sábado, 27 de abril de 2024

O reino oculto dos Maias

Autor: Tom Clynes.

Os dois arqueólogos, ambos exploradores da National Geographic, tinham passado, em conjunto, várias décadas a trabalhar nas selvas da América Central. O calor e a humidade sufocantes, bem como os encontros com animais selvagens mortíferos e salteadores armados, eram uma componente intrínseca da descoberta dos tesouros deixados pelos antigos maias, cuja civilização floresceu durante milhares de anos e depois desapareceu misteriosamente sob a floresta densa.

Por isso, pareceu-lhes uma ironia – quase uma injustiça – que a sua maior descoberta ocorresse quando os dois estavam debruçados sobre o computador num gabinete com ar condicionado em Nova Orleães. Enquanto o seu colega assistia, Marcello Canuto, da Universidade Tulane, abriu a imagem aérea de um segmento de floresta na região setentrional da Guatemala. No início, o ecrã mostrava apenas a copa das árvores. Só que esta imagem fora obtida por meio de uma tecnologia denominada LiDAR (acrónimo de “light detection and ranging”). Os dispositivos de LiDAR instalados numa aeronavedisparam milhares de milhões de descargas de laser sobre o solo e, em seguida, medem as que são reflectidas de volta. A pequena fracção dos impulsos que penetram na folhagem fornece nuvens de dados suficientes para compor uma imagem do solo da floresta.

Com uns quantos toques no teclado, Marcello removeu a vegetação e revelou uma imagem tridimensional do solo. Longe de centros urbanos, pensava-se que a região que estavam a inspeccionar se mantivera maioritariamente desabitada, mesmo no auge da civilização maia, há mais de 1.100 anos.

De repente, porém, aquilo que até então pareciam vulgares colinas fora afinal esculpido pela construção de albufeiras artificiais, socalcos agrícolas e canais de irrigação. Aquilo que pareciam ser pequenas montanhas eram grandes pirâmides, coroadas por edifícios cerimoniais. Povoados que, até então, os arqueólogos tinham definido como capitais regionais eram, afinal, meros subúrbios de cidades pré-colombianas muito maiores, cuja existência ninguém conhecia, unidas entre si por auto-estradas elevadas e calcetadas.

Segundo Thomas Garrison, parceiro do projecto de Marcello Canuto, “acho que estávamos a sentir algo semelhante ao que os astrónomos sentiram quando olharam através do Telescópio Hubble e viram todos os espaços vazios subitamente cheios de estrelas e galáxias. Quando removemos as árvores, havia marcas humanas por toda a parte.”

A utilização da tecnologia LiDAR está a revolucionar a arqueologia maia, não só por conduzir os investigadores a sítios arqueológicos promissores, mas também por proporcionar um quadro completo da paisagem antiga. As dezenas de levantamentos realizados com tecnologia LiDAR, incluindo o projecto inovador de 2018 apresentado em Nova Orleães e financiado pela Fundação Guatemalteca para o Património Cultural e Natural dos Maias (Pacunam), vieram alterar ideias há muito enraizadas de que esta civilização prosperara numa das regiões menos hospitaleiras da Terra.

“É quase impossível exagerar a importância da tecnologia LiDAR para a arqueologia maia”, diz o arqueólogo guatemalteco Edwin Román-Ramírez. “Será sempre preciso fazer escavações para compreendermos o povo que construiu estas estruturas, mas esta tecnologia mostra-nos com exactidão onde e como escavar.”

As imagens de LiDAR deitam abaixo a ideia de que as terras baixas dos maias eram uma paisagem escassamente povoada, salpicada por um punhado de cidades estado autónomas e dispersas.

Cada novo levantamento feito com esta tecnologia torna cada vez mais clara a noção de queos maias eram uma civilização interligada de escala e complexidade notáveis. No fundo, constituíram uma megalópole maia, com milhões de agricultores, combatentes e construtores de infra-estruturas, mais extraordinária do que alguém poderia alguma vez ter imaginado. Esta revelação tem o poder não só de reescrever o passado da região, mas também de reformular radicalmente o seu futuro.

Para a Guatemala, país economicamente empobrecido, mas rico em tesouros culturais e ecológicos, estas descobertas proporcionam possibilidades excitantes: muitos dos novos sítios arqueológicos podem transformar-se em peças centrais de uma indústria cultural e ecoturística capaz de ajudar o país a superar a pobreza de forma sustentável. No entanto, para Francisco Estrada-Belli, Edwin Román-Ramírez e outros arqueólogos e conservacionistas guatemaltecos, estas imagens de alta tecnologia vieram também pôr a descoberto uma evolução mais inquietante, que pode inviabilizar por completo esses planos: as reveladoras marcas de salteadores, madeireiros ilegais, acumuladores de terras e narcotraficantes que estão a montar o cerco à segunda maior área de floresta tropical remanescente das Américas. Há muito em jogo e os guatemaltecos temem ser derrotados na sua corrida para proteger as paisagens e os tesouros que poderiam esclarecer melhor tudo o que os antigos maias têm para nos ensinar.

Grande parte do património cultural mais importante do país encontra-se protegido dentro da Reserva da Biosfera Maia, um vasto conjunto de parques nacionais, reservas de vida selvagem e concessões florestais onde os habitantes obtêm madeira e outros produtos florestais. Abrangendo cerca de um quinto do território da Guatemala, esta reserva é habitada por jaguares e araras-escarlate, além de centenas de outras espécies de aves, borboletas, répteis e mamíferos.

