terça-feira, 22 de outubro de 2024

Centro xamânico inaugurado no Rio

Por Carlos Minuano.

"O xamanismo pode ser uma poderosa ferramenta para lidar com algumas das mazelas modernas mais difíceis de tratar: a crise ecológica e a crescente epidemia de doenças mentais, incluindo o vício em drogas", afirma a antropóloga francesa Frédérique Apffel-Marglin, nas primeiras páginas de "Iniciação pelos Espíritos" (editora EB Studio), escrito em coautoria com o xamã peruano, Randy Chung Gonzales.

Gonzales também está à frente do LIS (Lar e Integração do Ser) um centro pioneiro no Brasil dedicado ao vegetalismo, um complexo sistema de conhecimento, praticado há séculos por xamãs da selva amazônica peruana, que tem como base principal o uso ritual da ayahuasca, considerada por eles uma "planta professora" dotada de um espírito capaz de falar, curar e ensinar.

O livro, que narra a singular jornada iniciática de Gonzales pelo mundo xamânico, já foi publicado em diversos países e agora chega ao Brasil com o apoio do LIS. Os lançamentos estão previstos para este mês no Rio de Janeiro e em novembro em São Paulo (mais detalhes abaixo).

Na obra, Apffel-Marglin, estudiosa da espiritualidade e dos rituais indígenas há décadas, contextualiza o xamanismo uma das práticas religiosas mais antigas da humanidade, segundo historiadores e como ele ressurge com força nos dias atuais, em paralelo ao renascimento dos estudos científicos sobre psicodélicos, após séculos de perseguição. Ela explora também, em profundidade, o tratamento de doenças modernas por meio da medicina tradicional dos povos originários.

Mas, a principal contribuição da publicação, sem dúvida, é apresentar ao público brasileiro o ainda pouco conhecido vegetalismo peruano, agora acessível no LIS, inaugurado há poucos meses em Areal, município da região serrana do estado do Rio de Janeiro, próximo a Itaipava.

Localizado em meio à Mata Atlântica, o centro realiza mensalmente retiros chamados "dietas vegetalistas", que duram nove dias. Esses retiros combinam isolamento na selva, em cabanas individuais, com restrição alimentar, purgas (para desintoxicação), e uso das chamadas plantas "maestras" ou "professoras", como a ayahuasca, além de banhos de ervas e práticas corporais.

Os trabalhos são conduzidos e supervisionados pelo curandeiro peruano Randy, já mencionado, e pela psicóloga brasileira Karla Perdigão, cofundadora do centro, além de outros profissionais.

"Temos uma equipe multidisciplinar de psicólogos, enfermeiros e terapeutas que apoia cada participante no desenvolvimento do processo vivido durante e após a dieta", detalha Perdigão.

O carro-chefe dos trabalhos são as dietas de nove dias, mas o centro também está oferecendo vivências menores, em retiros de três dias. Os dois formatos contam com espaços de escuta e de integração. A psicóloga ressalta que antes de iniciar o processo, é feito uma avaliação cuidadosa de cada participante.

Prática médica ancestral

A cofundadora do LIS, a psicóloga Karla Perdigão, relata que o universo da cura sempre esteve presente em sua vida, desde a infância.

"Minha avó era parteira e benzedeira, fazia remédios com ervas medicinais. Mais tarde, na psicologia, o que mais me atraiu foram os estudos sobre o inconsciente."

"Eu também me identificava muito com a questão da reforma psiquiátrica", acrescenta Perdigão. Ela teve uma atuação importante nessa área em Minas Gerais, onde foi gestora municipal de saúde em Itaguara. Lá, estruturou um serviço de saúde mental e, em Belo Horizonte, desenvolveu políticas focadas no cuidado em liberdade, fora dos centros manicomiais.

Segundo a psicóloga, o incômodo com a prática clínica em questões como a penalidade social dos manicômios e a hipermedicação contribuiu para sua aproximação com a medicina tradicional indígena. "A espiritualidade sempre esteve presente na minha vida, mas durante minha formação em psicologia, acabei me afastando bastante dela."

