segunda-feira, 8 de maio de 2023

Bala e Bíblia

Por Simony dos Anjos.

No último domingo, o Fantástico exibiu uma matéria sobre um clube de tiro em Goiás que oferecia aulas para crianças a partir de oito anos de idade. Fiquei consternada, mas não surpresa. O crescimento do discurso armamentista – principalmente nas mídias sociais – está fazendo com que crianças armadas não pareçam coisa absurda.

Neste contexto, alguns segmentos cristãos brasileiros têm trilhado caminhos perigosos, que unem, em um único discurso, família e violência – reforçando a falácia de que o verdadeiro cristão protege a sua casa com o uso de armas.

Depois da pandemia e de tantos meses fora das salas de aula, milhares de crianças ficaram desassistidas por políticas públicas sérias. Políticas que garantissem acesso com qualidade às aulas e programas adequados às suas realidades. Por conta disso, ficaram expostos aos conteúdos irresponsáveis veiculados nas mídias sociais e, pior, convivendo com famílias que também ficaram expostas a estes conteúdos. Nos grupos de aplicativos de mensagem, não é novidade receber vídeos de pastores defendendo armas, dizendo que a Escola é uma ameaça para nossas crianças.

Ora, será que nossos jovens passam incólumes a esses discursos? Vendo e ouvindo pastores, que são considerados autoridades em muitas casas, dizerem que armas e violência são a melhor maneira de defender a família, ao invés da educação? A relação entre  família e violência está cada vez mais incrustada nas camadas populares. E associado ao pânico moral, recurso muito utilizado por fundamentalistas religiosos, isto está formando um exército de pessoas acuadas, raivosas e com a prescrição de que armas são essenciais para a defesa das famílias dos “cidadãos de bem”.

A construção deste cidadão de bem, que é cristão, só existe com a produção de inimigos da família, a quem esse cidadão tenha que combater. E pudemos ver isso nas últimas eleições, por exemplo. Ser cristão se transformou em trunfo para aqueles que se projetaram publicamente por estarem à serviço da defesa da família.

A exemplo do  deputado estadual alagoano Antônio Albuquerque (Republicanos) que se desentendeu com a então candidata, vereadora Teca Nelma (PSD), sobre o tema religião. A vereadora que declarou sua descrença em um Deus cristão, teve como resposta do deputado, que alguém ser ateu se coloca automaticamente contra os valores familiares e sem princípios morais. Ele disse: “Repousa no meu coração a certeza inabalável de que o homem só andará na direção do sucesso quando ele tem Deus no coração”. 

O mesmo deputado defendeu na Assembleia Legislativa de Alagoas que autores de massacres, como o acontecido em Blumenau, fossem executados no local.

Em um momento em que as pessoas estão com medo, aterrorizadas por conta desses episódios, este discurso é acolhido e celebrado. Embora não seja nem um pouco efetivo, uma vez que o que vai garantir a segurança das escolas é um sistema sério de monitoramento das mídias sociais e de prevenção. Sugiro a leitura do relatório “O ultraconservadorismo e extremismo de direita entre adolescentes e jovens no Brasil: ataques às instituições de ensino e alternativas para a ação governamental”, produzido pela equipe de transição do governo Lula, que traz medidas efetivas e não eleitoreiras sobre o tema.

Este tipo de fala é populista e muito, mas muito, prejudicial para a sociedade, pois considera que pena de morte e mais armas são a solução, incitando um clima de justiçamento como alternativa de defesa.

Ainda neste ano, no congresso nacional, o deputado federal Alberto Fraga (PL-DF) ameaçou o deputado André Janones (AVANTE-MG) com uma arma. Fraga integra a Frente Parlamentar Mista Católica Apostólica Romana e é mais um exemplo de associação do tema arma-família-cristão. 

Eu poderia citar outros casos, mas vou me deter nestes dois exemplos para demonstrar a hipótese de que aliar família, religião e violência é uma estratégia de manter a sociedade constantemente em pânico, e para alguns setores da sociedade isso é altamente desejável.

Setores que se utilizam do pânico para conseguir apoio político em momentos eleitorais, o ganham por meio da espetacularização da violência, da circulação e do fortalecimento dos projetos mais megalomaníacos de moralização, controle e militarização da vida. Assim, a naturalização da circulação de armas endossada por narrativas religiosas é uma maneira profícua de construir uma narrativa na qual a defesa da fé e da família passa pelo uso indiscriminado da força.

E não é à toa que o deputado alagoano compara ateus ao desrespeito à família. Para justificar o aumento da violência, em um momento em que o ódio circula em muitas igrejas, se faz necessária uma explicação que afaste toda essa construção de defesa das armas, da pena de morte e outras reações truculentas dos armamentistas. Eles jamais podem ser culpados por qualquer aumento da violência. A causa é somente uma: a falta de Deus. Assim, quando acontecem tragédias como as da Escola Estadual na Vila Sônia, em São Paulo, e da creche em Blumenau (SC), a primeira coisa que se faz é relacionar o autor à falta de fé. Afasta-se toda e qualquer influência de uma teologia do domínio e da violência na construção da cultura do ódio no qual o Brasil está chafurdando nos últimos anos. 

Por fim, temos neste momento, milhões de famílias em pânico, que se tornam um terreno fértil para esse discurso, o qual é proferido todos os domingos em muitos púlpitos espalhados pelo Brasil. A relação entre a proteção da fé e a proteção das armas pode parecer contraditória, mas ganha o coração de pessoas que sentem que apenas têm a oração diária como recurso de proteção de seus filhos.

A violência nas escolas é uma ameaça real, materializada nos últimos acontecimentos. Precisamos agora disputar essas narrativas fundamentalistas que apresentam saídas que não vão, de fato, solucionar o problema.

Fonte: https://www.cartacapital.com.br/blogs/dialogos-da-fe/igrejas-evangelicas-e-armas-nas-escolas-o-fundamentalismo-religioso-familista-e-violento/

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