quarta-feira, 3 de junho de 2015

Hierogamias entre as Vênus e os animais

Um dos motivos mais recorrentes nas representações parietais é a hierogamia ou coito das vênus com seus consortes animais, a redução do todo (deusa ou consorte) à parte essêncial (vulva, falo/chifre) é uma constante. Inúmeras imagens, de regiões as mais diversas, representam o par, guardando pequenas diferenças entre si. Dentre elas encontram-se as Vênus de Angles acompanhadas por bisões e cabritos, as três vênus estão esculpidas no abrigo de Bourdois e datam do período Magdaleniano superior; limitam-se à parte medial do corpo, têm os ventres bojudos; os sexos são bem trabalhados: o triângulo pubo-genital fortemente incisivo, a vulva apresenta alguma diversidade de uma figura a outra, como também a fenda vulvar; a incisão simples, mas longa, na primeira; é mais curta e mais profunda na segunda e na terceira. Essa terceira vênus sobrepõe-se a um bisão muito sumário e é, por sua vez, subposta a outro bisão, que a encobre a partir das coxas.

Essas três vênus reduzem-se, na essência, ao ventre e ao sexo, da mesma forma que a quarta, encontrada numa rocha calcária do mesmo complexo arqueológico; essa figura, associada a dois cabritos, é subposta ao mais jovem deles, que lhe toma a parte superior do corpo. Tanto nos bisões, quanto no mais jovem dos cabritos é nítida a região do dorso e do sacro (órgãos reprodutores), com a presença do falo em ereção, apontado para o sexo da vênus; a cabeça alongada do mais velho dos caprinos com os chifres, confirma os elementos de força – aqui visto como arma de defesa e ataque e, portanto, de dupla virilidade. O elemento central parece ser a força, aquilo que, muitos milênios depois seria denominado pelos latinos como uis e uir, de onde derivam violência e varão.

A Mulher sob a Rena é uma das peças mais célebres do período Perigordiano, encontrada em Laugerie-Basse, gravada em uma plaqueta, fragmento de osso de rena, de formato regular, medindo 101mm de comprimento por 65mm de largura. Nessa, vê-se uma mulher, deitada sobre as costas, enquadrada pelas patas posteriores e o ventre de um animal macho; como as demais representações femininas, a parte principal é o ventre, muito volumoso; o corpo é representado de perfil; o triângulo púbico e a vulva, nitidamente incisiva, são representados em 3/4. Como nas imagens anteriores a união do macho animal com uma fêmea de formas humanas se confirma, e, neste caso, indica uma associação já estabelecida antes do Magdaleniano.

No pendente do feiticeiro de Chauvet-Pont-d’Arc, datado do Auraciano, observa-se a confirmação da equivalência falo/chifre, pois o que está sobreposto ao delta púbico da deusa é a cabeça do homem-bisão, com seus chifres. As imagens restringem-se ao essencial de sua figurativização, ou protofigurativização, o delta pubo-genital para a vênus e a cabeça do bisão com membros humanos. O pendente calcário onde as imagens se encontram localiza-se no coração da Sala do Fundo, é “um verdadeiro cone de rocha, que desce do teto para terminar em ponta à 1,10m do solo”. A parte ornada é a base. O cone sobre o qual foi representada a cena é sobremodalisado por dois valores opostos e complementares: à semelhança do delta/triangulo invertido, ele conota o sexo da deusa-mãe-natureza, a porta pela qual os animais deverão sair após a gestação; por outro lado, levando-se em conta a topografia da gruta, ele representa o falo dentro do sexo-gruta. E cria uma mise en abyme, espelhada ou complementar.

Pode-se observar no mesmo sítio, próximo do pendente, dois felinos, um mamute e um pequeno boi almiscarado, que compõem as representações vizinhas. Mas é a sua localização privilegiada na Sala do Fundo, diante do grande friso animal, que referenda a leitura.

A representação de quatro outras vênus na rede que compreende a galeria dos Megaloceros (grande veado) e a sala do fundo, indicando cada uma a entrada dos divertículos adjacentes, marca a ligação do feminino, do triângulo púbico, com as entradas (vulvas) das cavernas e sua conotação de útero da terra. Esta associação não é frequente apenas na gruta de Chauvet-Pont-d'Arc, em outras também elas estão em posições estratégicas, em geral acompanhadas pelos cornudos, indicando a estreita relação das grutas com o feminino ou a Deusa Mãe e um ciclo de renovação da natureza que se faz com o auxílio de um macho potente, como no pendente. Note-se, de passagem, que o motivo do monstro/animal que copula com uma deusa/jovem reaparece em épocas posteriores. Como na imagem do pendente, a Fera coloca sua cabeça no colo de Bela, metáfora “delicada” para a cópula.

