Edição: Spensy Pimentel.
Desde 2010, quando eu tinha 9 anos, fui testemunhando o crescimento da presença de representantes de igrejas evangélicas dentro do meu território, a Terra Indígena (TI) Capoto/Jarina, no norte de Mato Grosso. Foi na aldeia onde mora até hoje a minha família, na Kapot, que foi instalada em 2009 a primeira igreja evangélica da nossa TI. No princípio, poucos dos meus parentes aceitavam ou aderiam a suas doutrinas, mas rapidamente o movimento cresceu, de forma descontrolada. Pastores e missionários passaram a entrar cada vez mais em nosso território, ensinando cantos e doutrinas evangélicas na nossa língua e influenciando cada vez mais a forma de pensar da minha comunidade.
Minha preocupação foi crescendo ao perceber como as nossas manifestações culturais, que até pouco tempo antes eram muito fortes, foram se enfraquecendo. O entendimento dos parentes foi ficando mais simplificado, como se tudo fosse uma questão de escolher entre o bem e o mal que são pregados dentro das igrejas. Como na história da Eva e Adão, que tiveram os olhos abertos depois que ela mordeu uma fruta pecaminosa, após ter sido enganada por uma serpente: Eva começou a sentir vergonha de estar É como se os parentes começassem a sentir que estão pecando ao estarem nus participando das danças tradicionais como nossos ancestrais dançavam antigamente.
O último encontro conhecido como “O Chamado do Cacique Raoni“, convocado pela nossa liderança mais conhecida da TI Capoto/Jarina, foi realizado em 2023, na aldeia Piaraçu. O evento reuniu representantes de povos indígenas de todo o Brasil e, na reunião, eles apresentaram os desafios que estão vivendo dentro de seus territórios. Cada povo trouxe para o evento um canto tradicional de fortalecimento e a forma de boas-vindas. Naquele dia, um representante do povo Mebengõkrê Kayapó, da TI Kayapó do Pará, apresentou um canto cristão em nossa língua materna. As lideranças presentes se decepcionaram com esse abandono dos cantos tradicionais, tão importantes nos momentos de união com outros povos para a luta.
Durante a minha trajetória de ativista ao lado das lideranças, percebi que essa presença evangélica cresceu muito nas manifestações culturais. São cada vez mais frequentes eventos organizados pelas igrejas, e as novas gerações estão crescendo doutrinadas pelos pastores e com cada vez menos da conexão Mekukradja (cultural), nossa forma de pensar com nossos mais velhos. Somos a juventude! Nossos mais velhos esperam que, de alguma forma, a gente registre e transmita para a próxima geração o conhecimento da nossa origem, Mebengõkrê kukradja (cultura dos Kayapó).
São muitas dúvidas que ainda persistem: qual é a origem destas igrejas? Quais são os interesses delas em manipular os nossos pensamentos e mudar a nossa forma de ser? Por que o meu povo está aceitando passivamente esse processo? Por que muitas vezes não o enxergam como ameaça? Quais as analogias entre os processos de colonização e catequização das igrejas desde a chegada dos europeus em 1500 nos nossos territórios até os dias de hoje?
Por que isso importa?
O povo Kayapó, um dos mais conhecidos do país, vive atualmente um profundo debate interno sobre a conversão religiosa que vem acontecendo em suas aldeias nas últimas décadas.
O movimento que iniciou-se na TI Kayapó, no Pará, nos últimos 15 anos, tem avançado pela TI Capoto/Jarina, no norte de Mato Grosso.
Alguns dos principais líderes desse povo indígena, como os caciques Raoni e Megaron, declaram-se preocupados com o futuro de seu povo, ao constatar que os convertidos estão se negando a participar de celebrações tradicionais.
No Pará, onde tudo começou
Mokuka Kayapó, liderança da TI Kayapó do Pará, fundador da aldeia Moikarako e o primeiro cineasta indígena do povo Mebengõkrê Kayapó, conta que os primeiros missionários evangélicos chegaram à aldeia Kubenkrakei, nos anos 1960, com o objetivo de traduzir a Bíblia para a língua kayapó. “Naquela época, não tínhamos muito conhecimento sobre a língua portuguesa e não participamos muito da tradução que eles estavam fazendo da Bíblia e da primeira canção que o missionário chamado Horácio produziu”, conta ele.
