sábado, 5 de agosto de 2023

Dia da Pachamama

Está escurecendo no pátio da casita Intiwatana, e os galhos das cajazeiras, como teias de aranha, prendem a lua quase cheia por alguns momentos. Aqui no Nordeste, meus vizinhos, nascidos e criados no campo, querem me convencer de que é verão, contradizendo o que aprendi na escola. Para dizer a verdade, entendo suas razões: as estações aqui são diluídas pelo calor tropical. Por estarmos próximos à linha do Equador, os dias e as noites são praticamente iguais e a temperatura é quase constante. Há apenas dois períodos anuais distintos: chuva e seca.

Quem está lendo este texto certamente sabe disso, mas assim quero destacar algo relevante. Tem a ver com os ciclos da paisagem em que vivemos. Você sabe em que estação do ano está? Sabe a fase da lua? Quando os ipês amarelos florescem em sua região? É normal não saber. Isso se deve ao fato de vivermos em uma sociedade em que o reconhecimento dos ciclos é muito raro, talvez desnecessário. O domínio gradual, mas exponencial, das variações na paisagem fez com que, especialmente nas cidades, dispensássemos esse tipo de conhecimento. A luz artificial elimina as sombras da noite, os condicionadores de ar e ventiladores eliminam o calor, e há muitas maneiras de forçar o ritmo natural em nosso próprio benefício.

Nasci em um país com inverno, aquele em que realmente faz frio, uma noite com 3 graus negativos. Foi em uma pequena cidade no sul da nossa América Latina, na Argentina. Para chegar lá, basta seguir com o dedo a espinha dorsal desse continente, descendo o mapa. Estou falando da Cordilheira dos Andes. Elas são uma espécie de costura que mantém firmes nossos territórios unidos, que os irmana. Quando falamos sobre isso, lembro aos meus amigos no Brasil que os limites geográficos são puramente arbitrários; que o Brasil é tão andino quanto qualquer outro de nossos irmãos sul-americanos.

As montanhas estão logo após as fronteiras criadas entre guerras e negociações de homens ricos. Se imaginássemos apagá-las por um momento, indo para o oeste, subindo pouco a pouco, chegaríamos aos picos nevados, aos vales íngremes e ao condor que vigia a paisagem do céu. Todas as suas encostas, riachos e rios convergem para se unir nessa metáfora coletiva da vida que chamamos de Rio Amazonas.

Nas altas montanhas andinas do Peru, há muitos anos, conheci um povo nativo. Sua nação é chamada Q'eros, que em quíchua significa "vasilha". Eles ainda vivem da agricultura (plantam batatas, a única cultura que cresce a mais de 4.000 metros acima do nível do mar), da pecuária (cuidam de alpacas, lhamas e algumas ovelhas e cavalos), são artesãos (artistas têxteis seria um título que lhes faria mais justiça) e mantêm uma tradição mística milenar: sacerdotes e curandeiros. Sua cultura sobreviveu à destruição da colonização, de acordo com suas histórias, graças ao poder dos espíritos das montanhas, os Apus.

Como todos os camponeses, eles estão profundamente enraizados em sua paisagem. Especialmente por causa das duras condições de vida nas altas montanhas. A compreensão dos ciclos não é apenas poética e filosófica, mas também absolutamente necessária para sua sobrevivência. Os ritmos naturais, como uma linguagem, são aprendidos por mulheres e homens desde a infância. Eles plantam na época certa, protegem seus animais, colhem suas batatas e celebram seus deuses para mantê-los com suas bênçãos.

Esse diálogo com a paisagem ocorre em todos os momentos, sentindo com o corpo, compartilhando com a comunidade e celebrando o início e o fim dos ciclos, lembrando-se deles. Esses rituais enraízam a comunidade no ritmo natural, fundamentam-na e fazem com que ela cumpra sua parte para que o diálogo nunca termine. Há um entendimento fundamentalmente diferente do nosso: eles fazem parte de uma rede de vida que engloba tudo o que é conhecido. Essa rede é animada por forças maiores que as humanas, mais poderosas e mais sábias. Elas permanecem como filhas e filhos, aguardando sua proteção, inspiração e bênção.

Um dia, eu estava sentado ao lado de uma velha camponesa, Nicolasa, olhando silenciosamente para o horizonte enquanto esperávamos que suas alpacas descessem da colina. Ela pegou cuidadosamente três folhas de coca, a planta sagrada dos Andes, fez uma oração em seu idioma que eu não entendia e as soprou, para que se unissem ao vento, voando. Perguntei a ela o que havia feito, e ela disse: Estou falando com Pachamama, nossa mãe.