Tanto no caso das quatro vênus de Angles, como no da mulher sob a rena de Laugerie-Basse, no pendente do feiticeiro de Chauvet-Pont-d’Arc, ou ainda dos cinco blocos da estação de La Ferrassie, datados dos períodos Auraciano II e III, onde um conjunto de vulvas é gravado em associação com animais machos pintados em vermelho ou negro, documenta-se a associação da figura feminina com um macho cornudo, indicando, por meio da sobreposição do macho ao ventre da fêmea, uma união entre ambos. Essa hierogamia destinada a promover a fertilização da Deusa Mãe e de seus domínios – homem e natureza – exige um consorte à altura dos poderes da Deusa, e esse consorte é, por definição, marcado pela força física, ferocidade/agressividade, por uma virilidade acentuada e pela presença de longos chifres, com nítida preferência dada aos touros/auroques e bisões.

Representados nas paredes das cavernas, em tons de vermelho e negro, os touros, bisões, auroques, renas e mamutes são imagens vigorosas de um realismo requintado que se opõe ao traço esquemático usado para representar o macho da espécie humana – muito frágil, quando comparado a esses animais. Um olhar mais atento sobre as representações parietais desses animais revela um conjunto de traços comuns – um conjunto sêmico que marca o reconhecimento do consorte da deusa, seja ele um touro ou um “minotauro”, pois se inscreve num contorno mínimo, numa protofiguratividade, que faz ver a energia fertilizadora e mortal. 

Da gruta de Pech-Merle, Cabrerets (Lot), vem uma das representações mais interessantes, datada do Aurinaco-perigordiano, segundo Breuil, ou tavez do Solutreano, aproximadamente 15 a 20.000 a.C., três figuras femininas estão representadas no teto da Sala dos Hieróglifos. De uma superfície total de 40 m2, emcontram-se quatro grupos traçados a dedo ou a varinha sobre argila, o grupo A compreende um emaranhado de “macarrões”, quatro mamutes e três figuras femininas de perfil, a mais completa delas está sobreposta a um enorme falo.

Como as demais representações do período, a figura feminina possui seios pendentes, ventre e nádegas volumosos; os membros inferiores são bem proporcionados, com discreta indicação dos joelhos e um giro do traço posterior que pode representar o pé. Das três imagens femininas, ela é a única a possuir cabeça dotada de um bico que pode representar os cabelos. Subposto a ela, à altura das ancas, como se ela o montasse, um enorme falo. A conotação erótica da imagem reforça o visto até o momento, bem como a ligação do coito/hierogamia com a propiciação da Natureza e de abundância de caça, pois há imagens de mamutes junto das femininas. A desproporção do falo em relação à figura feminina, pouco comum, indica o poder fecundante deste e sua aproximação com os animais de grande porte, ao passo que a idéia de ser ele montaria para a Senhora, corrobora a idéia da supremacia feminina. 

Outras imagens, de diversas localidades, confirmam a idéia de uma magia sexual ligada à caça e à Natureza, na qual a cópula ou a mescla dos elementos feminios/masculinos aos animais visavam o estímulo da Deusa Mãe-Terra e a produção abundante de alimentos, bem como a proteção desta. Dentro deste conjunto de imagens que estabelecem equivalências entre a cópula/hierogamia e animais um exemplo interessante é o da Cueva de los Casares, Guadalajara, Espanha.

O casal do primeiro grupo está a 15 cm sobre a perpendicular do olho do mamute lateral que compõe a cena seguinte, levando-se em conta o ajuste do foco de luz e a morfologia da parede.

Chama atenção na análise a correlação estabelecida entre a direção para a qual aponta a presa do mamute - o ventre da figura antropomórfica esteatopígea (de ancas largas), portanto, feminina, que copula com a figura masculina e que traz feições não humanas, mas zoomorfas. Do mesmo modo, a outra presa quase chega a tocar a égua e outra imagem antropomórfica de ventre saliente, na qual está gravada uma vulva e o nascimento de um pequeno ser de forma humana.

Algumas das conclusões a que o pesquisador chega também trazem contribuições à análise em curso, sobretudo no que toca às correlações entre as figuras, as dimensões do falo e da vulva representados nas imagens e o estabelecimento de um contínuo, de um todo para as cenas, conotando um sentido semi-simbólico, portanto, mítico.

