terça-feira, 19 de novembro de 2024

Em nome de Deus


Por Frederico Füllgraf.

Mal havia sido empossado fazia uma semana, em 8 de janeiro de 2023, o governo do presidente Luis Inácio Lula da Silva sofreu uma tentativa violenta de golpe de Estado. Naquele dia, cerca de 4.000 bolsonaristas – apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro, derrotado por Lula nas eleições de outubro de 2022 – viajaram de todo o Brasil para a capital federal, Brasília, em ônibus financiados por grandes proprietários de terras, políticos e igrejas. Apenas observada por efetivos policiais inoperantes, a turba atacou a sede do governo, o Congresso e o Supremo Tribunal Federal, vandalizando móveis, obras de arte e equipamentos eletrônicos no valor de 3,8 milhões de euros ou 20,7 milhões de Reais. O ataque foi acompanhado por berreiros coletivos e faixas bolsonaristas que questionavam a vitória de Lula da Silva e cobravam uma “intervenção” militar.

Dos cerca de 4.000 manifestantes – que até mesmo meios de comunicação conservadores, como do poderoso grupo midiático O Globo, descreveram como “terroristas” – a metade foi presa. Até meados de 2024, dezenas deles foram acusados de ataques ao Estado Democrático de Direito, tentativa de golpe de Estado e graves danos materiais, e condenados a penas de até 17 anos de prisão. As investigações da Polícia Federal revelaram que a Policia Militar de Brasília e militares do Exército, da Aeronáutica e da Marinha – em especial generais que migraram para a política e que integravam o governo Bolsonaro – estiveram envolvidos na tentativa de golpe.

No entanto, pastores e bispos de igrejas evangélicas também tiveram papel ativo na tentativa de golpe.

Diversas publicações brasileiras tiveram acesso a interrogatórios da Polícia Federal, nos quais baderneiros presos afirmaram terem sido mobilizados por líderes de suas igrejas em várias regiões do Brasil – entre elas a “Igreja Presbiteriana Renovada”, a “Igreja Batista” e a igreja “Assembleia de Deus” – que financiaram suas caravanas de ônibus para Brasília.

Poucos dias após a tentativa de golpe, Silas Malafaia, líder da igreja Assembleia de Deus Vitória de Cristo, criticou as prisões, lançando um ataque ao Supremo Tribunal Federal. Prender pessoas “sem base legal” seria “antidemocrático”, afirmou. Malafaia não apenas é o bispo evangélico mais influente do Brasil. Titular de uma fortuna milionária, é também o segundo bispo mais rico do país no ranking encabeçado por Edir Macedo, presidente da “Igreja Universal do Reino de Deus”, que é proprietária da segunda maior emissora de televisão brasileira, o SBT (*), e cujo patrimônio é estimado em mais de dois bilhões de dólares.

O papel de Malafaia na tentativa de golpe e no cenário extremista do espectro evangélico soa como declaração de guerra à constitucionaidade democrática. No auge da campanha eleitoral, no final de 2022, por exemplo, o bispo pediu orações de suas congregações para boicotar as urnas eletrônicas que, segundo ele, seriam utilizadas para cometer fraudes eleitorais a favor de Lula da Silva. Ao fazê-lo, o bispo juntou-se à campanha travada por Bolsonaro e alguns dos seus generais para desacreditar o sistema de urnas que, ao contrário, tem sido elogiado em todo o mundo – do Centro Carter às Nações Unidas – pela sua segurança e eficiência.

Cerca de um ano depois, o bispo passou a atacar abertamente o juiz Alexandre de Moraes do Supremo Tribunal Federal, que de meados de 2022 a meados de 2024, igualmente exercia a presidência de turno do Tribunal Supremo Eleitoral. Nessa função, desde 2019, Moraes também encabeçava as investigações do Judiciário brasileiro sobre a veiculação de fake news por perfis da extrema-direita nas redes sociais, que favoreceram notavelmente a criminalização de Lula da Silva e a vitória de Jair Bolsonaro nas eleições de 2018.

Numa manifestação politica, no final de fevereiro de 2024 na metrópole São Paulo, com a presença de 185 mil bolsonaristas convocados contra as investigações de Moraes sobre a presumível liderança de Jair Bolsonaro na tentativa de golpe, Malafaia bradou à multidão que revelaria o “conspiração maligna” contra Bolsonaro. Proibido judicialmente de convocar a manifestação sob ameaça de prisão, Bolsonaro entregara a convocação ao bispo Malafaia, que alegou também ter financiado o evento.

Em nova manifestação, no início de setembro de 2024 e no mesmo lugar, o bispo cobrou o impeachment e a prisão de Moraes, bem como a anistia de Bolsonaro e de seus apoiadores presos, com as palavras “O lugar de criminosos é a prisão!” Embora tenham sido abertas investigações contra Malafaia por ataques antidemocráticos ao poder judicial, este absteve-se provisoriamente de acusação formal. De todo modo, parece pouco provável que a campanha de Malafaia pela cassação do juiz tenha qualquer hipótese de sucesso no Senado brasileiro, competente para posicionar-se sobre o caso.