Em contraste com outros berços de civilização mais áridos, como o Egipto e a Mesopotâmia, as florestas húmidas da América Central raramente têm revelado com facilidade os seus tesouros enterrados. Em meados do século XIX, o escritor norte-americano John Lloyd Stephens e o seu colega e artista britânico Frederick Catherwood exploraram algumas das cidades abandonadas dos maias, na península mexicana do Iucatão. As suas descrições e desenhos de pirâmides e palácios cobertos pela selva atraíram outros investigadores, mas, após décadas de escavações, os arqueólogos só conseguiram abrir algumas pequenas janelas para o mundo maia.

“Consegue imaginar quantas pessoas se deslocavam por este caminho para justificar os recursos investidos na construção de algo assim?”, pergunta Richard. Segundo a datação por carbono e as análises ao pólen e aos solos, o sítio começou a ser ocupado em 2600 a.C. No seu apogeu, entre 300 e 100 a.C., El Mirador poderá ter sido uma das maiores cidades do continente.

A razão que teria conduzido à sua escolha permanece um mistério, uma vez que não dispunha de um abastecimento de água constante ao longo do ano. No entanto, o ambiente não é favorável às sociedades humanas em nenhum ponto das terras baixas do território maia. Os escassos nutrientes disponíveis no solo são regularmente arrastados por chuvas torrenciais, muitas vezes seguidos por secas devastadoras.

Segundo a investigação de Richard Hansen, o crescimento demográfico de El Mirador foi possibilitado pela remoção de lamas férteis dos pântanos das terras baixas, seguida da sua transferência para socalcos abertos nas encostas das colinas. Os agricultores aumentaram o pH do solo, acrescentando-lhe calcário e obtendo assim safras abundantes de milho, abóbora, feijão, pimento e algodão.

Numa região assolada por precipitação ora escassa ora excessiva, o fluxo de água era meticulosamente controlado através de canais, barragens, albufeiras, cisternas e socalcos agrícolas – uma infra-estrutura que está agora a ser posta a descoberto. “Não era possível alimentar tantas pessoas como os antigos maias alimentavam praticando o tipo de agricultura de queimada actualmente utilizado nesta região do planeta”, afirma Marcello Canuto, especialista em modelação da densidade demográfica. De acordo com os seus cálculos, 10 a 15 milhões de habitantes viviam no reino dos maias aquando do seu apogeu, incluindo muitas comunidades em zonas pantanosas consideradas inabitáveis.

Para construir a alta pirâmide de El Mirador, com 72 metros, conhecida como La Danta, exércitos de operários utilizaram percutores e lâminas de obsidiana para cortarem e perfurarem o calcário, separando em seguida os blocos de pedra. Richard e os seus colegas de investigação reproduziram o processo, utilizando ferramentas descobertas nas pedreiras do sítio arqueológico como modelos. Os operários construíram padiolas de madeira para transportar blocos com cerca de 400 quilogramas. “Dispondo de um número suficiente de homens e de meios para alimentá-los, um rei conseguiria concluir a obra no seu tempo de vida”, propõe o arqueólogo.

As imagens recolhidas pelo LiDAR, com o seu rigor tridimensional, tornaram mais fácil imaginar a paisagem dos antigos – as encostas das colinas em socalcos, as estradas largas e as praças espaçosas, os palácios, as oficinas e as torres de vigia. Tudo isto reforça outra pergunta: por que razão abandonaram os maias estas comunidades que funcionavam tão bem? Por agora, ainda não há uma resposta clara. Um padrão turbulento de colapso, reconstrução e ressurgimento seguiu-se a uma série de secas graves, entre meados e finais do século IX, que provavelmente destruíram as colheitas agrícolas em toda a região. Segundo Julie Hoggarth, da Universidade Baylor, que investiga os efeitos da seca sobre a agricultura e saúde dos maias, é provável que o crescimento demográfico e a abertura de clareiras contribuíssem para a degradação ambiental. “A agravar tudo isto, os reis maias eram vistos como intermediários divinos dos deuses”, diz. “Portanto é fácil imaginar que a sua legitimidade terá sido abalada se não conseguissem trazer as chuvas e que a população devastasse as cidades com violência.”

Por volta de finais do século IX, os maias começaram a abandonar os seus povoados. Pararam de construir monumentos e começaram a destruí-los propositadamente. A violência e a guerra parecem ter estado entre os factores que conduziram ao inevitável colapso da sociedade.

Certa tarde, pouco antes do pôr-do-Sol, subo ao cume de El Tigre. Uma floresta ininterrupta estende-se em todas as direcções, pontuada por elevações na paisagem – ruínas engolidas pela selva que, um dia, poderão ser escavadas e preservadas, ou saqueadas e perdidas.

Acompanhado pelas vocalizações dos macacos-uivadores, desço a pé a uma antiga pedreira perto do complexo de pirâmides e palácios de Mirador. No meio da escuridão que cai, um bloco solitário de pedra cortada jaz sobre o solo, parcialmente coberto por raízes, trepadeiras e escombros. A estrutura que o bloco se destinava a integrar, fosse qual ela fosse, permanece incompleta – juntamente com o nosso conhecimento desta sociedade que, no seu tempo, alcançou níveis de sofisticação sem igual. Há ainda muito por descobrir – sobretudo quando mudamos a perspectiva que temos do mundo.

Fonte, citado parcialmente: https://www.nationalgeographic.pt/historia/reino-oculto-maias_4924 

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