Quando os Deuses não conseguiam se fazer ouvir nas assembléias convocadas por Anu, eles iam tentar a sorte nas audiências concedidas por Enki. O jovem Deus desfrutava do prestígio e da influência que os Deuses lhe davam, mas toda a agitação e burburinho cessou instantaneamente, prevalecendo um silêncio sepulcral, assim que chegou essa Deusa.
Certamente haviam Deusas nas audiências de Enki e, sem dúvida, cada uma tinha sua quota de beleza e poder que inspirava cortesia e respeito. Mas esta Deusa, ainda que tenha sido a última a chegar, foi se aproximando de Enki para ser atendida primeiro. Ela não parecia ser mais velha do que Ninlil, sua esposa, não obstante emanava uma majestade e uma sabedoria tão antiga quanto a de Antu. Sem dizer uma única palavra, deixou a todos prostrados de joelhos, em silêncio, enquanto prosseguia pelo salão até ficar diante de Enki.
- Enki, o Habilidoso! Assim te chamam os Deuses. Estás pronto para tuas contas?
- Quem és tu? Eu conheço a cada Deus e Deusa aqui presente, mas tu inspira mais respeito e temor do que todos.
- Tu me conheces muito bem, jovem Enki, embora não tenhamos sido devidamente apresentados. Devo dizer diante de todos nossos negócios pendentes, Enki?
A Deusa tinha firmeza, postura, dignidade, personalidade e poder. Para os padrões do mundo divino ela inspirava tanto o afeto materno quanto o sensual, mas para os padrões do mundo humano ela certamente inspiraria medo e terror.
Oh, povo do mundo que, com sua soberba e orgulho, tem se colocado no centro do universo e usurpado o trono dos Deuses! O sábio lhes diz que o que existe não serve para tua satisfação, as coisas são como são. Tudo que existe tem forma, mesmo os Deuses e que se saiba que apenas farsantes e vigaristas se ocultam na transcendência. O povo do mundo, vaidoso, gosta de imaginar e vestir os Deuses como pálidos reflexos de si mesmo e acabam tomando a figura como real. Os Deuses não são nossas sombras, nem nossos delírios, nem nossas projeções mentais. Os homens criam arquétipos para entender os Deuses, mas somos nós as sombras, os reflexos dos Deuses. Ainda que não gostemos do que vemos, os Deuses e Deusas manifestam a Verdade e, se nos chocamos, é porque nos negamos, nos recusamos a ver nossa essência ali repousada.
A perturbação que atingia Enki não era humana, mas divina. Aquela Deusa, por sua atitude e aparência, incendiava seu amor filial e seu amor erótico. Ela era tão alta quanto Antu, seu corpo esguio e curvilíneo era coberto com escamas em tons de vermelho, vinho e preto. Nas dobras e extremidades do corpo haviam belos e pequenos esporões. Nas mãos e nos pés, garras. Em sua cabeça, além do cabelo liso e negro, três chifres a coroavam. Era como um grande lagarto e fêmea, uma dragonesa.
- Diga o que quer, mas diga quem tu és.
- Eu sou Ninmag, filha de Nintu, neta de Mummu, descendente direta daquela que é mãe de todos nós, a Deusa que emergiu do Caos. O que eu demando é que cumpra tua promessa tornando-se meu consorte.
- O que dizes? Enki é meu marido!
- Irmãzinha, não desejo tirar tuas posses e honrarias. Pouco me importa que vivam juntos como casal. Teu precioso Enki será meu cortesão, dele gerarei meus filhos e a casa de Anu será nossa casa. Não te convém evocar teus direitos ou monopólio sobre o corpo e o amor de Enki, pois não existe senhorio e propriedade no amor e no relacionamento.
- Enki, o que significa isso? Tu me disseste que eu sou a tua amada, a única e a primeira.
- Irmãzinha, antes de tu Enki tocou e conheceu o meu corpo. Tu ainda és jovem, com o tempo há de aprender quais são teus reais direitos e descobrirás a função do consorte.
- Tu falas como se muitos anos tivesse, mas tua aparência é tão jovem quanto a minha. Por que nos trata como crianças?
- Irmãzinha, não se deve conhecer as coisas pelo seu aspecto externo. As coisas não são como parecem ser. Eu te chamo de irmãzinha, mas se tu evocares teus direitos de linhagem e herança, saiba que eu sou tua tia.
Enki estava visivelmente nervoso, se sentindo humilhado e acuado. Ele havia conquistado com muito risco e esforço o tão sonhado lugar na corte de Anu, algo que somente era assegurado graças ao seu matrimônio com Ninlil. Entretanto a tentação de ser o consorte de Ninmag enchia sua mente com idéias de poder e riqueza que o tornaria tão grande senão maior do que Anu. Estes sonhos teriam um fim manchado com sangue.
Ninlil não estava gostando do que via. Não tinha ela, junto com outros Deuses e Deusas, descido ao mundo chamado de Gaia e construído a colônia de Aldebaran? Ninmag não estava nem no grupo nem na caravana que havia escapado do Caos. Ninlil era uma Deusa jovem, mas por orgulho e vaidade negava-se a aceitar as verdades das coisas. Assim como nós, humanos, ela queria perceber o universo todo de sua perspectiva centrada em seu ego. A tragédia teria seu efeito devastador aumentado, pois tudo que Ninlil quis, naquele momento, foi aprender os segredos que Ninmag tinham, para seu uso futuro.
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