domingo, 28 de maio de 2023

Teocracia americana

João Ozorio de Melo, Conjur - Políticos republicanos-conservadores-cristãos dos EUA querem derrubar o antológico muro que separa a igreja do Estado. Pregam que a separação igreja-Estado é uma "falsa doutrina", em uma campanha para tornar o país uma nação cristã. Afinal, "Deus ordenou que as instituições e as leis devem favorecer o cristianismo", dizem.

Esses políticos se lançaram em uma cruzada legislativa para aprovar leis que impõem o nacionalismo cristão à vida pública, depois que a Suprema Corte decidiu no ano passado (em Kennedy v. Bremerton School District) que uma escola pública não podia proibir as orações de um técnico de futebol americano com os jogadores no meio do campo.

Para a escola, liberar as orações seria um endosso a uma religião — e, portanto, uma violação à cláusula constitucional que proíbe o estabelecimento de uma religião através de lei. Mas a corte decidiu, por seis votos (conservadores) a três (liberais), que a proibição violava os direitos do técnico ao livre exercício da religião e à liberdade de expressão.

Desde então, 1,6 mil projetos de lei, que propõem um certo exercício da religião cristã em várias entidades públicas, foram apresentados nas assembleias legislativas de estados controlados por republicanos — entre eles, Louisiana, Missouri, Carolina do Sul, Oklahoma, Idaho, Kentucky e Texas, que têm sido os mais ativos.

O Texas, no entanto, lidera a empreitada. As leis que aprovou ou tenta aprovar são as que têm recebido mais destaque recentemente e são todas destinadas a levar o cristianismo para as escolas.

O Texas já havia aprovado uma lei, em 2021, que obriga as escolas a colocar nas salas de aula placas com a inscrição "In God We Trust" ("Confiamos em Deus").

Neste ano, a Assembleia Legislativa do Texas contemplou mais uma meia dúzia de PLs, especiais para as escolas. Um deles impõe a obrigação de as escolas colocarem em suas salas de aula, em lugar de destaque, posters doados dos "Dez Mandamentos", em letras grandes e claras o suficiente, para serem lidas por todos os alunos da classe.

O PL, oriundo do Senado, foi aprovado pelas comissões da Câmara dos Deputados. Mas só chegou ao plenário da Câmara, para votação, no último dia do prazo da sessão legislativa, junto com outros PLs. Na vez de votar o PL dos Dez Mandamentos, os deputados democratas fizeram discursos seguidos, até que o prazo expirou. Fica para a próxima sessão legislativa.

Também tramita na Assembleia Legislativa do Texas um projeto de lei que autoriza os distritos escolares a contratar capelães ou aceitar o trabalho voluntário deles — desde que sejam indicados por uma organização religiosa e tenham bons antecedentes.

Os capelães, não licenciados, poderão substituir conselheiros educacionais, psicólogos e outros profissionais licenciados, na missão de dar apoio educacional, psicológico e emocional aos estudantes — com a adição de apoio espiritual (na linha do cristianismo, apenas).

Os defensores do PL afirmam que a atuação dos capelães, junto com outras iniciativas religiosas, irá restaurar a moralidade nas escolas e impedir coisas ruins como massacres de estudantes (em vez de controle de compra e posse de armas) e a crescente aceitação de LGBTQs.

Os críticos dizem que os capelães irão recrutar alunos para o cristianismo. Isso se confirma com as declarações da organização Mission Generation, que fez campanha para a aprovação do PL dos capelães, com o argumento, entre outros, de que eles podem evangelizar as crianças.

Os políticos republicanos do Texas também contemplam outras iniciativas legislativas, tais como orações para iniciar o dia escolar (como leis já aprovadas em Idaho e Kentucky) e a leitura da Bíblia na sala de aula (à semelhança de um PL de Missouri).

