quinta-feira, 11 de abril de 2024

O mais louvado e estigmatizado

Autor: Edison Veiga.

Com mais de meio milhão de seguidores no Instagram — e presença maciça também em outras redes sociais — o empresário Jonathan Pires se intitula “o macumbeiro mais famoso do Brasil”.

Esta influência ajudou a fazer da 1ª Marcha para Exu, evento promovido por ele e realizado em 13 de agosto do ano passado na Avenida Paulista, em São Paulo, um sucesso de público — pelas contas do organizador, 100 mil pessoas participaram.

Exu é uma figura controversa no imaginário popular brasileiro. A visão negativa que recai sobre ele é atribuída ao preconceito racial, uma vez que, nas religiões de matriz africana, como a umbanda e o candomblé, Exu é uma figura importante.

Mudar essa má fama foi o que motivou Pires, que é sacerdote de umbanda e, entre suas empresas, tem uma loja de artigos religiosos na zona norte de São Paulo.

“As pessoas falam que Exu só faz maldade, só destrói relacionamento, cada barbaridade que a gente ouve falar em nome de Exu que eu quis mostrar para o mundo que Exu não é isso”, diz ele à BBC News Brasil.

“Exu é amor, é respeito, é igualdade, e ele luta por todos nós.”

Pires quer continuar levando Exu para a Paulista. Garante que o evento deste ano seguirá em agosto — em data ainda não oficializada. “Também quero fazer no Rio e na Bahia”, diz ele.

Entidade para a umbanda, orixá para o candomblé, Exu está presente na cultura brasileira, principalmente nos redutos culturais ligados originalmente à população afrodescendente e no Carnaval.

No pré-carnaval de Salvador, em fevereiro, a cantora Anitta apresentou-se trajando uma fantasia em homenagem a Exu.

Em 2022, a Acadêmicos do Grande Rio sagrou-se campeã do carnaval carioca com um samba-enredo em homenagem ao orixá.

Para o sociólogo, antropólogo e babalorixá Rodney William Eugênio, Exu é “o dono do carnaval”.

“Exu é o mais humano entre todos os orixás. Isso denota sua proximidade com as pessoas, mas também seu senso de generosidade e compreensão”, afirma Eugênio à BBC News Brasil.

“É o orixá da multiplicação e da multiplicidade. É divertido, gosta da festa e da farra, é dono do corpo que samba. Exu é o dono da festa do povo.”

Cultuado na África pelo povo iorubá, a figura de Exu chegou ao Brasil por meio dos escravizados com a religiosidade do candomblé.

Acabou estigmatizado pelo catolicismo — que cravou no orixá a pecha de figura demoníaca. Mas também conseguiu se sincretizar.

“Foi construído muitas vezes sendo aproximado da imagem de Santo Antônio, porque Santo Antônio é um santo associado à questão do casamento e também por ser ele um santo tão popular entre os [colonizadores] portugueses”, diz o historiador Guilherme Watanabe, pai de santo do Terreiro de Umbanda Urubatão da Guia, em São Paulo, e pesquisador mestrando na Universidade de São Paulo (USP).

Cabe explicar como cada religião de matriz africana trata Exu.

“Exu, ou o arquétipo de Exu em divindades correspondentes, está presente em toda a África negra. Entre iorubás e fon, que difundiram o culto a Exu no Brasil e na diáspora, o orixá é considerado a ‘espinha dorsal’ dessas civilizações”, pontua Eugênio.

Dentre as religiões africanas que chegaram ao Brasil, a mais conhecida é o candomblé.

A umbanda é uma criação brasileira, que acabou herdando muitos elementos do candomblé — mas também incorporou preceitos do espiritismo kardecista, do catolicismo e de outras crenças.

Há cerca de 589 mil praticantes da umbanda e do candomblé no Brasil segundo os dados do Censo de 2010 — ainda não foram divulgados os números do recorte por religião do último levantamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 2022.

Outras 14 mil pessoas declararam seguir outras correntes religiosas afrobrasileiras.

Exu está presente tanto na umbanda quanto no candomblé, mas com uma sutil diferença.

Enquanto, no candomblé, ele é orixá, ou seja, uma divindade, na umbanda, Exu é uma entidade, como se fosse um espírito.

Uma diferença básica entre umbanda e candomblé, explica Eugênio, é que, na umbanda, também por influência do kardecismo, o culto às entidades é um componente principal, enquanto, no candomblé, são as divindades, ou seja, os orixás, que são cultuadas diretamente.

“Portanto, os exus da umbanda são entidades, encantados para alguns e espíritos para outros, que se manifestam nos médiuns como ‘representantes’ do orixá”, afirma o pesquisador.

Como muitos adeptos do candomblé vieram da umbanda, essas entidades também se manifestam nos candomblés, diz Eugênio.

“Como a pureza não é uma preocupação nas tradições afrobrasileiras, os exus catiços, como são chamadas essas entidades, assim como os caboclos, que representam os ancestrais indígenas e mestiços, convivem tranquilamente em terreiros de candomblé de São Paulo, Rio de Janeiro e até da Bahia.”

Eugênio diz que Exu é o mais importante entre todos os orixás

“Mas não de um ponto de vista hierárquico e sim como propulsor do axé, ou seja, do poder de realizar. Exu é movimento, é o princípio dinâmico da vida”, diz Eugênio.

“Mais do que um mensageiro entre seres humanos e divindades, Exu mantém uma relação intrínseca com as questões práticas da vida. Exu é o caminho. É o orixá que abre todos os caminhos, o dono das encruzilhadas, senhor das possibilidades.”

