sábado, 8 de maio de 2010

Benditos pactos diabólicos

Este é o terceiro de uma série de cinco artigos que foram publicados em Maio pela Revista da Biblioteca Nacional, nº 56 do ano 5. Enfim, textos realmente relevantes no ponto de vista acadêmico, sem preconceito, sem paranóias, sem histerias.
As terras dos pagãos eram consideradas domínio de Satanás. Esta era a visão que a Igreja tinha das religiões nativas na época do descobrimento. Os sacerdotes dessas crenças eram rotulados de feitiçeiros, agentes do diabo. Frei Vicente do Salvador, nosso primeiro historiador, dizia que o próprio nome do Brasil simbolizava as brasas do fogo do Inferno e o padre Anchieta relatava em 1560: "Há certos demônios aqui, a que os índios chamam de Curupira, que os atacam muitas vezes no mato, dando-lhes açoites e ferindo-os bastante". Em meados do século XVIII, um nobre cavaleiro da Bahia denunciava à Inquisição portuguesa: "Aqui há tanta quantidade de negros e negras feitiçeiros que não se pode particularizar". E nas Minas Gerais, no século XVIII, um morador de Vila Rica desabafava: "Estas minas estão bastante infectadas do Demônio!".
Durante todo o período colonial, os feitiçeiros, calunduzeiros e curandeiras eram perseguidos pelas justiças do bispo, da Inquisição e do rei, podendo ser presos, açoitados e até degredados para a África. Apesar da legislação tão repressiva, diversos tipos de feitiçaria e "pactos diabólicos" eram praticados por todas as camadas sociais e grupos étnicos, mesclando, na maioria das vezes, rituais europeus medievais com cerimônias ameríndias e africanas. O baiano Gregório de Matos assim descreceu um desses rituais, tal qual era praticado nu quilombo adjacente à capital da América Portuguesa:
"Que de quilombos que tenho com mestres superlativos, nos quais se ensinam de noite os calundus e feitiços. Com devoção os frequentam mil sujeitos femininos e também muitos barbados, que se prezam de narcisos. Ventura dizem que buscam, não se viu maior delírio! Eu que os ouço, vejo e calo por não poder divertí-los. O que eu sei, é que em tais danças, Satanás anda metido e que só tal padre-mestre pode ensinar tais delírios. E quando vão confessar-se, eoncbrem aos Padres isto, porque o têm por passatempo, por costume, ou por estilo".
A rica descrição desse "calundu" - termo recorrente em todo o período colonial, até ser desbancado pelo "candomblé" no início do século XIX - exagera ao dizer que os adeptos destes rituais escondiam dos confessores tais festins demoníacos, com medo de rigorosas penitências. A documentação conservada nos volumosos Cadernos do Promotor da Inquisição de Lisboa, na Torre do Tombo, mostra que muitas das autoridades eclesiásticas eram indiferentes - quando não coniventes - à prática das "artes diabólicas", sobretudo de matriz africana.
Há notícias de vários sacerdotes de diversas capitanias que abrigavam famosos feitiçeiros em sua escravaria: nas Minas Gerais, o padre Manoel Fagundes, tinha um escravo mina, Antônio, muito procurado para dar "remédio para amansar senhores e não castigar os cativos"; na Capela do Bom Jesus do Furquim, toda a vizinhança sabia que o escravo congo Domingos era renomado bruxo, sendo conhecido por três sacerdotes: os padres Machado, Vilas Boas e Albano Silva, que nunca o delataram aos Comissários do Santo Ofício.
A presença de feitiçeiros nas propriedades das ordens religiosas também era uma grave negligência canônica, já que essas congregações deviam primar pelas virtudes e plea restrita vigilância contra heresias. Em 1618, os frades do Convento de São Francisco da Bahia abrigavam um "negro velho tido e havido como feitiçeiro", que adivinhava com sucesso o paradeiro de escravos fugitivos; em 1760, o preto Afonso, escravo dos padres da Companhia de Jesus, morador da Fazenda da Panela, na cidade da Mocha, no Piauí, "curava bicheiras com palavras", um ritual suspeito de camuflar pacto com o demônio; em 1775, Jaques, preto escravo dos beneditinos de Olinda, "com uma vela acesa na mão, olhando para uma estrela, fazia orações" para a realização de um dificultoso casamento; em 1773, no Grão-Pará, a índia Quitéria, solteira, da adminstração dos religiosos de Nossa Senhora do Carmo, "ensinava umas palavras que tinham virtude para adivinhar as pessoas que tinham furtado alguma cousa, tendo cravado os bicos de uma tesoura no arco de um balaio". No Rio de Janeiro, em 1779, consta que eram "os negros do bispo que vão ao mato buscar as folhas de alecrim e arruda para os rituais de exorcismo ministrados pelo feitiçeiro Inácio".
O caso mais comprometedor de envolvimento clerical com bruxaria remete-nos à Bahia, entre 1730 e 1740. Para exorcizar uma enferma, o carmelita calçado frei Luiz de Nazaré ordenou que matassem um porco. Com a banha, fez um unguento para passar na barriga da doente e mandou que os miúdos do animal, depois de cozidos, fossem depositados numa encruzilhada, tarde da noite. Usava erav-espinheira, erva-de-são-caetano, carvão e bolo armênio para a lavagem das enfermas. Ao ser consultado pelo senhor de uma escrava endemoninhada, foi categórico: "Que mandassem a preta aos curadores chamados calunduzeiros, porquanto a dita queixa eram feitiços a que chamam calundus e os exorcismos da Igreja não tiram aquela casta de feitiços por serem cousa diabólica".
Algumas denúncias chegaram à Inquisição. Em 1758, o Comissário do Santo Ofício de Salvador recebeu a seguinte delação: "Neste Convento do Desterro veio três vezes uma preta chamada Teresa Sabina, no mês de setembro, para curar a uma religiosa chamada Maria Teresa Josefa, com abusos da sua terra, pondo-lhe o pé e cantando na sua língua, mandou esfregar o corpo da religiosa com um tostão de cobre". Assim, os rituais de matriz africana chegaram a penetrar até no mais recôndito dos conventos de religiosas encalusuradas.
Autor: Luiz Mott
Fonte: Revista de História da Biblioteca Nacional, ano 5, nº 56, Maio de 2010, pg 24-25.

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