Em 2014, no Brasil, Perdigão tomou ayahuasca pela primeira vez, no contexto sincrético dos grupos religiosos ayahuasqueiros. No ano seguinte, conheceu o Takiwasi, um centro de pesquisa e tratamento em Tarapoto, na Amazônia peruana, que há décadas trabalha na recuperação de pessoas com uso problemático de drogas por meio de um tratamento que combina ferramentas da medicina tradicional indígena e da psicologia.

O método empregado no centro peruano é o mesmo que o LIS trouxe agora para o Brasil: as dietas vegetalistas. "É uma prática médica ancestral, milenar, que ainda está viva em muitos povos amazônicos", explica Jaime Torres, diretor-executivo do centro Takiwasi.

Segundo Torres, o centro peruano oferece uma espécie de ponte entre os recursos da medicina tradicional e o contexto não indígena da sociedade moderna, com seus problemas contemporâneos, como vícios, má alimentação, estresse e burnout, entre outros. Sem se concentrar exclusivamente no tratamento de dependências, essa também é a proposta do LIS.

Perdigão relata que participou de várias dietas, cerimônias e outras práticas no Takiwasi, até começar a colaborar voluntariamente no atendimento psicológico dos pacientes, junto à equipe terapêutica do centro em Tarapoto. "Tive a oportunidade de me envolver profundamente com a proposta terapêutica deles."

Foi durante esse processo que ela conheceu o curandeiro peruano Randy, que hoje conduz as dietas no LIS. Ele passou por seu processo pessoal de iniciação no xamanismo com o auxílio da equipe do Takiwasi.

"Voltei muito tocada por essa experiência e com um desejo profundo de construir algo nesse caminho aqui no Brasil, dentro da minha clínica", afirma Perdigão. Ela ressalta que, para a estruturação do projeto, foi essencial a colaboração da psicóloga Susana Bustos, codiretora da Escuela de Psicovegetalismo, que oferece cursos e atendimentos online, e docente do Center for Psychedelic Therapies and Research do California Institute of Integral Studies, nos Estados Unidos.

Segundo Perdigão, sua colega Susana Bustos é uma referência na integração terapêutica de estados expandidos de consciência através do uso ritual de plantas psicodélicas, com mais de 20 anos de experiência ao lado do xamã peruano Ashaninka, Juan Flores, que vive em Pucallpa, na Amazônia peruana.

Ela explica que Bustos, que hoje faz parte da equipe do centro, juntamente com outros psicólogos, médicos e profissionais de diferentes áreas interessados nessa conexão com a medicina tradicional indígena, foi fundamental na estruturação das bases do projeto do LIS.

'Tudo tem alma"

Para Karla Perdigão, a questão da apropriação cultural foi um ponto sensível no processo de integração do vegetalismo com os métodos terapêuticos ocidentais. "O uso terapêutico da ayahuasca possui muitas camadas delicadas que precisam ser tratadas com cuidado", afirma.

Segundo ela, no LIS há uma discussão ética contínua sobre a abordagem terapêutica em relação ao conhecimento tradicional. "Existem diversos aspectos que precisam ser respeitados para não desconsiderar o conhecimento, especialmente o ritualístico", pondera a psicóloga. "A planta, ou seu princípio ativo, é apenas um elemento; o que está contido nos rituais e nessas sabedorias ancestrais é infinitamente maior do que o DMT."

A DMT (N,N-dimetiltriptamina), uma substância que atua no cérebro ao se ligar aos receptores de serotonina (responsáveis pelo bem-estar e outras funções), provoca alterações na percepção. Ela está presente nas folhas do arbusto Psychotria viridis, que, junto com o cipó Banisteriopsis caapi, é usada no preparo da bebida psicodélica ayahuasca.

"Encontrei no vegetalismo uma perspectiva de espiritualidade que raramente tive a oportunidade de vivenciar em outras práticas espirituais", diz o médico e psicoterapeuta Alessandro Campolina, um dos pesquisadores do LIS. "Chamo isso de espiritualidade imanente, uma noção que, de certa forma, deriva de muitos povos animistas."

O conceito pode parecer confuso. Em geral, entende-se o animismo como a crença de que todos os organismos vivos possuem uma alma. No entanto, ao se aprofundar no vegetalismo, Campolina percebeu que vai além disso. "O vegetalismo propõe uma indissociabilidade entre corpo e alma, matéria e espírito. Tudo tem alma, tudo possui espiritualidade, de uma forma inseparável, que não se desconecta", explica.

