segunda-feira, 25 de junho de 2018

Cíntia

Apenas um exemplo do que se esconde atrás dos olhos de cada pessoa. Enquanto lastimamos nossa sorte desdita, quantos não gostariam de tê-la?

Quando eu a conheci, também estava entretido, criando os meus próprios obstáculos que me separavam da vitória. Pouco me importei, quando outros me contaram sobre a perda dos pais. Até me irritei com que insistência lembravam-me dos problemas surgidos do julgamento da herança e outros revezes legais. Foi quando soube dela, a parte que poucos confessariam.

Ela teve que se criar sozinha, agüentar as cobranças, entregue ao destino, ainda que este pertença a quem o providência. Sua delicada linha da vida foi modificada brutalmente.
Certa tarde, percebeu a estranha presença que a saudou, prostrado:

-Encontrei-a tão só e de vida tão vazia, que aqui me faço presente. Para dar-te este algo, que a tantos falta e a muitos incita. Saberá com exatidão, os segredos das almas, a razão de suas dores e o que lhes impedem de serem felizes. Para que isso se realize, deverei cingir-te, assim poderei me encasular e fenecer em teu ventre.

Da mesma forma que apareceu, foi-se, deixando-a prenhe. Algo que é imperdoável: uma moça, mãe-solteira. Nove meses, duplo sofrimento: a censura da sociedade e o desenvolvimento do feto.

No momento certo, entregou aos doutores o fruto dessa estranha união. Embora clinicamente não se saiba o resultado, não foi levado em consideração, seja o que fosse, estava morto.

Conforme ela narrava suas chagas, sentia minha própria carne sendo dilacerada e eu, envergonhado pelo orgulho de pretender em ser o coitado.

Um filho tem sempre uma mãe, mas nem sempre a mãe tem o filho. Bastariam nove meses, uma barriga inchada e um trabalho de parto, para que uma mulher possa se considerar mãe?

Os registros foram apagados, os médicos os ocultam. Mas como explicar aqueles seios protuberantes à espera de uma boca de um infante para amamentarem? Eles estão lá, em riste, acusadores. A dona deles não viu o filho, não terá a alegria de vê-lo crescer e juntamente compartilhar as tristezas.

Uma mãe sofre pelo e por causa de um filho. Nós devemos invejar a sorte ou afugentar o azar? Ela então sofre, por ter sido frustrada a oportunidade de padecer. Afinal, só se conhece o que se vivencia; se não se conhece, não há o que temer; se já se conhece, menos ainda, pois já se sabe as consequências.

Do filho, pouco se pode dizer, sendo seu próprio pai e carrasco, agora pouca diferença este drama faz, as sensações não mais o seduzem. Este sim, eu invejo. Ele escolheu a forma mais doce de encontrar seu fim, iniciando um começo. Ele voltou para onde nós nunca deveríamos ter saído.

O que me atraiu neste mundo a fim de desejar ter nascido, é algo do que não me lembro. Mas aos meus irmãos, que ainda não nasceram e aos que isto desejam, fica o alerta. Ao menos ele pode escolher sua mãe, esta sim, criatura ativa, não o trapo de gente a quem eu fui entregue. Se eu tivesse mãe assim, talvez não seria tão frustrado, nasceria sexualmente satisfeito...

Dissecação.

Sol Negro: consciência atordoante, vontade em estado absoluto.
Separando-se a irradiação da luminosidade, vem a Névoa Obscura e a Aura Soturna.
Névoa Obscura: plenitude da dúvida, incerteza dos valores, consciência imersa.
Aura Soturna: assombro da certeza, conceitos que são confirmados, consciência estabilizada.
Da sombria soma, cria-se o Coração Abissal, que se fragmenta nas Águas Turvas, no Cristal Fosco, na Flor Definhante e no Fruto Letal.
Coração Abissal: desejo em profusão, o amor nefando, a razão de nosso ser.
Águas Turvas: sentidos embriagados, a noção da realidade alcança novas perspectivas.
Cristal Fosco: desilusão contundente, a fragilidade das crenças se desmancha ao colidir com a crueldade da existência.
Flor Definhante: mórbida beleza, as aparências enganam, sem sua casca superficial, o belo é mais horrível.
Fruto Letal: degustação sangrenta, a sedução do lado obscuro leva-nos a querer experimentá-lo.
Quão maravilhoso é, o Grão da Sina, que tudo começa em cada pessoa. Ele foi semeado em todo inconformado e que bom solo tem no desolado. Em todos os desdenhados pelo semeador de trigo, vem a se alojar, arremessado pelo tornado da fatalidade, provocado pelo giro da roda do destino.
Quão orgulhoso eu sou, por senti-lo enraizar e crescer este gérmen da morte embrionária, a morte sempre nascente,a morte renovada. Que cresce e toma conta de cada um que se conscientiza que somos todos mortos-vivos. Nós vivemos, pra cada vez mais, morrer.
Então, nada mais justo que conhecer as Trevas e desejá-las ardentemente, pois é nelas nosso Reino, lar e família de fato.