Opositores disputam as duas iniciativas. Perguntam, por exemplo, se os filhos de famílias muçulmanas, judaicas, hindus, budistas e outras terão direito a fazer suas próprias orações e a ler seus livros sagrados. E que Bíblia será escolhida — lembrando que, em meados dos anos 1800, dezenas de pessoas foram mortas ou feridas em um conflito entre católicos e protestantes sobre que Bíblia deveria ser lida nas escolas públicas.

Na decisão do caso Kennedy v. Bremerton, a Suprema Corte fez uma distinção importante, que os legisladores fazem de conta que não viram. A corte afirmou que orações do técnico de futebol americano no campo são diferentes de orações em salas de aula das escolas públicas, que são "problematicamente coercivas".

A decisão desse caso anulou precedente de 1971 (Lemon v. Kurtzman), que estabeleceu três parâmetros para determinar violações da Cláusula do Estabelecimento de religião: quando a lei tem um propósito religioso; quando o efeito primário da lei é promover ou inibir religião; quando a lei promove um entrelaçamento excessivo entre o governo e a religião.

No caso "Kennedy", a corte decidiu que a análise da cláusula deve ser feita "com base em práticas históricas, tradições e entendimentos dos constituintes (os Founding Fathers)".

Em 1962, a Suprema Corte se expressou sobre esse "entendimento histórico" (em Lemon v. Kurtzman): “O primeiro e mais imediato propósito do entendimento histórico da Cláusula do Estabelecimento se apoia na crença de que a união do governo com a religião tende a destruir o governo e degradar a religião". E declarou a oração em escola pública inconstitucional.

Em 1963, acrescentou a essa declaração (em Abington v. Schempp) que a leitura da bíblia em sala de aula também é inconstitucional.

Em 1980, a corte decidiu (em Stone v. Graham) que a colocação dos Dez Mandamentos nas salas de aula viola a Constituição. Em 1985, declarou inconstitucional a lei que autorizou um momento de silêncio para meditação ou oração (em Wallace v. Jaffree). Em 1990, decidiu a mesma coisa com relação a orações por clérigos em formaturas (Lee v. Weisman). Em 2000, decidiu que orações feitas por estudantes em jogos de futebol [americano] violava a Cláusula do Estabelecimento (em Santa Fe School District v. Doe).

Em 1947, a Suprema Corte já havia decidido (em Everson v. Board of Education) que a Cláusula do Estabelecimento se aplica aos estados, através da 14ª Emenda da Constituição. E, portanto, orações e leitura da Bíblia violavam essa cláusula em qualquer dos estados.

Em 1948, decidiu (em McCollum v. Board of Education, que era inconstitucional uma política da escola que permitia a liberação de estudantes, com o consentimento dos pais, para assistir aulas de religião durante o período escolar.

Com essas decisões da Suprema Corte, tudo indica que os projetos de lei do Texas e outros estados são inconstitucionais. No entanto, a Suprema Corte mudou. E, nos últimos anos, as decisões da corte têm favorecido os religiosos e precedentes têm sido revogados.

Além disso, no governo Trump os movimentos nacionalistas-cristãos se tornaram uma forte tendência entre grandes facções do Partido Republicano.

Uma pesquisa do Public Religion Research Institute revelou que mais da metade dos republicanos aderem ou simpatizam com os pilares do nacionalismo cristão, incluindo o de que os EUA deveriam ser uma nação estritamente cristã. E cerca da metade dos entrevistados apoiariam um líder autoritário, que poderia manter o domínio cristão na sociedade.

Há políticos que compartilham essa fé e há os que apenas a exploram, porque é um ótimo filão eleitoral. Não se sabe qual é o caso do vice-governador do Texas, Dan Patrick. Mas ele declarou no ano passado: “Nós não somos uma nação fundada com base nas palavras dos constituintes, mas nas palavras de Deus, porque Ele escreveu a Constituição”.

Para os republicanos-conservadores-cristãos dos EUA, Deus é americano.

Fonte: https://www.brasil247.com/mundo/republicanos-querem-tornar-os-estados-unidos-uma-nacao-crista

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