sábado, 28 de novembro de 2009

A cidade [antiga]

Cidade e urbe não eram palavras sinônimas entre os antigos. A cidade era a associação religiosa e política das famílias e das tribos; a urbe, o lugar de reunião, o domicílio, e, sobretudo, o santuário dessa associação.
Não devemos imaginar as cidades antigas de acordo com as que costumamos ver nos dias de hoje. Constroem-se algumas casas, e temos uma aldeia. Insensivelmente o número de casas aumenta, e temos a cidade; e, se for o caso, acabamos por rodeá-la por um fosso e uma muralha. Uma cidade, entre os antigos, não se formava com o tempo, pelo lento crescimento do número dos homens e das construções. Fundava-se uma cidade de um só golpe, inteiramente, em um dia.
Mas era necessário que a cidade fosse constituída antes, o que era a obra mais difícil, e ordinariamente a mais longa. Uma vez que as famílias, as fratrias e as tribos concordavam em se unir, e em adotar o mesmo culto, logo se fundava a cidade, para ser o santuário desse culto comum. Também a fundação de uma cidade sempre constituiu ato religioso.
Por primeiro exemplo, tomaremos Roma, a despeito da reputação de incredulidade que se liga a essa antiga história. Muito se repetiu que Rômulo era chefe de aventureiros, que constituíra um povo chamando para junto de si vagabundos e ladrões, e que todos esses homens, reunidos sem escolha, haviam construído ao acaso algumas cabanas, para abrigar nelas o fruto de suas rapinas. Mas os escritores antigos apresentam-nos o fato de maneira bem diversa; parece-nos que, se queremos conhecer a antiguidade, devemos apoiar-nos sobre os testemunhos que a mesma nos apresenta. Esses escritores, na verdade, falam de um asilo, isto é, de um recinto sagrado, no qual Rômulo admitiu todos os que se apresentaram, no que seguiu o exemplo dado por muitos dos fundadores de cidades. Mas esse asilo não era a cidade, e não foi franqueado senão depois de fundada e completamente construída a cidade. Era um apêndice acrescentado a Roma; não era Roma. Não fazia parte da cidade de Rômulo, porque estava situado nas encostas do monte Capitolino, enquanto a cidade ocupava o planalto do Palatino. É importante distinguir nitidamente o duplo elemento da população romana. No asilo estão os aventureiros sem eira nem beira; sobre o Palatino estão os homens vindos de Alba, isto é, homens já organizados em sociedade, distribuídos em gentes e em cúrias, com seus cultos domésticos e suas leis. O asilo não é nada mais que uma espécie de aldeia ou subúrbio, onde as cabanas são levantadas ao acaso, e sem regras; sobre o Palatino ergue-se uma cidade religiosa e santa.
Sobre a maneira pela qual essa cidade foi fundada, a antiguidade é pródiga em informações; encontramo-las em Dionísio de Halicarnasso, que as busca em autores mais antigos; encontramo-las em Plutarco, nos Fastos de Ovídio, em Tácito, em Catão, o Antigo, que havia consultado os velhos anais, e em outros escritores, que sobretudo nos devem inspirar grande confiança, o sábio Varrão e o sábio Vérrio Flaco, que Festo nos conservou em parte, ambos muito informados acerca das antiguidades romanas, amigos da verdade, nada crédulos, e que conheciam muito bem as regras da crítica histórica. Todos esses escritores nos transmitiram a lembrança da cerimônia religiosa que havia marcado a fundação de Roma, e não temos direito de rejeitar tão grande número de testemunhos.
O primeiro cuidado do fundador é escolher o local da nova cidade. Mas essa escolha, coisa grave, e da qual se crê depender o destino do povo, sempre foi deixada à decisão dos deuses. Se Rômulo fosse grego, teria consultado o oráculo de Delfos; se fosse samnita, teria seguido o animal sagrado, o lobo ou o picanço. Latino, muito vizinho dos etruscos, iniciado na ciência augural, pede aos deuses que lhe revelem sua vontade pelo vôo dos pássaros. Os deuses apontam-lhe o Palatino.