Celebração

-De tantos que me rodeavam, foi o único que veio.

- Você convidou quantos?

-O suficiente para que ao menos um viesse.

-Não te negaria coisa alguma. Cíntia, é nesta vida o que Lilith é na eterna.

-Não conheço tua Deusa, mas se Ela me conhecesse, tiraria este fatídico encargo em que me vejo empossada.

-Ignora a importância do seu destino a todos quantos se simpatizaram nesta obra?

-Ignoro. Como todos, estou aprendendo conforme sofro.

-Trouxe-me para amenizar tal sofrimento?

-Seria tentador compartilhar a dor para minorá-la. Não sou carrasca. Esta é a regra das religiões, para exaltarem o sacrifício e justificarem sua rigidez.

-Ainda assim, eu estou disposto a me oferecer ao suplício.

-As ofertas que me deste já me agradaram o suficiente... Pedi a tua presença para celebrar este fenômeno que nos reuniu.

-Então comemoremos, pelo resto do mês, ao natimorto, que se gerou em ti e nos deu o Grão da Sina. Sem ele, não teríamos aflorado e frutificado na Árvore da Morte. Nós não teríamos conhecido Coração Abissal, por intermédio de quem conquistamos o Sol Negro.

-Não sei se podemos denominá-lo. Eu nunca soube quem era, de onde veio e por qual arte adentrou-se em mim, fez-se como feto e de mim, seu ataúde. Se, ao menos, ele tivesse dito o porque escolheu a mim!

-Não lastimes. O que tem é maior do que teve Maria de Nazaré. Quantas mulheres podem dizer serem mães de seus amantes? Aquele que te tomou como homem e se tornou seu filho, silencioso, diz muito mais que Cristo.

-Bem que eu queria que ele pudesse falar. Se vivesse, ele poderia colocar as coisas em seus devidos lugares. Haveria alguma agonia, mas logo agradeceriam a ele por acabar com as religiões e todo o tipo de crendice, ilusão e fantasia, às quais a mente pobre se vicia, para suportar a existência.

-Se eu preciso acreditar em algo, eu acredito em mim mesmo. Só confiando em minha capacidade é que seria possível melhorar.

-Isso é bom, mas nunca o suficiente.

-No que me excede, além da competência, eu confio meu destino a ti, Cíntia. Mas caso tenha alma, esta pertence a Lilith.

-Depois de tanto tempo juntos, com tantas conversas, esclarecimentos...ainda crê em algo místico e confia no gênero humano? Que desapontamento...

-Eu sei que não sou um bom companheiro. Mas, considere...crê na tua história, como creio e conto, aceitando-a como escrevo. Então aceita tudo que tenho falado, feito e escrito, pois jamais lhe faltaria com a verdade. Tu és meu conforto neste mundo dominado pelo Império das Luzes.

-Então, apóstolo de Cíntia, estaria disposto a fazer o meu evangelho?

-Já não o faço?

-Eu tenho mais detalhes a te ensinar. Você terá que fazer uma iniciação rigorosa... Penetre em mim... Mas, por favor, não suma...

-Eu tentarei ficar na superfície... Mas eu enviarei a minha sonda ao seu mais profundo mistério...

Fogo Negro

Em meu autoconsumo, vou me questionando: de onde vim, como fui formado, que engenheiro me construiu, que arquiteto me planejou?

Eu não tenho uma face paterna em quem me escorar, nem um seio materno em quem me nutrir. Como todo órfão, eu fui me auto-instruindo e estabeleci minha personalidade com meus próprios esforços.

Ainda que se pese as dificuldades: aparentes desgostos e fiascos, um certo ciúme e inveja das criaturas que, em sua vida frenética e curta, tiveram tudo que eu não tive. Mas mesmo assim, eles são ingênuos.