Mas como se explica o atual poder do cenário evangélico no Brasil, bem como as origens de seus posicionamentos tão flagrantemente extremistas?

As origens deste processo remontam a mais de meio século.

Em 1969, em nome do presidente dos EUA, Richard Nixon, o então governador de Nova York, Nelson Rockefeller, realizou uma viagem por diversos países latino-americanos, com o objetivo de promover os EUA como modelo de desenvolvimento e liberdade e como “protetor contra o comunismo”. No seu relatório final (The Rockefeller Report), o herdeiro do clã bilionário Rockefeller recomendou à presidência dos EUA e à CIA que promovessem a expansão de igrejas evangélicas à América Latina, pretextando que aqui o catolicismo se tornara um “perigoso centro de potencial revolucionário”, referindo-se à doutrina progressista da Teologia da Libertação que se expandia na época. Obedecendo ao chamado, a Fundação Rockefeller passou a promover comunidades Mórmons e Testemunhas de Jeová na América Latina. Mas o Congresso dos EUA e destinou milhões de dólares americanos para o envio de missões evangélicas e a construção de templos e igrejas.

As denominações protestantes tradicionais e as igrejas da Reforma, como as Igrejas Luterana (IECLB) e Presbiteriana do Brasil, têm suas raízes na migração da Europa para o Brasil no século 19 e raramente questionaram o sistema social e político do país anfitrião. Muito diferente foi o que ocorreu no novo espaço evangélico de predomínio neopentecostal que se fortaleceu no final da década de 1970 como resultado do Relatório Rockefeller. De modo crescente, sua doutrina introduziu pregações tais como a “teologia da prosperidade” e o “empreendedorismo”, acompanhadas de uma agenda para o estabelecimento de um estado autoritário, teocrático.

Um dos primeiros beneficiários da ofensiva de Rockefeller no Brasil foi o ex-funcionário público e futuro bispo, Edir Macedo, fundador da Igreja Universal do Reino de Deus, em 1977. A reboque da Igreja Universal introduziram-se numerosas confissões e seitas neopentecostais, algumas com nomes bizarros, outras com ambição de poder, tais como a Igreja Evangélica Sara Nossa Terra ou a Igreja Mundial do Poder de Deus. Atualmente, mais da metade das dezenas de milhares de capelas e igrejas cristãs no Brasil pertencem a denominações neopentecostais, com mais de uma dezena de novos templos inaugurados todos os dias.

Com uma agenda moralista, o campo neopentecostal se auto-define como espécie de “vanguarda dos valores cristãos e da família“, da qual o governo de Jair Bolsonaro emprestou seu lema “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”. Ameaçando a tradição republicana, Bolsonaro tentou contrabandear para a esfera do Estado Laico brasileiro a agenda neopentecostal que, desde os dois primeiros governos progressistas de Lula da Silva, de 2003 a 2010, usava os púlpitos das igrejas para desencadear uma campanha agressiva contra os direitos das mulheres, como o aborto após o estupro, contra a população indígena e afro-brasileira e também as minorias sexuais.

Ao mesmo tempo, crescia o apetite do campo neopentecostal para intervenção ativa na política, com pastores e bispos disputando cargos eletivos nas duas câmaras do Congresso. Ocupando, desde as eleições de 2022, 132 das 513 vagas da Câmara dos Deputados, a Frente Parlamentar Evangélica (FPE) é a segunda a bancada mais numerosa no Congresso brasileiro atrás da Frente Parlamentar de Agricultura e Pecuária (FPA), com 324 vagas, contrastando notavelmente com a bancada de apenas 69 deputados do Partido Trabalhadores (PT) governista.

A extrema-direita evangélica do Brasil também têm supremacia absoluta nas redes sociais.

De acordo com uma investigação realizada por pesquisadoras/es da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), financiada pela fundação alemã Heinrich Böll, oito dos dez extremistas de direita mais influentes em redes sociais como o X, pertencem ao campo evangélico neopentecostal. A pesquisa leva em conta estatísticas recentes, segundo as quais cerca de 30 por cento da população brasileira que soma 230 milhões de habitantes, se auto-definem a grosso modo como evangélicos. Desse total, a facção evangélica-neopentecostal de extrema direita mal responde por mais de dez por cento.

