baseada nessa ideologia alienígena, estranha e imposta ao homem.
Tomamos o fruto e erramos para ele, mas para nós não foi erro senão nem teríamos feito. Foi um ato natural e até consciente de nossa parte, não existe outra explicação, sendo assim, dessas considerações só resta mesmo as conclusões já alinhadas, mais nenhuma outra. Só como última consideração devemos por conseqüência a essas conclusões, não mais dever satisfações aos sacerdotes, representantes desta estranha justiça e ser megalômano assim como desprezar seus cultos, conselhos e moralismos já que estão baseados em falsos dogmas de um falso deus, de uma falsa religião.

É lógico, portanto, que não me incomodo, com o que as pessoas iludidas por esta fantasia de salvação da alma fazem ou dizem, preocupo-me mais com o que diretamente me diz respeito, que me atinge e pode prejudicar minha vida e meu futuro. Vencer os obstáculos que colocam para o avanço pessoal, que são inúmeros e multiplicam-se na mesma ordem e potência de nossas capacidades de raciocinar com lógica, porque num mundo construído sobre uma base tão irreal, a razão pesa e corrói com sua criticidade.E logo todo o castelo cai, pois se pode, com a mesma facilidade que aqui desmascaramos este deus, elucidar demais questões e fatos (fenômenos) que ocorrem na sociedade que, ao olhar e pensar críticos, não são mais sólidos que este deus. E de fato, podemos dizer que isso é possível por ser tudo isso parte de um todo de referências, valores e normas que podemos chamar de Império das Luzes, pois nossa sociedade baseia-se na religião, na idéia de deus e na idéia de Luz como uma coisa só, uma idéia básica e simplista, superficial e aparente que, justamente por ser apenas uma frágil película de conceitos absurdos, não suportariam o pensar crítico, cujo olhar penetrante revolve os argumentos e os testa à exaustão e logo os vence. Para todo o sistema sobreviver é preciso evitar a reflexão, a meditação, o discernimento e a crítica mais profunda, são esses que realmente destoem sem piedade esse sistema de aparências, não a rebeldia tola e descabida, que só fortalece o sistema e o alimenta de um ar de modernidade e mudança falsos, pois as condições básicas e revoltantes de sua existência permanecem e permanecerão sempre, enquanto os reais críticos puderem estar sob vigilância e isolados dos demais, sem possibilidades de divulgar seu pensamento ou participar, com a capacidade e poderes reais que deveriam ter, se esse sistema fosse realmente uma sociedade (sistema da união de pessoas com acordos mútuos e participação aberta a todos os associados).O que não é difícil ver que na realidade o sentido que se encontra na sociedade que se pratica é outro e revoltante: um grupo de poucos determinando as ações, comportamentos e até as consciências de bilhões.

É dessa forma que a religião pode ajudar na sociedade. Ambas têm seus princípios e razões de existência baseadas no domínio do individual e do geral, do particular ao público, tudo se encontra dessa forma e com base nesses princípios e razões, determinados e controlados.
Posso ir muito mais longe e ser muito mais abrangente se o quiser, por hora, me deixa muito alegre, com essa pequena semente nas consciências, que será desenvolvida e tomará forma conforme os gostos dos senhores, por enquanto leitores, mas participantes no futuro.