Eu posso me considerar correto e em meus princípios, prevaleci. Entre certezas e dúvidas, amadureci. Já não desejava a vida exuberante, cheia de desejos e prazeres.

Ainda que tivesse a palavra limitada, a consciência e a ideia pulsava, eu tentava encontrar uma definição. Tentativas espúrias, o tempo apagou. Num lance ousado, apaguei meu eu, anulei todo conceito e personalidade, uma vez que vinham igualmente da falsa imagem que nosso delírio onírico considera ser vida.

Se o sonho do real se divide pela sensação, então pela dor se pode despertar. A dor extremada aniquila o corpo físico, mas já que não vivemos em absoluto, sonhamos, então a morte é o despertar total.

O incrível aconteceu: a consciência permaneceu, apenas pereceu a roupagem carnal. Eis que meu eu se propagou, uma vez que não fui gerado, não há como me exterminar, não haveria como me despertar. Contrariado, furioso comigo, numa autocomiseração em que me cria maldito, procurei meu espaço em um tempo infindável.

Em cada tentativa de despertar, apenas um outro sonho se sucedia, apenas um novo uniforme portava. Nesta rota, encontrei tantos outros que caminhavam como eu, mas estes tinham um destino, um Paraíso, um Pai celestial. Alguns eu segui, o suficiente, para ver um enorme engodo. Em minha presença, o Paraíso era enfadonho e o Pai não assumia a paternidade, por desconfiança, não me agradavam. Os neguei e minha andança, eu continuei.

Insólito foi encontrar criaturas que vinham a mim ou que me seguiam, com respeito e reverência, procurando algo que eu não tinha. Entretanto, comovido, compartilhei meus pensamentos. Não demorou muito e nos formamos em uma comunidade, com um espírito comum, mas sem um centro. Foi com esse espírito em conjunto que eu encontrei a ternura, então, talvez para isso nasci. Neste corpo está meu criador e somente nele poderei despertar. Eu dei permissão para ser absorvido, por minha vontade, me consumi e então o corpo teve um coração. O Supremo Espírito das Trevas adquiriu consciência própria e por ela me pus a pulsar. Desta forma, encontrei meu lugar e me despertei por completo. Estava sempre em mim a solução do enigma: eu sou o que quiser ser, o que sempre fui, sem necessidade de sê-lo. Eu sou o Fogo Negro.

Final

Eu não existo, ainda que sinta e tenha lembranças, são tudo ilusões. Eu tento justificar todo este sonho, seja com trabalho, seja com conhecimento. Mesmo que os meus esforços são em vão, todo esse conhecimento tornou-se mais um fardo do que uma fonte de prazer. Eu já devia saber que toda teoria não é muito boa na prática.

O poder vem daquilo que se faz na vida, não do que se sabe, mas não se consegue usar. A única coisa útil nesta vida, é o instinto.

Para poupar-me de maiores erros, eu devo esquecer meu nome, a primeira herança deste mundo, dada pelos meus pais postiços. Em seguida, renegar toda e qualquer ciência que venha a ter adquirido, por imposições, necessidades ou preferências pessoais.

Como poderia confiar em tal conhecimento, sendo que foi produzido por pessoas que, como eu, estavam delirando?
Aprofundando-me mais, aniquilando minhas memórias, reais, factuais, fantasiadas. Todas são enganosas, uma vez que elas são influenciadas pelas sensações e emoções. Uma vez que o corpo não existe, o que sinto é falso; uma vez que a mente é um vácuo que, por razões ignoradas sonha, as lembranças são parte dessa loucura que condicionam e bloqueiam a minha verdadeira existência.

Todos os valores que eu recebi, ensinados ou assimilados, são apenas uma tentativa para adequar meu ser a este mundo. Eu tentava imitar outros delírios, pois mesmo as virtudes, bem como os vícios, são como este mundo: falsos e superficiais.

Inclusive aquelas idéias que me são mais queridas, de fato não existem, pois elas são produto de uma mente ociosa. Elas são compensações criadas pela mente, por sua inadequação a esse mundo das luzes. Por mais que eu queira muito, por si, não existem.

Então, do que me importa:

Se não tenho namorada, pois o amor não existe, fosse tão importante não seria tão prostituído.

Se não há Governo, pois o Estado não existe, uma vez que a cidadania, quando não é irresponsável, é indiferente ou negligente.

Se não há família, já que o homem se une mais por medo da solidão que por laços afetivos.

Se não há Pátria, um pedaço de terra não é mais que pó nos olhos, onde se mora é a mente, não há fronteiras nem posses.

