sexta-feira, 2 de setembro de 2022

A retórica do anti-estabelishment

Autor: Raphael Silva Fagundes.

Por que os bolsonaristas têm tanto ódio à imprensa, à ciência, ao STF, à academia e à arte? E por que, para combater estas instituições, reivindicam a liberdade?

Para responder estas duas questões-chave para compreender o pensamento bolsonarista, precisamos reconhecer que estes campos, produtores de discursos, são de fato repressores. Todos estes campos (e aqui parto da teoria dos campos de Pierre Bourdieu) possuem uma “lógica propriamente mágica da produção do produtor e do produto como feitiços".

Para o campo político, por exemplo, Bourdieu explica que é “o lugar de uma concorrência pelo poder que se faz por intermédio de uma concorrência pelos profanos, ou melhor, pelo monopólio do direito de falar e de agir em nome de uma parte ou da totalidade dos profanos".

Mas isso não ocorre apenas no campo político. Não é a lógica ou a natureza que alimenta a ciência ou o método científico, mas os paradigmas. Estes “são fontes de métodos, áreas problemáticas e padrões de solução aceitos por qualquer comunidade científica amadurecida", define Thomas Kuhn. Promover um estudo, métodos e investigações fora do que é aceito e compartilhado pela comunidade científica não é ciência.

Todos os campos são marcados por ordem do discurso. Os que estão no topo, os consagrados, geralmente possuem o poder de fala e definem o que pode ser dito ou não. Devemos entender, com Michel Foucault, que “o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar”.

Aqueles que não falam o que deve ser dito são vítimas de um “outro princípio de exclusão: não mais a interdição, mas uma separação e uma rejeição”. Aqui o discurso exerce o poder eminente da linguagem, o fascismo. Roland Barthes nos fala que “a língua, como desempenho de toda linguagem, não é nem reacionária, nem progressista; ela é simplesmente: fascista; pois o fascismo não é impedir de dizer, é obrigar a dizer".

Esse modelo de produção cultural (aqui entendo cultura como as mais variadas produções humanas) passa a ser um alvo quando uma das principais ideologias que move a sociedade liberal moderna é a meritocracia.

Cada vez que uma pessoa se esforça, dá duro para alcançar seus objetivos e é rejeitada, ela é instigada a se indignar.

Não adianta ler centenas de livros, quando os autores não se encaixam no quadro teórico aceito na academia. Não adianta ser um bom músico, se seu estilo não é aceito pela indústria cultural. Não adianta ser um crítico inflamado, reflexivo se seus argumentos não são admitidos pelas redações dos jornais.

Como a meritocracia se apresenta como um ideal digno, não será ela o alvo da indignação, mas o “sistema" que não permitiu que ela funcione de acordo com a promessa liberal.

A meritocracia é um ideal defendido tanto pela direita quanto pela esquerda. A primeira acredita que o trabalho duro recompensará com grandes fortunas, a segunda acredita que a educação é o principal caminho para acabar com as desigualdades.

Só que esse raciocínio faz com que acreditemos que a riqueza de alguém é justa porque devido ao trabalho ou porque se dedicou aos estudos. A partir daí se justifica a desigualdade econômica e, numa política tecnocrática, “coloca a tomada de decisões nas mãos das elites [com currículos em Harvard e Yale] e, portanto, tira o poder dos cidadãos comuns".

É assim que temos as elites econômicas e políticas na produção do discurso. Quando unimos as duas temos os milionários do mundo, concentrados hoje no Vale do Silício.

A mente revoltada do bolsonarismo carrega esse ressentimento. Olavo de Carvalho, Rodrigo Constantino e companhia, são os grandes rejeitados do mainstream dos mais variados campos sociais. Toda a retórica bolsonarista está baseada neste desdém. Como explica Aristóteles, pai dos tratados de retórica do Ocidente, a cólera “nos incita a tomar vingança manifesta por um desdém manifesto, e injustificável, de que tenhamos sido vítimas, nós, ou algum dos nossos”. Estes aspirantes ao fascismo são contrários à direita tradicional - sendo o maior representante o PSDB - e à esquerda, do petismo ao marxismo-leninismo. Justamente porque estes grupos ainda encontram um espaço discursivo (nos jornais e universidades).

Deste modo, enquanto os grupos que tinham espaços e discursos consagrados se fechavam em si mesmo, a “nova direita" se espalhou entre os rejeitados, entre os que não fazem parte dos campos sociais, dos paradigmas, ou das “linguagens políticas".

Até os militares se sentem rejeitados. O governo de esquerda, dos esquerdistas do período militar, que se dividiram entre a direita tradicional e a esquerda, os constrangia. Bolsonaro passa a ser o meio e a mensagem destes excluídos.

Chamar os que fazem parte desse espectro político de “burros" nada mais é do que alimentar o ódio, pois contribui para uma política da arrogância e da humilhação. Fomenta a meritocracia de esquerda entre os burros e os inteligentes. É como explica Micheal Sandel, “mesmo enquanto liberais igualitários buscam remediar ‘a grande injustiça dos inteligentes e dos burros', eles valorizam o ‘inteligente' e depreciam o ‘burro'".[10] A classe média, assim que se sente humilhada, excluída e rejeitada, coopta os desfavorecidos em nome de um projeto burguês que não faz ideia de como funciona.

O fato é que o liberalismo, com sua ideologia meritocrática, contamina o pensamento político. Forja uma polarização meritória. Divide os brasileiros entre empresários que trocam mensagens golpistas no WhatsApp e os que assinam a carta pela democracia. Incapaz de criar uma sociedade justa, cria posicionamentos que promovem conflitos inúteis que não se debruçam na raiz da injustiça: a exploração de uma classe sobre a outra.

Fonte: https://revistaforum.com.br/opiniao/2022/8/29/de-onde-vem-retorica-bolsonarista-contra-establishment-por-raphael-fagundes-122409.html

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