quarta-feira, 16 de novembro de 2016

Heterogênese VII

Causaria então uma grande admiração os lobos, os gatos, os mochos, os ratos e os morcegos e tantos outros seres, que uma fogueira não mereça mais atenção do que a noite que os cercam. Com a liberdade que lhes é peculiar, vão quando precisam, quantas vezes forem necessárias, perto do fogo, para secarem-se e, no mesmo instante, voltarem ao seu lar, na noite, sem tropeçar ou errar o caminho.

Pobre do tolo homem que, uma vez iluminado pela luz, voltar seus pés para a noite. Sua mente esclarecida não aceita a profundidade e a extensão da noite, mesmo diante da luz. Cega seus olhos, desconsidera ser possuidor de uma mente, de uma vontade e de liberdade, uma vez que animal também é.

Com a mesma tolice, com que trata sua luz, traça tratados e regras para legislar as trevas, achando que o oculto pode ser facilmente cercado por leis humanas mesquinhas, quando as Trevas eram anteriores a tudo, mais extensas que a luz, mais profundas que os olhos. De tábua em punho, volta cambaleante como exausta mariposa para seu lugar, a fonte de energia que necessita, volta para a luz e para a fogueira, trazendo seu traçado do oculto e das Trevas. Tantas são as coisas que lhe caem na cabeça, que tenho que dize-las uma por vez, mas são, muitas vezes, somadas e recaídas de uma só vez sobre este incauto e prepotente homem.

Primeiro: ao ver a chama do fogo, a verá mais brilhante do que se lembra, por um mero fenômeno fisiológico animal, porem tomando este fenômeno como advertência e ira divinas, se prostrara ao chão e se arrependera (se não se matar), esquecendo ou negando ou destruindo sua obra oculta, seu tratado das Trevas.

Segundo: desacostumado a viver e andar sem o auxílio de lanternas, seus pés o traem, podendo fazê-lo cair e morrer aos pés da fogueira, ou dentro dela, o que será tomado por seus companheiros como um sinal da misericórdia divina que castiga os impuros e preserva os justos do mal que estes carregam.

Terceiro: diante de uma narrativa tão fantástica sobre o oculto e as Trevas, os companheiros do pobre homem sentem-se ofendidos, ou seu deus negado, armam-se de tochas ou de tições como armas divinas e executam o infiel impiedosamente, sadicamente, tantas vezes quantas as neuroses primitivas assim achar necessárias.

Quarto: os companheiros deste, tão tolos quanto ele, acham que a obra do oculto e o traçado das Trevas operado por ele, tem um certo de verdade. Sob as orientações dele, iniciam brincadeiras com o oculto, acreditando nessas fantasias, que mudarão suas vidas, suas riquezas ou seu destino depois da morte. Na qual descobrirão, tarde demais, de se tratarem tão somente de brincadeiras infantis sem efeito algum.

Quinto: aceitando e operando com o que acreditam ser as leis das Trevas, cometerão despropósitos, que falam alto na moral humana, logo serão saqueados e destruídos por cruzados, provindos de outras fogueiras. Como fiéis da Luz, ficam próximos uns dos outros, para espantar as Trevas e o mal, como um exército de facção, reacionária e irracional.

Sexto: aceitando, porém operando longe das vistas dos seus familiares e cometendo abusos em nome das Trevas, pelas leis que os homens traçaram, os espíritos das Trevas envergonhados com a tolice dos homens, revelam-se aos seus olhos primitivos. Com espanto e horror, reagem, já que não correspondia nem um pouco com que suas tolas leis apregoavam. Logo fogem para a fogueira mais próxima, para arrepender-se e negar as Trevas. Não obstante, nunca pertencesse às Trevas ou às Luzes, apenas que, como animais mamíferos e pretensamente racionais, preferem a felicidade quente, iluminada e superficial das Luzes.

Sétimo: tendo, ainda assim, continuado com suas ignomínias em nome de algo que estão muito longe de conhecer, pouca atenção dando aos avisos dos espíritos das Trevas, como se fossem donos dos espíritos e do destino, sobre o qual recairá a consequência dos próprios atos. Eliminar-se-ão uns aos outros, pelas próprias mãos, movidas por sua loucura de controlar as Trevas. Deste fato tomarão conhecimento, ainda que tardio, seus antigos familiares, que se regozijarão em nome de deus, que fez cair sua divina justiça sobre os pecadores infiéis.

Oitavo: este serve para aquele que, resistindo a tudo isso e ainda continuar seus crimes, em nome do que não pode controlar. Eis que os espíritos das Trevas farão uma audiência, para julgar a este e sentenciar. Não o espírito, uma vez que ainda é pequeno, porém precioso para seu Pai. Ele o fará cair no jugo dos que sofreram, pela loucura cometida em nome do oculto. Saberá então que a existência de uma vida é tão preciosa e cara demais para ser privada. Mesmo os seres inferiores, ao seu grau de evolução, onde os homens gostam de se colocar acima, para esquecer que são tão animais e bestas, quanto outro animal qualquer, sujeito a virtudes e estupidezas da mesma grandeza.

Nono: movidos pelo ódio, por terem sido afastados do seio dos seus familiares, pelas doutrinas que acreditavam poder comandar as coisas ocultas e os seres das Trevas, começam as mesmas cruzadas e o mesmo terror, característicos do fanatismo dos profetas iluminados, coisa que em nada ajuda a humanidade e aumenta a infâmia contra as Trevas.

Décimo: abençoado seja por sua prudência e lembrança de não ser mais que um simples homem, tomará suas toscas leis das Trevas e as comparará com as leis das Luzes, dentre as já existentes, reveladas aos profetas iluminados. Constatará, surpreso, que não são diferentes, uma vez que ambas foram feitas pelo homem. Disso perceberá,embora confuso,não se abaterá, guardará a derrota da sabedoria humana diante do oculto, tanto das Trevas quanto das Luzes, pois Verdade alguma pode ser escrita impunemente, por qualquer autor que seja.

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