Se não falo, todo discurso é monótono, principalmente se a língua é traiçoeira, quanto mais se fala, maior a necessidade de se provar a si que existe.

Se não serei lido, pois não há espaço a tal obra que desperta, em um mercado editorial que visa ampliar a ilusão, tanto de quem compra quanto de quem vende.


Tudo é uma ilusão que, como tal, depende da imagem, que depende da luz. Então, está na hora de parar de sonhar com as Trevas. Como já estou lá, basta permitir ser envolvido e encontrar a realização plena.


Embrace the Nothingness.

quinta-feira, 14 de junho de 2018

Décima primeira revelação

Bem sabeis também, 
que muitos se vos apresentam 
como Meus representantes em vosso meio, 
como se já não vos tivesse alertado sobre estes! 

Mais ainda: vos manifestei claramente 
a única forma pela qual realmente vós devíeis 
honrar e cultuar a Mim, o Senhor, Eu! 

Portanto, deixai todas essas tolices, 
por mais difícil que vos seja livrar-vos desse entulho, 
dessa casca que vós mesmos vos pusestes a carregar, 
a criar, a vos tolher a felicidade e o prazer. 

Já vos dei tudo: inteligência, os meios intelectuais; 
as coisas, os meios materiais; 
os desejos, os meios espirituais. 

Portanto, vivam e desfrutem ao máximo, 
no tempo que vos cabe existir, 
vos preocupeis apenas com as coisas próprias da vossa natureza. 
Porque o demais, no momento adequado, 
vós tereis plenas condições e habilidades para transpô-lo. 

segunda-feira, 21 de maio de 2018

Décima revelação

Dei-vos a inteligência, 
bem como vos confiei este planeta para que, 
da natureza donde vos criei, 
pudésseis fazer vossa raça se desenvolver 
e com isso, honrar Meu projeto por tal obra. 

Dei-vos animais grandes e fortes, 
somente para que vissem que não há poder maior que o da razão. 
Mas também vos dei animais pequenos e fracos, 
somente para que vissem que 
mesmo o maior soberano não está livre da finitude da vida.
Entretanto, vos assoberbastes com vossas vitórias, 
esquecendo a quem devia o mérito 
e impérios inteiros sumiram, 
com a ação de um simples grão de vida. 

Mas ainda assim vos agarreis 
às vossas pífias autoridades e efêmeras riquezas. 
Não há autoridade sem quem lhe faça as honras! 
Não há riqueza sem quem lhe a produza! 

Na medida que extrais da natureza vosso conforto, 
a proteja e a reponha, pois toda matéria prima tem sua quota! 
Na medida que contratais servos para vossa empresa, 
os supra de previsões e os tenha por sócios, 
pois toda produção tem seu desgaste! 

Não vos parece óbvio o que vos digo? 
Vós viveis em contendas, guerras e comoções, 
simplesmente porque ainda buscam a felicidade individual, 
quanto a isso já vos dei algo a considerar. 
Bem também já vos avisei
do que vem a ser eternidade 
e de onde vós achareis o Paraíso! 