Chegado o dia da fundação, oferece primeiramente um sacrifício. Seus companheiros enfileiram-se ao seu redor, acendem um fogo de ramos, e cada um deles pula através das chamas. A explicação desse rito é que, para o ato que se vai cumprir, é necessário que o povo esteja puro: ora, os antigos julgavam purificar-se de toda mancha física ou moral pulando através da chama sagrada.
Depois que essa cerimônia preliminar preparou o povo para o grande ato da fundação, Rômulo cava um pequeno fosso de forma circular, onde lança um torrão, por ele trazido da cidade de Alba. Depois, cada um de seus companheiros, um por um, lança no mesmo lugar um pouco de terra, trazida de seu país de origem. Esse rito é notável, e revela nesses homens um pensamento que é preciso assinalar. Antes de chegar ao Palatino, eles moravam em Alba, ou em alguma outra cidade vizinha. Lá estava seu lar, lá seus pais haviam vivido, e estavam sepultados. Ora, a religião proibia abandonar a terra onde o lar estava fixado e onde repousavam os antepassados divinos. Era preciso, pois, para se livrarem de toda impiedade, que cada um daqueles homens usasse de uma ficção, e que levasse consigo, sob o símbolo de um torrão de terra, o solo sagrado em que seus antepassados estavam sepultados, e ao qual estavam ligados os manes. O homem não podia mudar-se sem levar consigo a terra e seus ancestrais. Era necessário que observasse esse rito para que pudesse dizer, mostrando o novo lugar que adotara: Esta é ainda a terra de meus pais: Terra patruum, patria, aqui é minha pátria, porque aqui estão os manes de minha família.
O fosso onde cada um lançara um pouco de terra chamava-se mundus; ora, essa palavra designava, especialmente na antiga língua religiosa, a região dos manes. Desse mesmo lugar, segundo a tradição, os manes dos mortos escapavam três vezes por ano, desejosos de rever a luz por um momento. Lançando ao fosso um torrão de terra da antiga pátria, acreditavam encerrar nela também as almas dos antepassados. Essas almas, ali reunidas, deviam receber culto perpétuo, e velar sobre seus descendentes. Rômulo, nesse mesmo lugar, levantou um altar, e acendeu o fogo. Este foi o fogo sagrado da nova cidade.
Ao redor desse fogo devia erguer-se a cidade, como a casa se eleva ao redor do lar doméstico. Rômulo traça um sulco, que marca os limites. Ainda aqui os mínimos detalhes estão fixados pelo ritual. O fundador deve servir-se de uma relha de cobre; a charrua é puxada por um touro branco e uma vaca da mesma cor. Rômulo, de cabeça coberta, trajando vestes sacerdotais, segura ele mesmo a rabiça da charrua, e a dirige, entoando preces. Seus companheiros o seguem, observando religioso silêncio. À medida que a relha levanta torrões de terra, lançam-nos cuidadosamente para o interior do recinto, a fim de que nenhuma parcela daquela terra sagrada fique do lado do estrangeiro.
Esses limites traçados pela religião são invioláveis. Nem o estrangeiro, nem o cidadão têm o direito de transpô-los. Pular por cima desse pequeno sulco é ato de impiedade; a tradição romana diz que o irmão do fundador havia cometido esse sacrilégio, e o havia pago com a vida.
Mas, para que se pudesse entrar na cidade, e sair dela, o sulco era interrompido em alguns lugares; para isso Rômulo levantava a relha; esses intervalos chamavam-se portae, as portas da cidade.
Sobre o sulco sagrado, ou um pouco atrás, levantam-se depois muralhas, também sagradas. Ninguém poderá tocá-las, mesmo para restaurá-las, sem permissão dos pontífices. De ambos os lados dessa muralha, um espaço de alguns pés é reservado à religião; chamam-no pomoerium; não se permite passar por ali a charrua, nem levantar ali construção alguma.