No entanto, de acordo com os pesquisadores, essa minoria radical tem amplo acesso à mídia e recursos financeiros, e está muito bem conectada internacionalmente. Liderados pelo deputado Eduardo Bolsonaro, filho do ex-presidente Jair Bolsonaro – católico de origem, mas evangélico por batismo – os extremistas evangélicos mantêm excelentes conexões com a extrema-direita dos EUA, liderada pelo ex-conselheiro de Donald Trump, Steve Bannon, com o partido fascista espanhol Vox e a extrema-direita da Hungria, encabeçada pelo presidente Viktor Orbán. Em décadas passadas, a extrema-direita brasileira não gozava de popularidade, nem possuía uma base social, ou porque celebrava a ditadura militar (1964-1985) e seus crimes, ou porque era apoiada por skinheads e neonazistas. Isso mudou com a infiltração e a cooptação do campo religioso: “Hoje, os evangélicos constituem uma base social de massa para o movimento de extrema-direita “, adverte o cientista político Joanildo Burity, um dos autores da pesquisa financiada pela fundação Heinrich Böll.

A religião armada: o exército privado e o projeto teocrático da Igreja Universal Em trama paralela, há vários anos, a Igreja Universal do bispo Edir Macedo desenvolveu um curioso e preocupante programa intitulado “Universal nas Forças Policiais” (UFP). Para ilustrá-lo, um vídeo de 2019 afirma que quase um milhão de policiais das PMs de vários estados e seus familiares participaram de palestras, eventos, cafés da manhã, orações e bênçãos coletivas do UFP, que incluiu ainda a doação de “meio milhão de Bíblias e literatura“.

A Universal afirma que seu objetivo foi aproximar os fardados do evangelho pastoral. Como agradecimento, integrantes das PMs teriam assessorado a Universal na criação de um “exército privado” da igreja, ao qual muitos policiais aderiram como voluntários. Em outras palavras: é o poder religioso de arma na mão.

Alinhados com o discurso armamentista e citando a Bíblia, em 2023, pastores evangélicos exigiram que a posse privada de armas de fogo fosse permitida novamente. Em 2019, o governo Jair Bolsonaro havia suspendido as severas restrições legais impostas durante as gestões anteriores do presidente Lula, com isso virtualmente quintuplicando a aquisição privada de armas até 2022. Porém, já no início de seu terceiro mandato, em 2023, o governo Lula da Silva voltou a restringir o boom armamentista da gestão Bolsonaro.

Enquanto isso, longe do cenário brasileiro, abrigado em sua luxuosa cobertura em Miami, nos EUA, o bispo Edir Macedo se desempenha como “intelectual orgânico” ou “pregador literário” do campo evangélico, desenvolvendo certa base argumentativa para a extremadireita evangélica. Entre as obras de sua autoria destaca-se o livro “Plano de Poder“, editado em 2008, um genuíno manual político para a tomada do poder, que não se limita às instruções religiosas, mas apela à resistência política, à tomada do poder e à construção de um Estado teocrático autoritário.

Vários sinais emitidos durante os dois primeiros anos de seu terceiro governo, indicam que o presidente Lula da Silva busca a reaproximação com o campo religioso evangélico.

O presidente e seus assessores estão cientes de que o PT tem alguma responsabilidade pela ofensiva evangélica, esvaziando sua antiga base social e política, particularmente nos subúrbios pobres das grandes cidades, deixando para trás um vácuo paulatinamente ocupado e influenciado por confissões neopentecostais. O desafio do governo Lula consiste, portanto, em reconstruir sua base social nas periferias urbanas, missão que poderia ser exitosa sobretudo no diálogo com as mulheres. Diversas pesquisas revelaram que nas eleições de 2022, não poucas mulheres evangélicas votaram em Lula e não em Bolsonaro. Em seus depoimentos, muitos eleitoras, em sua maioria pobres, criticaram severamente as atitudes de Bolsonaro, consideradas incompatíveis com os valores cristãos. Segundo as mulheres entrevistadas, o ex-presidente não apenas era pródigo no emprego de xingamentos e palavrões, como não respeitava a honradez de seu mandato e muito menos a vida humana. As mulheres não esqueceram que, constantemente, Bolsonaro insultava as mulheres em público, negando-lhes, por exemplo, o direito à remuneração justa por seu trabalho ou desdenhando a violência doméstica, da qual milhões de mulheres brasileiras são vítimas.

Porém, nessa busca do diálogo, o terceiro governo Lula enfrenta outro sério desafio, tornado desvantagem. Ocorre que, de acordo com pesquisas recentes, 40 por cento da população rejeita as políticas econômicas e sociais do governo Lula. Como isso é possível? Pois significa que os próprios favorecidos parecem não perceber a melhoria das suas condições de vida, ou são enganados por notícias falsas da extrema-direita. O governo Lula tem que atualizar suas técnicas de comunicação, pois parece não ter entendido ainda a força e o poder mobilizador das redes sociais dominadas pela extremadireita.

Fonte: https://jornalggn.com.br/politica/radicais-de-direita-em-nome-de-deus-por-frederico-fullgraf/

Nota: o autor confundiu-se. Edir Macedo é dono da Record.

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