sábado, 14 de abril de 2018

Muito barulho por pouca coisa

Greg está com medo. Ele está entrando em um tribunal e está para sentar-se ao lado de um juiz, como réu de um caso. Seu pai está ao seu lado, sério, muito sério, sua face está pesada e fechada. Ele tinha visto seu pai bravo antes, mas agora parece ser mais grave. Isto o deixava com mais medo e apreensão. O que vão fazer com ele?
O tribunal por si é um cenário aterrorizante. Sombrio, lúgubre. Um ar pesado, sério e sisudo. Nos corredores, as cortinas parecem mortalhas, as paredes são cobertas de painéis de madeira mostrando a terrível ação da justiça. A estátua da justiça é uma mulher vendada com uma espada na mão. Os policiais que estão no corredor o olham com um olhar frio, agudo, como se lançassem adagas pelos olhos. Greg tem que se segurar para não borrar as calças.
A sala de audiências é enorme. Um teto enorme que parece tocar o céu. Das alturas ciclópicas pendem espectros de candelabros, cujas pontas parecem apontar para seu coração. Em bancos muito parecidos com o que ele via na igreja, pessoas sentadas parecem esquadrinhá-lo, ele pode sentir o bisturi dissecando-o. Na sua frente, um juiz o espera do alto de sua mesa, um senhor que em circunstancias mais amenas poderia passar por seu tio ou avô, mas ali a face do juiz está mais para um verdugo.
Um servidor da corte se aproxima, dá algumas instruções para ele e para seu pai. Greg tenta entender, mas o medo não deixa. Ele apenas acena. O servidor o acompanha até a cadeira dos réus que mais parece um cadafalso da forca. O servidor ajeita a cadeira para seu tamanho e o microfone para sua altura. Então o meirinho lê a ata da sessão.
– Moranis e Kelvin contra Kappa. Acusação de abuso sexual. Réu e vítimas são inimputáveis. Moção. Recurso aceito. Réu tem idade maior que as vítimas. Apelação. Réu e vitimas estão em idade abaixo da idade penal. Contestação. Reclamantes alegam que o réu tem consciência de seus atos e aproveitou-se da inocência das vítimas. Sessão está aberta.
– Bom dia sr Kappa. O sr sabe por que está aqui?
– Sim, meu pai me explicou. Os meus pais e os pais de Ness acham que eu fiz algo ruim. Mas nós não fizemos nada errado.
– Este tribunal irá decidir, sr Kappa. Quantos anos tem?
– Nove anos, sr juiz.
– Quantos anos tem sua irmã e amiga?
– A Ness tem oito e Matt tem sete.
– Matt é a srta Kelvin ou a srta Moranis? Quem delas é sua irmã? Por que seu sobrenome é diferente?
– Matt é da família Kelvin, a Ness é da família Moranis. Meu sobrenome é diferente porque meu pai, casou de novo e ele tem a minha guarda. Matt é minha irmã por parte de mãe, a outra mãe, não a minha madrasta.
– Para que possamos entender sr Kappa, qual é seu vínculo com a srta Moranis?
– Ness é minha prima. Nós praticamente crescemos e fomos criados juntos. Quem bagunçou tudo foram os nossos pais.
– Entendo seu lado, sr Kappa, mas é o sr quem está em julgamento. Pode contar a esta corte os fatos do acontecimento?
– Eu, Ness e Matt sempre brincamos juntos. Sempre. Brincamos de tudo. Policia e bandido. Castelo e dragão. Bombeiro. Escolinha. Ninguém nunca criou problema com isso. Nós gostamos de brincar de imitar o trabalho dos adultos. Não sei por que fizeram tanto caso por que brincamos de médico.
– O sr tem ideia ou noção de que é impróprio fazer estas coisas?
– Por que, sr juiz? Os adultos vivem fazendo isso. Com diversas pessoas, nem sempre com quem vivem.
– Porque, sr Kappa, o sr é uma criança e não sabe o que fez.
– Desculpe sr juiz, mas como o sr pode afirmar que eu ou Ness ou Matt sabemos o que fizemos? Como esta corte afirma que eu sou incapaz de saber o que eu fiz mas acha que eu sou capaz de responder pelo que eu fiz?
– Aham. Sr Kappa, o sr afirma que é consciente de seus atos?
– Sim, eu sou.
– Então, por favor, preencha este teste.
Greg preenche o teste e devolve ao juiz, que entrega ao psicólogo para avaliar e depois o teste é anexado aos autos.
– Que conste em ata que o sr Kappa é considerado capaz e consciente. Esta sessão prosseguirá para que seja qualificado e tipificado o abuso.
– Sr juiz, a promotoria gostaria de chamar a srta Moranis.
– Srta Moranis, por favor, sente no banco das testemunhas.
– Bom dia sr juiz, bom dia sr promotor.
– Srta Moranis, bom dia. Para que conste nos autos, a srta sabe a diferença entre verdade e mentira?
– Sim, sr juiz. Melhor que muito adulto aqui presente.
– Aham. Srta Moranis, esta é uma sessão de julgamento, não um fórum de debate. Pode declarar aos jurados qual sua relação com o sr Kappa?
– Ele é meu melhor amigo. Nós somos primos, mas crescemos juntos, fomos criados juntos.
– Pode relatar aos jurados os fatos dos acontecimentos?
– Claro, sr juiz. Eu fui à casa de Greg como sempre fiz. Matt estava lá. Nós começamos a brincar. Eu e Matt nos escondíamos de Greg então começamos a conversar sobre ele. A ideia meio que veio na hora. Nós duas dissemos a Greg que queríamos brincar de médico. Ele seria o doutor, nós seríamos ora a enfermeira, ora a paciente. Greg estava examinando Matt quando nossos pais estragaram tudo. Agora nós estamos aqui desperdiçando o tempo desta corte com pouca coisa.
– Então o sr Kappa não abusou da srta?
– Não, sr juiz, o mais certo é que eu e Matt abusamos de Greg. Ele faz tudo que nós pedimos. Eu acho que é porque ele é apaixonado por nós.
– Srta Moranis, os jurados precisam saber se houve ato sexual ou não entre a srta e o sr Kappa.