O site da Missão Evangélica aos Índios do Brasil (Meib), uma espécie de consórcio que congrega diversos grupos dedicados a converter povos indígenas, explica que a entidade surgiu em 1967, a partir da iniciativa de missionários estrangeiros. Os Kayapó estavam, desde o início, entre os principais povos visados por esses grupos. Atualmente, contudo, segundo a Meib, a estratégia mudou e não consiste mais em levar os missionários até as terras indígenas. “Hoje o trabalho de plantação e edificação de igrejas indígenas é realizado na sua totalidade por líderes indígenas das etnias Guajajara, Kayapó e Xicrin”, indica texto no site. A presença de missionários da Meib ainda acontece, segundo a entidade, entre indígenas do Pará e Maranhão.
Por meio do meu trabalho como cineasta do Coletivo Beture, tive a oportunidade de buscar mais informações em oito aldeias sobre crescimento das igrejas com a chegada dos missionários. Há uma grande ameaça vista pelos olhares dos mais velhos, que priorizam os costumes tradicionais. Hoje, é frequente, em várias aldeias, ver parentes Kayapó que ficam nas igrejas cultuando, enquanto, lá fora, estão acontecendo as danças tradicionais. Nas aldeias Aukre e Moikárako, que estavam iniciando os processos para o início das festas das mulheres (Menire Biok e a festa Bokaingó), percebi que as igrejas realizavam, na mesma data das festas tradicionais, eventos especiais como congressos das mulheres ou mesmo cultos normais, como os que são feitos todos os domingos. Enquanto as pessoas estão cantando os cantos tradicionais no pátio da aldeia, os evangélicos entoam na igreja hinos, louvores e orações para que Deus os abençoe e cuide deles, fazem a leitura de versículos da Bíblia em língua Kayapó.
Na aldeia Aukre, uma liderança entre as mulheres, Ngrenhkàmôrô Kayapó, me disse o seguinte nesse dia: “Está tendo uma festa tradicional das mulheres (Menire Biok), e nessa festa temos o costume de trazer lenhas e deixar em frente à casa dos donos da festa e ensaiar nossos cantos. Vi que estava tendo congresso das mulheres [encontro dos evangélicos] e senti falta da presença de mais mulheres”. “Eu como liderança mulher sempre incentivo todos a praticarem nossas tradições, fazendo corte tradicional de cabelo, pinturas corporais e a corda na perna das crianças que fazemos. Não podemos deixar de lado aquilo que aprendemos com nossos avós, porque é importante ensinarmos as crianças para ter o conhecimento que vem dos nossos ancestrais.”
Tore Metuktire, liderança mulher e anciã, da aldeia Kapot, da TI Capoto/Jarina, relembra como foi o processo de avanço dos evangélicos entre os Kayapó: “Na década de 70, eu tinha 8 anos de idade e andava com seus avôs conhecendo a histórias dos missionários que chegaram na nossa terra indígena, que vieram por um rio tendo contato com outros povos que se encontravam no caminho que conecta com o rio Xingu”. “Quando chegaram na TI, lá começaram seus ministérios na aldeia que antigamente era chamada de Poroi, antes da aldeia Metuktire. Fizeram tudo aquilo que foi ensinado a eles: levar a palavra, pregar, salvar e abrir igrejas para capacitar mais homens e mulheres para levar a palavra. E então, a partir daí, as igrejas foram se espalhando.”
Tore passou a frequentar os cultos, mas lembra que, no início, não existiam igrejas: “Reuníamos sempre em uma casa durante a noite para adorar a Deus nas canções feitas na nossa língua, não havia casas de igrejas, e não tinha muito frequentadores como nos dias de hoje”.
Hoje, apurei que existem igrejas evangélicas construídas em pelo menos cinco das oito aldeias da TI Kayapó do Pará e em três das 12 aldeias da TI Capoto/Jarina (Piaraçu, Metuktire e Kapot, as três maiores). As lideranças das aldeias dizem não ser favoráveis à presença de não indígenas nas aldeias para promover a formação dos evangélicos indígenas. Na aldeia Kapot, onde foi construída a primeira igreja da TI Capoto/Jarina, em 2009, o templo é chamado de Jeju inho kikre (Casa de Deus, em língua Kayapó), e quem é responsável por ele é o Bepka_êkti Metuktire.
O futuro
Para falar sobre os possíveis impactos dessa conversão evangélica para o futuro dos Kayapó, entrevistei dois dos nossos líderes mais famosos, os caciques Megaron Txukarramãe e Raoni Metuktire. Quis escutar os pensamentos das lideranças que têm olhares de nossos ancestrais, pois são eles que ainda carregam muitas histórias do povo Mebengõkrê antigamente e que se preocupam com o futuro da geração que irá ocupar seus lugares.