Talvez você já tenha ouvido esse nome. Soa muito bonito, Pachamama. Todos os povos andinos reverenciam seu nome. Uma forma de traduzi-lo para o português é Mãe Terra. Mas esse nome guarda um segredo que mostra uma das mais belas qualidades da mística andina.

A partícula MAMA é bastante simples: mamãe. Já PACHA é algo mais complexo, pois tem vários significados, até mesmo contraditórios ao nosso entendimento. Essa qualidade é chamada de polissemia: uma palavra com vários significados. Se conseguirmos entender a ligação entre eles, a profundidade da palavra nos leva de volta às origens místicas da cultura. Portanto, PACHA significa mundo, universo (espaço), e também é uma partícula gramatical para definir momento (tempo).

Essa ambivalência nos diz algo muito importante: Pachamama, combinando essas duas qualidades, determina a Existência, espaço e tempo. Portanto, uma maneira mais justa de traduzir Pachamama é a Mãe da Existência.

Há muitos e muitos exemplos de palavras aparentemente contraditórias. E não apenas em palavras. A cultura andina absorve as ambiguidades com grande elegância. Ela reconhece as polaridades, as dualidades e, então, intuitivamente, procura fazê-las dialogar, fazê-las dançar. O dia e a noite, a luz e a escuridão, a bênção e o infortúnio, o amor e o medo, o masculino e o feminino são opostos que, nos Andes, encontram um ponto em comum, um ritmo para dançar. Como consequência, sua correspondência resulta em algo muito mais interessante e profundo do que o meio-termo: um estado de harmonia, de ressonância.

Nosso mundo ocidental não gosta de contradições. A maneira agressiva e dominadora em que fomos criados nos empurra permanentemente para escolher um lado da balança da dualidade. Ao assumirmos uma posição absoluta, o conflito com o outro começa: um estado de guerra permanente. A guerra mais agressiva que já tivemos, além das guerras que travamos uns com os outros, é com o planeta. O desejo de dominar os ritmos, os ciclos, é tão grande que já podemos sentir suas consequências: a mudança climática está derretendo as geleiras, gerando a morte de milhares de espécies, a fome no mundo e, acima de tudo, um estado de insegurança permanente: só há distopia no horizonte.

Essa maneira absoluta de nos definirmos, de nos posicionarmos, de vivermos juntos, está nos levando a nos tornarmos cada vez mais individualistas e, como consequência, a nos sentirmos cada vez mais sozinhos. A política atual é um exemplo disso, com o surgimento de organizações que defendem o totalitarismo. Mas não podemos nos esquecer de que a política tem a ver essencialmente com o diálogo, com a manutenção da coexistência, com a maneira como compartilhamos a Terra.

Esquecemos as histórias que nos ligavam à nossa paisagem. Os gestos que nos colocam em nosso devido lugar já se foram: simples animais, com habilidades curiosas, mas ainda ignorantes demais para ter o poder que temos.

Em toda a região dos Andes, há um ritual que chama as pessoas a se reconciliarem com a mãe de todos: o dia da Pachamama. Ele é tradicionalmente comemorado em 1º de agosto, abençoando as terras prontas para o cultivo. Nas cidades ou nos vilarejos perdidos, todos se reúnem para consagrar seus corações à doadora da vida, oferecendo sementes, folhas, flores, frutas, doces. Uma cerimônia rural, simples e bela, na qual mulheres e homens se curvam humildemente, pequenos, para agradecer e pedir sua bênção.

Nessa correspondência, reciprocidade, dança o coração da espiritualidade andina. Reconhecer-nos como filhos da terra não é algo cultural, mas necessário para descobrir como conviver melhor entre nós e com o restante dos seres que compartilham a paisagem conosco.

Por esse motivo, convido-os, ao lerem estas linhas, a refletir por um momento e encontrar uma maneira de celebrar, de sacralizar seu vínculo com a paisagem onde vivem. Desse modo, podemos nos situar dentro dos ciclos rítmicos, evitando ter mais desejos do que aqueles que podem ser satisfeitos por nossa terra e, a partir dessa reconciliação, guiar nossos passos em direção a um futuro mais justo, mais harmonioso e mais belo para todos, sejam humanos, pássaros ou libélulas.

Já é noite, e a brisa do mar faz as folhas do ypé amarelo dançarem. Não há desejo mais profundo em meu coração do que poder ouvir a canção calorosa deste lugar. Que essas simples palavras sejam carregadas de bênçãos. Para que seu coração saiba que há uma multidão buscando o caminho de volta à vida simples, íntima, real, justa, harmoniosa e bela. E ela está ao nosso alcance. Vamos continuar caminhando em direção a ela.

Fonte: https://www.brasildefato.com.br/2023/08/01/dia-da-pachamama-saiba-mais-sobre-ritual-que-chama-as-pessoas-a-se-reconciliarem-com-a-mae-de-todos

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