– Precisam? Por quê? Não tem vidas afetivas satisfatórias? Sim, eu transei com Greg. Eu não tenho vergonha de admitir isso.
– Srta Moranis, a srta não acha impróprio fazer essas coisas na sua idade? A srta tem noção do que fez?
– Se eu acho impróprio? Claro que não. Impróprio é adulto usar seu cargo para roubar dinheiro público. Eu tenho total noção do que fiz. E eu desafio qualquer um a provar que não.
– Aham. Srta Moranis, por favor, preencha este teste.
Ness preenche o teste com desinteresse, em pouco tempo. O juiz dá uma olhada e passa para o psicólogo. O psicólogo também demonstra surpresa. O teste é anexado aos autos depois da avaliação.
– Que conste em ata que a srta Moranis alcançou um QI de 200. Esta corte reconhece que a srta Moranis é consciente e capaz de responder pelos seus atos. A minha decisão é que não houve abuso entre o sr Kappa e a srta Moranis. Esta sessão prosseguirá para ouvir a srta Kelvin.
– A defensoria chama a srta Kelvin para depor.
– Srta Kelvin, por favor sente no banco das testemunhas.
– Bom dia sr juiz, bom dia sres. advogados e membros do júri.
– Srta Kelvin, bom dia. Para que conste nos autos, a srta sabe a diferença entre verdade e mentira?
– Oh, sim, sr juiz. Meus pais e meus professores me ensinaram bem.
– Pode declarar aos jurados qual sua relação com o sr Kappa?
– Greg é meu irmão, embora de mãe diferente. Nós temos o mesmo pai. Papai tinha um relacionamento com mamãe quando estava casado com a sra Kappa. Quando eu nasci, papai se divorciou. Greg tinha dois anos. Eu acabei ficando com o novo sobrenome da família de papai.
– A srta pode nos relatar os fatos do acontecimento?
– Sim, eu posso. Eu fui para a casa de Greg, porque papai gosta de visitá-lo. Ness chegou pouco depois, para nossa alegria. Ela mora perto e nós sempre brincamos juntos. Ness é a minha melhor amiga e nós conversamos sobre tudo. Eu e Ness gostamos de falar de Greg e do quanto gostamos dele. Falamos coisas que gente grande acha proibida ou inconveniente. Eu não vejo o porquê. Nós somos gente como todo mundo aqui. A ideia veio do nada. Eu sei que Ness esteve na cama com Greg. Eu queria perder meu selinho. Greg é o único menino que eu conheço e confio. Eu sabia que ele me amava. Então porque não? Eu queria. Mas nossos pais estragaram tudo.
– Aham. Eu compreendo sua frustração, srta Kelvin, mas a srta ainda tem muito tempo para... hã… perder seu selo. Então o sr Kappa não abusou da srta?
– Não, sr juiz, como a Ness disse, o mais provável é que nós nos aproveitamos de Greg.
– A srta não acha impróprio fazer essas coisas na sua idade?
– Não, por que acharia? Eu duvido que qualquer um nesta corte, na nossa idade, não pensou, não desejou, não quis e não fez isso, de um jeito ou outro.
– Aham. Srta Kelvin, atenha-se ao caso. Esta corte não é um lugar de debate.
– Mas deveria, se querem causar ou inventar problema onde não existe.
– Aham. Srta Kelvin, a srta então afirma que tem noção e consciência do que fez e é capaz de consentir?
– Sim e, por favor sr juiz, passe aqui o teste para que eu prove isso.
Matt preenche o teste com desinteresse, em pouco tempo. O juiz dá uma olhada e passa para o psicólogo. O psicólogo também demonstra surpresa. O teste é anexado aos autos depois da avaliação.
– Que conste em ata que a srta Kelvin alcançou um QI de 180. Esta corte reconhece que a srta Kelvin é consciente e capaz de responder pelos seus atos. A minha decisão é que não houve abuso entre o sr Kappa e a srta Kelvin. Esta sessão prosseguirá para as considerações finais.
– A corte inicia o encerramento da presente sessão. Os jurados chegaram a uma sentença?
– Sim, sr juiz.
– Leia para esta corte.
– Por decisão unânime os jurados aqui presentes e representados por mim, o presidente dos jurados, decidimos que o sr Kappa não cometeu abuso sexual contra as srtas. Moranis e Kelvin. Esta decisão encerra igualmente os demais processos movidos pelos queixantes.
– A promotoria deseja apelar?
– Não, sr juiz. Este caso deve ser resolvido entre os queixantes e seus descendentes.
– A defensoria deseja entrar com um pedido de indenização?
– Não, sr juiz, a sentença é satisfatória para dirimir quaisquer futuras ocorrências. Mas o sr Kappa gostaria de se dirigir a esta corte.
– Esta corte cede ao pedido do sr Kappa, mas por favor, seja breve.
– Eu sei que vocês olham para nós e veem crianças. Nós somos gente como vocês. Vocês foram como nós um dia. A diferença entre nós é de época e educação. Mas nós não temos culpa se vocês tiveram infâncias infelizes. Nós não temos culpa se vocês aceitaram viver debaixo de uma opressão e repressão sexual. Nós não temos culpa se vocês aceitaram viver debaixo da tirania, da ditadura da Igreja. Vocês tem sérios problemas, recalques, frustrações. Vocês se acham adultos mas tem uma mentalidade parada no século passado. Mas isso não dá a vocês o direito de se intrometer nas nossas vidas e na nossa felicidade. Nós temos total e plena consciência do que fazemos. Nós não nos metemos em suas vidas complicadas, não se intrometam em nossas vidas felizes.
O juiz bate o martelo, os jurados são dispensados, os autos são arquivados, a plateia presente se dissipa, os advogados continuam com outros casos e as famílias retomam suas vidas. Naquela tarde, depois de uma boa conversa franca, aberta e sincera, os pais de Gregg, Ness e Matt conseguiram acertar as coisas. Naquela noite, Matt e Ness puderam perder seu selinho com Greg e todos viveram felizes para sempre.