O cacique Raoni Metuktire, conhecido por sua luta pela preservação da Amazônia e a proteção dos territórios, é uma das vozes mais conhecidas na luta dos povos indígenas. Quando perguntei sobre o que pensava a respeito desse avanço das igrejas, ele disse o seguinte:
“Ao olhar o futuro, sinto um misto de tristeza por estarem substituindo nossas tradições e os cantos tradicionais por essas músicas cristãs na língua tradicional. Não falo apenas para o povo Mebengõkrê Kayapó, e sim para aqueles que perderam os traços de seu povo desde o primeiro contato com o não indígena, que hoje lutam com suas vidas tentando recuperar seus territórios e a língua materna.
“A minha jornada na luta pelos povos indígenas se iniciou ao lado dos irmãos Villas-Bôas, que me ensinaram a língua portuguesa dos kuben (não indígenas) e principalmente a entender as propostas das igrejas que se multiplicaram na maioria dos povos. Naquela época havia conflitos de povos, devido à ocupação das terras e àqueles que não queriam permitir que o kuben tivesse aproximação de seus povos. Algumas aldeias tiveram suas terras exploradas por garimpeiros e madeireiros, ainda faziam os próprios moradores de suas terras trabalhar para eles.
“Alguns kuben não querem que tenhamos o reconhecimento por sermos indígenas. Portanto, fui entendendo a importância da construção de união dos povos, comecei a viajar para convencer os demais desde a minha juventude. Porque só nós temos a força de defender nossas terras e os nossos direitos. Da forma como a igreja se apresenta e o mundo contemporâneo nos diminui mais ainda como originários, não podemos permitir que outra cultura que não seja a nossa substitua aquilo que faz parte da nossa identidade.
“É triste saber que chegamos neste caminho em que há tanta floresta sendo destruída por queimadas. Ainda temos força, devemos manter nossos direitos preservados, devemos manter nossa soberania, precisamos que nossa cultura seja respeitada! Precisamos proteger a floresta para que nossos filhos e netos possam existir, porque sem ela nós não existiríamos. Queremos respeito com a nossa cultura dentro de nossa terra, queremos viver da maneira que nossos pais e ancestrais nos ensinaram.”
Já o cacique Megaron Txukarramãe disse o seguinte:
“Vejo mudanças nos parentes que vão para cidade e voltam para suas casas nas aldeias. Sabemos que cada povo tem os seus próprios costumes tradicionais, como festas, comidas, rituais etc. Hoje em dia quase ninguém participa ou realiza nossas tradições. Antigamente havia uma força e a vontade de realizar uma festa para todos participarem e demonstrar a vontade que percorre nas veias. E não vejo mais isso. Muitas das vezes somos considerados ‘índios falsos’ pelos brancos por estarmos nas cidades e não nas aldeias. Fico preocupado com aqueles que moram nas cidades e escutam muita barbaridade, sofremos muito preconceito, e isso é um perigo para a saúde mental da criança e do jovem.
“Diz aquela frase que, se entrar na igreja, você pode mudar. E por que não acontece isso? Vejo muitas pessoas que entraram nas igrejas e continuam praticando violências, abusos, bebendo e traindo suas esposas etc. Se fazem de inocentes.
“Traduziram a Bíblia sem terem muito conhecimento do povo Mebengõkrê e a participação dos parentes. Precisamos criar um livro para expandir a diversidade da nossa cultura e não permitir que os brancos se aproveitem da gente para terem conhecimento em cima de nós. Não podemos permitir que substituam nossas tradições. Não queremos que nos ensinem o modo de usar as nossas culturas.
“Nossos territórios são sagrados, cheios de histórias, e não podemos permitir que algum branco entre e tente nos tirar [isso]. Lá é onde ainda respiramos bem e comemos comidas saudáveis plantadas pelas nossas mãos.
“Não é bom as igrejas, as missões religiosas, entrarem na nossa área, na nossa terra, para mudar nosso costume. Isso é muito perigoso, muito ruim, para nosso ritual, nosso conhecimento, nossa língua, para nós como originários da terra brasileira. Nós temos que manter nosso costume. Também fico muito preocupado com essa mudança que está acontecendo, e a gente não quer que nosso povo mude e acabe com nosso costume.”
Fonte, citado parcialmente: https://apublica.org/2024/10/kayapo-conversao-evangelica-gera-temor-por-abandono-de-tradicoes/
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