Não podemos supor razoavelmente que esses ritos tenham sido imaginados pela primeira vez por Rômulo. Pelo contrário, é certo que muitas cidades antes de Roma foram fundadas da mesma maneira. Varrão disse que esses ritos eram comuns ao Lácio e à Etrúria. Catão, o Antigo, que, para escrever seu livro Origines, havia consultado os anais de todos os povos italianos, informa-nos que ritos análogos eram observados por todos os fundadores de cidades. Os etruscos possuíam livros litúrgicos, onde estava consignado o ritual completo dessas cerimônias.
Os gregos, como os italianos, acreditavam que o local de uma cidade devia ser escolhido e revelado pela divindade. Assim, quando queriam fundar alguma, consultavam o oráculo de Delfos. Heródoto assinala como ato de impiedade ou de loucura o fato de o espartano Dória ter ousado construir uma cidade “sem consultar o oráculo, e sem praticar nenhuma das cerimônias prescritas”, e o piedoso historiador não se surpreende ao ver que uma cidade assim construída, contra as regras, não tenha durado mais de três anos. Tucídides, recordando o dia da fundação de Esparta, menciona os cantos piedosos e os sacrifícios daquele dia. O mesmo historiador nos diz que os atenienses possuíam ritual particular, e que jamais fundavam uma colônia sem obedecê-lo. Pode-se ver em uma comédia de Aristófanes um quadro bastante exato da cerimônia usada em tais casos. Quando o poeta imaginou a alegre fundação da cidade das Aves, pensava certamente nos costumes que eram observados na fundação das cidades dos homens; assim, pôs em cena um sacerdote que acendia o fogo invocando os deuses, um poeta que cantava hinos, e um adivinho que recitava oráculos.
Pausânias percorria a Grécia nos tempos de Adriano. Chegando a Messênia, fez com que os sacerdotes lhe contassem a história da fundação da cidade de Messena, e assim nos transmitiu sua narrativa. O acontecimento não era muito antigo; dera-se nos tempos de Epaminondas. Três séculos antes os messênios haviam sido expulsos de seu país, e desde esse tempo viviam dispersos entre os outros gregos, sem pátria, mas guardando com piedoso cuidado seus costumes e sua religião nacional. Os tebanos queriam reconduzi-los ao Peloponeso, para estabelecer um inimigo ao lado de Esparta, mas o mais difícil era fazer com que os messênios se decidissem. Epaminondas, que os conhecia como homens supersticiosos, achou bom espalhar um oráculo, que predizia a esse povo a volta para a antiga pátria. Aparições miraculosas atestaram que os deuses nacionais dos messênios, que os haviam traído à época da conquista, voltavam a ser-lhes favoráveis. Esse povo tímido decidiu-se então a voltar para o Peloponeso, atrás de um exército tebano. Mas tratava-se de saber onde levantariam a cidade, porque nem se podia pensar em reocupar as antigas cidades do país: elas haviam sido manchadas pela conquista. Para escolher o lugar em que se estabeleceriam, não tinham o recurso ordinário de consultar o oráculo de Delfos, porque a Pítia estava do lado de Esparta. Por felicidade, os deuses possuíam outros meios de revelar suas vontades; um sacerdote dos messênios teve um sonho, no qual um dos deuses de sua nação lhe apareceu, e lhe disse que ia estabelecer-se sobre o monte Itoma, e que convidava o povo a segui-lo. Sendo assim indicado o local da nova cidade, restava ainda conhecer os ritos necessários para a fundação, mas os messênios os haviam esquecido; eles não podiam, aliás, adotar os dos tebanos, nem de outro povo qualquer, e não sabiam como construir a cidade. Muito a propósito, outro messênio sonhou que os deuses mandaram que se dirigisse ao monte Itoma, procurasse um seixo, que se encontrava ao pé de um mirto, e cavasse a terra nesse local. Ele obedeceu, e descobriu uma urna, e nessa urna folhas de estanho, sobre as quais se encontrava gravado o ritual completo da cerimônia sagrada. Os sacerdotes imediatamente fizeram cópias, e o inscreveram nos livros sagrados. E ninguém deixou de acreditar que a urna fora ali depositada por um antigo rei dos messênios, antes da conquista do país.