PS: hoje existe uma verdadeira cruzada. O mundo contemporâneo tem uma cruzada para chamar de sua. Mistura de paranóia, histeria e pânico moral. Potencializado pelo conservadorismo, puritanismo e fundamentalismo cristão. A humanidade passou por muitos momentos semelhantes. As Cruzadas, a Inquisição, o Holocausto, o Macartismo. Existe a homofobia e o preconceito contra as religiões de matriz africana. Mas a pauta dos costumes, principalmente os que visam reprimir e oprimir a sexualidade humana estão dominando.
Esse texto é uma heresia, em nossa atual sociedade que ainda acredita que a criança e o adolescente são inocentes, ingênuos e assexuados.

terça-feira, 10 de abril de 2018

Nona revelação

A questão da realização desta felicidade é muito subjetiva 
e muda de pessoa a pessoa. 
A felicidade é o êxtase do egoísmo. 

Ainda assim, existem certos consensos 
e saibam que a felicidade só poderá ser atingida 
quando for uma realização compartilhada por toda a comunidade. 

Necessário é, inclusive, 
de abrir mão de coisas ou situações 
que possam vos gerar felicidade pessoal, 
pois isso se provou ser ilusório e efêmero. 

Vós tendes o direito, 
conforme vossas capacidades e empreitadas, 
conforme a habilidade e a ousadia no empreendimento. 
É justo que queirais prêmios grandes. 

Mas não vos esqueçais 
que o sucesso de toda obra 
depende da colaboração e do serviço de muitos, 
menos habilitados, menos capacitados. 

Compartilhai, então, vossa fortuna, 
na medida que estes merecem. 
Ainda assim, uma parte invista neles, para que cresçam. 
Com justiça na partilha, não há contestação nem crime! 