A idéia de conjunto estabelecida entre as três cenas configura uma narrativa elementar, ou seja, a noção de interferência de uma ação na outra (ocorrida no tempo), a cópula se liga à máscara do mamute (o personagem itifálico tem o rosto voltado para a máscara), e ambas à cena da vulva sobre a égua; reforçando esse fio condutor as dimensões análogas entre o falo e a vulva e sua localização à mesma altura, porém em pólos opostos da representação, indicam uma oposição complementar. Pode aventar-se a seguinte estrutura narrativa elementar: a máscara-mamute (sacerdote?) é o sujeito que estabelece o elo entre a cópula do casal antropomórfico e a vulva sobre a égua, conotando que a ação da cópula tem correlação temporal (de anterioridade) com a vulva/chaga (posterioridade). Isto decorre de a presa do mamute apontar para a zona vulvar da ‘fêmea’, enquanto que o “homem” é representado como um símile do macho animal (desproporção do falo + máscara animal). Ao mesmo tempo, o falo e a vulva, em função da localização e das dimensões apresentadas, fecham um círculo, no qual a cópula com a fêmea esteatopígea equivale a uma cópula com a vulva (símbolo da Deusa Mãe/Terra) e esta é mediada pelo mamute, ou seja, a produção de alimento/caça para o grupo. Magia simpática, como diria Frazer, na qual os elementos da composição estabelecem uma relação por contiguidade e complementariedade. Ou ainda, de que a vulva é a ferida/caça do animal, que proporciona a manutenção do grupo, com nascimento do pequeno antropomorfo, novamente um ciclo de cópula, caça e nascimento mediado pela máscara-mamute, vida e morte estão em relação direta e complementar.

Na escultura da vênus de Tursac, pode-se observar o mesmo tema e motivo retomados, a ambiguidade criada pelo escultor faz ver ora uma vênus estilizada, ora um falo, ora uma cópula. A vênus vista em 3/4 e de costas assemelha-se não só ao falo, mas também a uma ponta de chifre ou de lança, reforçando a intencionalidade do jogo já visto entre masculino, feminino e cópula.

Em outro exemplo do norte africano, da gruta de Guelmuz el Abiod, observa-se, igualmente, um casal “mítico” assentado com as costas se tocando, ambos estão dentro de uma redoma ou grinalda, esta é composta por uma fita ou forma cilindróide (semelhante a uma serpente) que nasce das costas do personagem macho, do cóccix, (ou do meio de ambos), à guisa de cauda, envolve o casal e tem a outra extremidade, angulosa, postada diante de uma figura masculina bastante estilizada e vista de frente; ao lado desta guirlanda um animal cornudo macho, adulto, e um pequeno cabrito; atrás do animal cornudo adulto outra imagem, bastante estilizada, lembra a forma humana, como a desenhada pelas crianças, cabeça redonda sobre corpo palito. O casal mítico assemelha-se a animais, bovídeos, sendo bastante evidente o falo em um deles, por oposição, o outro seria uma fêmea. Ambos possuem cabeças alongadas e estilizadas, o macho parece possuir chifres recurvos.

Embora a reprodução não seja muito clara, é o suficiente para se notar que a cabeça da forma humana atrás do grande macho cornudo é representada com os mesmos elementos de algumas vulvas, forma ligeiramente arredondada na parte superior, com afunilamento da inferior, tendendo à forma triangular e com um sulco vertical na parte inferior, que toma metade da forma ovóide. Essa representação, somada ao sexo explícito do outro personagem, posicionado entre o casal e o bovídeo adulto, estabelece uma correlação entre as imagens: o resultado da união do casal mítico tem seu correspondente no posicionamento do casal humano, machos e fêmeas estão posicionados simetricamente, embora o casal humano seja representado frontalmente, ao passo que o mítico está de perfil; entre o casal de humanos encontra-se o bovídeo adulto (em três quartos), suplantando a ambos em tamanho. O macho humano parece ligar com seus braços a redoma/serpente ao bovídeo, enquanto a fêmea humana está sob o que parece ser o rabo do animal e possui tamanho bastante reduzido. As disposições dos elementos nesta imagem sugerem uma “identidade” entre o casal mítico e o bovídeo, dada pela semelhança das formas e da lateralidade/perfil, que se opõe à frontalidade do casal humano, mas ao mesmo tempo, é perceptível um elo tênue entre os opostos complementares: macho/fêmea dos dois casais, cabendo ao humano uma representação extremamente sinedóquica e metafórica a partir do sexo. Teríamos assim um mecanismo de montagem contextual, no qual se estabelece: uma relação narrativa imanente, localizada ao nível de uma “história”: união sexual mítica/vida; e uma relação narrativa-discursiva anafórica entre dois segmentos situados em partes diferentes do discurso, mas que se vinculam como contíguos por se aparentarem como parcialmente iguais e parcialmente diferentes concomitantemente: humano/bovídeo.

A espiral/serpente será um motivo recorrente nas representações parietais e posteriores, geralmente associada ao tempo cíclico das estações. Na gravura de Abiod pode-se conotar a idéia de uma magia de retorno da caça, abundância, com o casal mítico eternamente unido no útero da Terra-Mãe, ou circundado pelo rio/serpente primordial, que com o dessecamento do Saara, passou a ter uma importância ainda maior e exigir uma “magia” particular dos povos privados de água.

Autores: Flávia Regina Marquetti e Pedro Paulo A. Funari

Obra: Sexualidade e Sentimento Religioso no Paleolítico: Narrativas Elementares de Hierogamias entre as Vênus e os Animais.

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