domingo, 13 de outubro de 2024

A viagem de Ruben

Crônicas de Furland.

Todos os personagens são fictícios, maiores de idade e zoomórficos.

A editora me convida para uma reunião para discutir. Ruben e Lorena olham para mim com olhos de filhotinho assim que eu entro na sala de reunião.

- Mestre Norris, nós te chamamos porque estamos preocupados com as possíveis reações no mundo humano com o texto sobre a família Robinson. Especialmente por causa da relação entre os cidadãos aqui presentes.

- Claro, senhor editor. Mas exatamente qual parte da relação quer saber?

(pigarreando) - O senhor confirma que Ruben é tio de Lorena?

- Quer que eu explique, ou prefere falar em sua defesa, Ruben? Lorena?

- Eu falo. Eu sou o mais velho. Nós, Robinson, temos uma árvore familiar... digamos... complicada. Muitos casamentos, divórcios, novos casamentos. Arranjos de casamento triplo, cercas puladas e muitas relações fora do padrão que os humanos estão acostumados. Então eu sou tio de Lorena, mas não em primeiro grau. Eu sou apenas cinco anos mais velho do que a Lorena.

- Acabou de falar, velhinho? (risada) Quando Ruben disse que ia viajar, eu fiquei animada. Ele estava indo a viagem de negócios em um arquipélago. Um país ao leste de Furland. Similar ao Japão no mundo humano. Eu pedi para que ele trouxesse algumas coisas de lá para mim.

- Entendo. Poderia dizer que coisas queria trazer desse país?

- Poderia, mas é melhor não. O senhor editor não está preocupado com a reação no mundo humano?

(pigarreando) - Eu agradeço a discrição da senhorita. Então, Ruben, como foi a viagem?

- Foi cansativa. Mais de doze horas de voo, baldeação e troca de aeronave.

- Mas eu espero que o senhor tenha aterrissado em segurança e tenha ficado bem.

- Eu fui direto ao hotel reservado pela empresa. Pedi um lanche, bebi algumas garrafinhas e apaguei. Só acordei no dia seguinte. Que, pelo fuso horário, estava dois dias à frente da matriz.

- Deve ter tido muitas reuniões tediosas e relatórios a preencher.

- A maior parte dos compromissos não foram divertidos, se é o que quer dizer.

- Lamento saber. Mas o senhor teve um momento de diversão ?

- Certamente. Eu e os demais da firma fomos convidados a participar de um happy hour no final das reuniões.

- Beberam?

- Certamente. Também fomos em restaurantes para degustar a comida local. Então nos levaram em um centro cultural.

- Oh, que elegante!

- Os leitores humanos podem ficar escandalizados. Nós fomos ver mulheres fazendo uma dança erótica em uniforme de colegial.

(pigarreando) - Mas era todas maiores, certo?

(encarando) - Senhor editor, sendo homem, depois de beber, ao ver mulheres dançando com roupas curtas em uma dança sensual, o senhor, ao ser convidado para ir ao quarto, perguntaria a idade da beldade?

(pigarreando) - Eu não estou em questão aqui, senhor Ruben.

- Mas deveria, senhor editor. O leitor também. Essa hipocrisia e falso moralismo tem que acabar. Basta observar a natureza.

- A natureza, senhor Ruben?

- Sim. Todos os animais sabem quando a fêmea entra no cio. Nenhum animal faz avanço sexual fora da época. Nenhum animal "come" fruto verde. Nenhum animal instituiu um padrão absurdo que nada tem de racional, normal, natural, biológico, científico ou anatômico. Todos os seres nascem com sexualidade e amadurecem. Todos os seres expressam sua sexualidade livremente. Só o humano fica amarrado a um sistema cheio de repressão, opressão e frustração sexual.

(pigarreando) - Senhor Ruben, nós não somos animais.

- Fale por si mesmo, senhor editor. Todos em Furland são seres zoomórficos. Os humanos acham que são melhores que os animais. Eu não sei em quê. Como sua espécie pode acreditar que apenas a heterossexualidade é natural? Como sua espécie pode acreditar que tem apenas dois gêneros?

(pigarreando) - Isso não está em questão aqui, senhor Ruben.

- Mas deveria, senhor editor. O leitor também. Acredita mesmo que existe um único padrão etário para que um indivíduo alcance a consciência e a capaciadde de consentir? Quem, por qual padrão, pode decidir quem, quando e onde pode começar a ter consciência de seu corpo, sua sexualidade e como expressar, conhecer e experimentar essa sexualidade?

(nervoso, suando frio) - Por favor, senhor Ruben!

- Eu sei. Eu entendo. Humanos adultos frustrados e recalcados confundem a livre capacidade de um indivíduo em expressar sua sexualidade com violência sexual. Vocês estão mirando errado. A repressão e opressão sexual, que são impostas no mundo humano, são as verdadeiras causas da violência física e sexual. Quando todos os indivíduos puderem desenvolver, aprender e expressar sua sexualidade, toda violência física e sexual irá acabar. Mas isso só será possível quando o humano superar o capitalismo, o patriarcado e o machismo.

- A revolução sexual precederá a revolução social, política e econômica.

- Quando o humano tiver alcançado seu desenvolvimento, será o fim da divisão por classes... e gêneros.

- Será o fim das fronteiras, das segregações e das intolerâncias.

- Nenhum humano será desqualificado por sua origem, língua, crença (ou descrença), opinião política, preferência (ou orientação) sexual ou até mesmo... idade.

(nervoso, suando frio) - Entendo. Essa é a razão das Crônicas de Furland. Com suavidade, desafiando e questionando as normas e proibições da atual sociedade.

(dando um tapinha nas costas do editor) - Ânimo. Em breve o senhor também poderá apreciar o mesmo espetáculo que eu assisti. Em breve o senhor também poderá assumir todos os seus relacionamentos.

Idéias, sugestões e críticas? Eu estou ouvindo. Ou lendo. Você entendeu.

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