Uma vez de posse do ritual, iniciou-se a fundação. Os sacerdotes, em primeiro lugar, ofereceram um sacrifício; invocaram os antigos deuses de Messênia, os Dioscuros, o Júpiter de Itoma, os antigos heróis, os antepassados conhecidos e venerados. Todos esses protetores do país, aparentemente o haviam abandonado, de acordo com as crenças dos antigos, no dia em que o inimigo tomou posse de suas terras; conjuraram-nos então a voltar. Pronunciaram-se fórmulas, que deviam ter por efeito determiná-los a habitar a nova cidade em comum com os cidadãos. Isso é que era importante: fixar os deuses em sua companhia era o que mais lhes importava, e podemos acreditar que a cerimônia religiosa não tivesse outra finalidade. Assim como os companheiros de Rômulo cavaram um fosso, e acreditaram depositar nele seus antepassados, assim os contemporâneos de Epaminondas chamavam a si seus heróis, seus antepassados divinos, os deuses do país. Acreditavam assim, por meio de fórmulas e de ritos, ligá-los ao solo que iam ocupar, e encerrá-los dentro dos limites que iam traçar. O primeiro dia transcorreu com esses sacrifícios e essas preces. No dia seguinte traçaram-se os limites, enquanto o povo cantava hinos religiosos.
Surpreendemo-nos, à primeira vista, quando vemos nos autores antigos que não havia cidade, por mais antiga que fosse, que não pretendesse conhecer o nome do fundador e a data da fundação. É que uma cidade não podia perder a lembrança da cerimônia sagrada que havia marcado seu nascimento, porque cada ano celebrava esse aniversário por um sacrifício. Atenas, como Roma, também festejava seu dia natalício.
Muitas vezes acontecia que colonos ou conquistadores se estabeleciam em uma cidade já construída. Não tinham necessidade de construir casas, porque nada lhes impedia a que ocupassem as dos vencidos. Mas eram obrigados a observar a cerimônia da fundação, isto é, tinham de assentar o próprio lar, e fixar em sua nova morada os deuses nacionais. É por isso que lemos em Tucídides e em Heródoto que os dórios fundaram Esparta, e os jônios Mileto, embora esses dois povos tenham encontrado as cidades já construídas, e muito antigas.
Esses costumes nos dizem claramente o que era uma cidade no pensamento dos antigos. Fechada dentro de limites sagrados, estendendo-se ao redor do altar, a cidade era o domicílio religioso, que recebia deuses e homens. O que Tito Lívio dizia de Roma, qualquer um podia dizer da própria cidade, porque, se havia sido fundada de acordo com os ritos, recebera em seu recinto os deuses protetores, que estavam como que implantados em seu solo, e não deviam abandoná-lo jamais. Toda cidade era um santuário; toda cidade podia ser chamada santa.
Como os deuses estavam para sempre ligados à cidade, o povo não devia abandonar nunca o local onde seus deuses estavam fixados. A esse respeito havia um acordo mútuo, uma espécie de contrato entre deuses e homens. Os tribunos da plebe disseram certo dia que Roma, devastada pelos gauleses, não era mais que um montão de ruínas, e que a cinco léguas dali havia uma cidade completamente construída e bela, bem situada, e sem habitantes, desde que os romanos a haviam conquistado; era necessário, pois, abandonar Roma destruída, e mudar para Veios. Mas o piedoso Camilo respondeu-lhes: “Nossa cidade foi fundada religiosamente; os próprios deuses designaram seu lugar, e nela se estabeleceram em companhia de nossos pais. Embora em ruínas, ela é ainda a morada de nossos deuses nacionais.” — Os romanos ficaram em Roma.
Algo de sagrado e de divino ligava-se naturalmente àquelas cidades que os deuses haviam levantado, e que continuavam a impregnar, com sua presença. Sabemos que as tradições romanas prometiam a Roma a eternidade. Cada cidade tinha tradições semelhantes. Todas as cidades eram construídas para serem eternas.
Autor: Fustel de Coulanges - A Cidade Antiga . Fonte: Ebooks Brasil

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