Para evitar percalços e dificuldades e para que tudo dê certo, diz Eugênio, evoca-se Exu.

“Além disso, Exu é o senhor das trocas e o fiscalizador da ordem da universo e do bom caráter. Quem tem felicidade e dinheiro separa uma parte para Exu”, diz o pesquisador.

“É também o dono do mercado, isto é, coordena as transações financeiras, a economia, o consumo, mas não com uma lógica de acúmulo. Exu faz o dinheiro circular para gerar riqueza.”

Para o historiador e pai de santo Guilherme Watanabe, Exu é também uma figura ligada à fertilidade.

“Exu é orixá associado ao sexo, à sexualidade, mas também à ordem e à desordem do mundo, é o orixá que traz a ordem a partir do caos”, diz Watanabe.

“É um orixá que a gente cultua para conseguir organizar nossa vida e extrair o melhor dela. Está muito associado à contradição, porque ele traz outros pontos de vista, outras verdades para dentro da estrutura de pensamento.”

No candomblé, tudo começa com Exu. Isto porque ele é considerado o orixá da comunicação, aquele que promove a conexão das pessoas com as divindades.

“Cultuamos Exu antes dos festejos de Iemanjá [dia 2 de fevereiro] para que tudo corra bem, para que não haja acidentes ou incidentes, para que as oferendas cheguem a seu destino”, exemplifica Eugênio.

Sua proeminência se destaca não só pelo fato de ele estar presente nos rituais ligados aos outros orixás — como no caso citado da Iemanjá — mas também por ser reservada a Exu a segunda-feira, o primeiro dia útil da semana.

“Exu é o número um. Está associado ao início do cotidiano, da rotina. É quem primeiro organiza, faz o planejamento. Por isso, na segunda-feira muitas pessoas costumam fazer saudações a Exu e cultuá-lo”, diz Watanabe.

Mas, com estes atributos, por que Exu passou a ser associado à figura do diabo?

Eugênio diz que predicados negativos atribuídos ao orixá são resultado de uma série de deturpações promovidas por religiosos cristãos europeus em uma tentativa de subjugar a espiritualidade dos africanos.

“A demonização de Exu é uma síntese da demonização da cultura negra e do próprio negro enquanto pessoa”, diz o pesquisador.

“Demonizar Exu foi como desprover o negro de sua maior potencialidade, como quebrar a espinha dorsal de uma civilização”, argumenta ele.

Watanabe acrescenta que, historicamente, os missionários europeus buscavam compreender as características das divindades dos povos colonizados com o objetivo de reinterpretá-las do modo que fosse mais fácil impôr a fé cristã.

O sincretismo foi um resultado de um processo de aculturação durante o processo de colonização, aponta Eugênio.

“A associação de Exu ao diabo, que é uma figura do cristianismo, já veio com os missionários que participaram da colonização na África”, diz o pesquisador.

“A demonização do ‘outro’ é parte fundamental desses processos de opressão. Na diáspora, a demonização foi aprofundada, mas há registros interessantes como o sincretismo com Santo Antônio no Brasil e com o Menino Jesus em Cuba.”

Santo Antônio porque haveria um paralelo entre o santo casamenteiro e orixá da fertilidade. Menino Jesus porque Exu é alegre, brincalhão e infantil.

O fato de Exu ser ligado à fertilidade e ser muitas vezes representado mostrando o pênis foi um alvo moral do catolicismo, diz Watanabe.

“É um orixá que bate de frente diretamente com os valores de mundo cristãos, então acaba associado à imagem daquilo que é contrário aos cristãos, ou seja, a própria figura do diabo”, explica o historiador.

“Tem a ver com essa característica de Exu, ligado à festa, felicidade, a multiplicação, a fertilidade. De certa forma, são valores contrários à virgindade, à pureza, à divindade [tais como vistas pelo catolicismo].”

O pesquisador ressalta que isso não ocorreu apenas com os católicos, mas também com os cristãos protestantes — e, mais recentemente, no Brasil após os anos 1980, principalmente com a popularização das igrejas evangélicas neopentecostais.

“Na Nigéria, também houve [esse tipo de reinterpretação], principalmente com os muçulmanos, que da mesma forma passaram a associar Exu ao que eles traduzem como ‘aquilo que é mal’”, comenta ele.

“Aqui no Brasil, a partir dos anos 1980 e 1990, o crescimento das neopentecostais promoveu uma espécie de guerra santa associando diretamente Exu ao demônio. No discurso, é preciso combater o mal e o mal estaria associado diretamente à imagem de Exu.”

Watanabe também enxerga na visão negativa sobre Exu uma questão racial.

“Muitas vezes, a associação direta de Exu com o demônio tem a ver com a estruturação do racismo no Brasil, que vai ligar tudo aquilo diretamente relacionado ao continente africano ao ruim, ao pior”, pontua.

“O racismo hierarquizou essas culturas, as pessoas, realçando tudo o que era do branco, como Jesus Cristo e a Virgem Maria sendo símbolos da salvação, e relegando tudo o que era do negro, daí os orixás seriam algo negativo.”

A estigmatização de Exu implica em uma ferida aberta para os praticantes das religiões de matriz africana, dizem os especialistas, porque o orixá é muito central nessas espiritualidades.

Mas, embora o processo de colonização tenha deixado uma herança distorcida de Exu, Eugênio acredita que seu verdadeiro significado vem sendo recuperado, em iniciativas como as homenagens no Carnaval e a marcha que Jonathan Pires realiza na Paulista.

“Isso demonstra que estamos resgatando também a dignidade do povo negro.”

Fonte: https://www.bbc.com/portuguese/articles/c80nxw6jr58o

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