Tecnologias sagradas

"O vegetalismo peruano é composto por várias ferramentas; costumo chamar essa sabedoria medicinal de tecnologias sagradas", observa a coordenadora do LIS. Guiadas pelo curandeiro, as dietas vegetalistas começam com o uso de plantas purgativas, um processo de limpeza e desintoxicação, que provoca vômitos.

Explicando de forma simples, esse preparo purifica o corpo e acredita-se também o espírito para a cerimônia de ayahuasca, funcionando como uma espécie de abertura, permitindo que a pessoa tenha mais condições de acessar o que as outras plantas também irão trabalhar.

No dia seguinte, realiza-se uma sessão de ayahuasca e, em seguida no caso das dietas de nove dias inicia-se o período de retiro individual nas cabanas. O curandeiro visita os participantes diariamente para trazer a planta da dieta e, ao final desse período, o processo é finalizado com outra sessão de ayahuasca.

Em alguns casos, se uma pessoa não puder participar das cerimônias de ayahuasca devido a restrições de saúde, são oferecidas outras práticas, como a respiração holotrópica.

Proibida em muitos países, no Peru a ayahuasca é reconhecida desde 2008 como patrimônio cultural. Não há restrição para comercialização e consumo. No Brasil, o uso ritualístico da bebida é permitido por uma resolução de 2010 do Conad (Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas).

Livro relata iniciação xamânica

O livro "Iniciação pelos Espíritos" (editora EB Studio), escrito pela antropóloga Frédérique Apffel-Marglin e Randy Chung Gonzales, aborda em profundidade o tratamento de doenças modernas por meio da medicina tradicional dos povos originários e relata o processo atípico vivenciado pelo curandeiro peruano no xamanismo.

Gonzales diz ter sido praticamente arrastado por sua amiga, Apffel- Marglin, à uma cerimônia da ayahuasca em Chazuta, no Peru, na qual acabou sendo iniciado contra sua vontade. "Vi toda a minha vida até a morte, minha infância, adolescência”, conta o xamã.

Segundo ele, questões muito antigas de sua vida foram trabalhadas no ritual, como traumas e problemas. "Era como se eu estivesse limpando desde a infância e juventude". Gonzales relata que após sofrer algo parecido com uma surra bem dada, em que sentia até a dor dos golpes, se deparou com a visão de três anciões que falaram sobre seu destino no xamanismo.

O xamã explica que esse foi o momento crucial, definidor para a decisão que tomou, que mudou o rumo de sua vida. "Me levaram para um lugar muito bonito, como um salão, onde disseram ter me escolhido para estar nesse caminho, para ser curandeiro". Ele diz ter recusado, mas não adiantou. "Me disseram que não havia mais volta."

Na primeira parte do processo iniciático, que se estendeu por semanas, Gonzales passou a ter sucessivas visões. "Me apareceram santos, indígenas, serpentes, sereias, na primeira vez que aconteceu pensei que estava enlouquecendo". Ele sabia que as pessoas viam coisas bebendo ayahuasca, mas sem tomar foi assustador, descreve o curandeiro.

Gonzales, que já desenhava, retratou em pinturas a maior parte das visões que teve em sua iniciação xamânica, que durou em torno de quatro anos.

Algumas dessas imagens ilustram o livro "Iniciação pelos Espíritos" e outras também podem ser conferidas na exposição "Initiatory Visions", que segue até 19 de dezembro de 2024 no Centro de Estudos das Religiões Mundiais, na Harvard Divinity School, em Cambridge, nos Estados Unidos.

O curandeiro Randy Chung Gonzales e a equipe do LIS participam do lançamento do livro, com palestra e bate-papo, no dia 18 de outubro (quinta-feira), 18h, na livraria Argumento, no bairro do Leblon, no Rio de Janeiro. Em São Paulo, um evento semelhante está programado para novembro, mas ainda sem data definida. Informações sobre os trabalhos do LIS podem ser obtidas através do email: contato@lis.org.br.

Fonte: https://www.cartacapital.com.br/blogs/psicodelicamente/centro-de-xamanismo-amazonico-peruano-e-inaugurado-no-rio/

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