Tendes um estranho prisma 
para separar as coisas que existem e vossos atos. 
Eu tudo vos criei para que a vida pudesse desfrutar, 
pois só na carne que se sente é que vos poderia ensinar. 
Entretanto, recusais da minha ceia, 
por um torpe e duvidoso sentido de virtude e moral! 

segunda-feira, 19 de março de 2018

Passando pela ponte

Havia um mau homem em terras de Além Douro, a quem a justiça encarniçadamente perseguia por vários crimes e que sempre escapava, como conhecedor que era dos esconderijos proporcionados pela natureza. Apertado, porém, muito de perto, embrenhou-se um dia no sertão e, transviado, achou-se de repente à borda de uma ribeira torrencial, em sítio alpestre e medonho, pelo alcantilado dos penedos e pelo fragor das águas que ali se despenhavam em furiosa catadupa. Apelou o malvado para o Anjo-Mau e tanto foi invocá-lo que o Diabo lhe apareceu. ‘Faz-me transpor o abismo e dou-te a minha alma’, disse-lhe. O Diabo aceitou o pacto e lançou uma ponte sobre a torrente. O réprobo passou e seguiu sem olhar para trás como lhe fora exigido, mas pouco depois sentiu grande estrépito, como de muitas pedras que se derrocavam, e ninguém mais ouviu falar da improvisada ponte.[wikipedia]

- Dizem que se alguém passar por esta ponte vai parar em outro mundo.

- Besteira! Superstição! Crendice! Daqui dá pra ver nitidamente o outro lado. Eu não vejo coisa alguma diferente.

- Então eu te desafio a passar comigo na ponte no próximo solstício.

- Bah! Eu não vou perder meu tempo.

- Aha! Eu sabia! Você tem medo!

- Eu? Medo? De que?

- Então combinado. Eu te espero aqui no próximo solstício.

Pedro e Paulo foram para casa. Pedro contava os dias para o solstício. Se achava tão inteligente, tão certo de que apenas a ciência tinha as respostas, mas não encontrava nenhuma para as coisas que aconteciam na ponte. Paulo conversou bastante com sua mãe e pai naquela noite, contando que iria partir, que iria passar pela ponte e ver o que havia além da vila. Seus pais choraram bastante, fizeram a comida preferida de Paulo, arrumou uma mala para a viagem.

Passadas as semanas, Pedro e Paulo se encontram na entrada da ponte, ´nas ultimas horas do solstício, com a lua cheia despontando ao leste. Paulo, previdente, trouxe a bagagem que seus pais deram a ele. Pedro, teimoso, veio apenas com a roupa do corpo e a cara amarrada.

- Para que você trouxe essa bagagem toda? Você vai ver como não tem coisa alguma do outro lado, nada vai acontecer.

- Mesmo se nada acontecer, eu estou preparado para acampar. Não é seguro andar sozinho de noite.

Pedro andava cambaleante a cada passo que dava em direção ao fim da ponte, enquanto Paulo andava confiante de que estava preparado. Ha poucos passos de completar a travessia, um forte vento, a lua mudou de cheia para minguante e as estrelas mudaram de lugar. Não é muito, mas foi o suficiente para fazer Pedro mijar nas calças.

- V-viu como não a-aconteceu n-nada?

Do nada, voando acima de suas cabeças, passa voando um dragão. Logo depois, uma amazona montada em um unicórnio tentava jogar uma lança no dragão.

quarta-feira, 14 de março de 2018

Oitava revelação

Já há os que se obcecam em ajuntar tesouros e bens, 
pois tudo isso gera satisfação,
também autoridade e influência 
na vida social e política do vosso país. Também são insensatos! 

O custo de vossa riqueza terá de ser pago em breve, 
toda a expropriação e exploração exageradas geram miséria, 
que gera a criminalidade, que gera a violência. 
De nada vos adiantará vossas posses, riquezas e bens. 

Mesmo o trono mais poderoso e afortunado sofre, 
porque lhe faltou o único e verdadeiro tesouro: as pessoas! 

Experimenteis dormir com um saco de dinheiro 
e com alguém amado. 
Não tereis mais paz e sono proveitoso 
tendo braços ao redor de vós, ao invés de cifrões? 

Experimenteis tomar vossos artefatos, 
com os quais constituis crédito na praça, 
tenteis compartilhar suas dúvidas e opiniões. 
A seguir, tenteis o mesmo, 
com quem vos promove tais riquezas, 
vossos servos, ou mesmo um miserável. 

Não tereis mais respostas e contrastes 
para vos aprimorar na arte de viver? 
Experimenteis, ao invés de fazerdes leis mais duras, 
ao invés de aumentar vossos mercenários que vos protegem: 
dar um pão (comida), dar um livro (educação), 
dar uma coberta (habitação), dar um linimento (atendimento médico), 
enfim, de dar às vossas posses um senso de responsabilidade social. 

Vereis que até o vosso mais empedernido adversário 
se torna no vosso mais terno companheiro! 
De nada vos adianta a busca da felicidade, 
enquanto esta for isolada!