segunda-feira, 3 de abril de 2023

Lavagem social

por Tatiana Merlino.
Publicado em 8 setembro 2020.

Como a pandemia abrevia o caminho para que corporações da área de alimentos se apropriem de pautas antiopressão e se aproximem de movimentos sociais. Da comunidade LGBTQI+ a movimentos de periferia, passando por sustentabilidade e machismo, um guia de como um dos piores episódios da humanidade se transforma em oportunidade de lucro e publicidade.

14 de junho de 2020, avenida Paulista, região central de São Paulo. Durante três horas, uma projeção de luzes nas cores do arco-íris ilumina a avenida mais famosa da cidade. A instalação, feita a partir de um dos seus prédios, teve visibilidade de até 60 quilômetros de distância, garantiram os organizadores da iniciativa.

O show de luzes fez parte da comemoração da Parada do Orgulho LGBT, que este ano foi toda feita online por conta da pandemia. Mas tem mais: foi parte de uma campanha da marca de salgadinhos Doritos Rainbow, da empresa de produtos alimentícios PepsiCo.

A corporação também anunciou uma doação de R$ 1 milhão (em torno de US$ 200 mil) para entidades que apoiam a causa LGBTQI+. Lançados pela primeira vez em 2017, a embalagem e os salgadinhos Doritos Rainbow levam as cores do arco-íris, em referência à pauta LGBT.

Este ano, a empresa de produtos ultraprocessados também lançou a campanha #1Kiss1Donation, criada especialmente para o contexto da pandemia. Uma plataforma foi desenvolvida para que pessoas enviem um “beijo virtual”, com o objetivo de “criar uma corrente de amor”. A cada beijo virtual enviado, a Doritos doou R$ 1 a instituições LGBT+, até atingir mais R$ 1 milhão. Para a iniciativa, contratou as cantoras Pablo Vittar, Ludmilla e Luiza Sonza.

A campanha também ocorreu no México, com uma doação de 1 milhão de pesos. 

“O objetivo maior é manter o compromisso em apoiar a comunidade LGBT+ e promover a igualdade, o respeito e o apoio à diversidade, missão que Doritos, marca da PepsiCo, vem fazendo no Brasil desde 2017”, diz o material de divulgação da campanha. Durante a pandemia, a Doritos Rainbow ainda fez uma parceria com a Rede Filantropia para capacitação de associações e projetos relacionados à comunidade LGBTQI+.

Assim como a Pepsico, dezenas de corporações da indústria de produtos alimentícios estão aproveitando o período da pandemia para se aproximar de movimentos sociais, de periferia e de pautas antiopressão. Um dos problemas é que muitas são fabricantes de ultraprocessados marcados pelo excesso de sal, açúcar e gorduras que, por sua vez, estão ligados a doenças crônicas (diabetes, hipertensão, câncer) que agravam os casos de Covid-19. Outra questão é que muitas das empresas têm histórico de desrespeito às leis trabalhistas.

São doações, postagens nas redes sociais, campanhas online, lives, webinares, muitos deles incluindo figuras públicas e influenciadores. “Na nutrição, há o health washing, quando as empresas tentam dar uma cara de saudável para algum produto. O social washing também acontece. É a tentativa de mostrar que a empresa está incluindo nas suas pautas ações em relação à questão da superação, do enfrentamento racial, empoderamento feminino, questão LGBT”, afirma a nutricionista Camila Maranha, consultora da ACT Promoção da Saúde, professora da Universidade Federal Fluminense e integrante da Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável.

A estratégia de aproximação de movimentos de periferia e que debatem racismo não é nova. Quando a Coca-Cola revelou a lista de doações feitas ao longo dos últimos anos nos Estados Unidos, havia uma série de aportes de pequenos valores a organizações locais. Associações de bairro, movimentos de luta contra o racismo, organizações de latinos. Justamente os grupos sociais que mais sofrem com doenças crônicas e que mais consomem refrigerantes e outras bebidas adoçadas. Um estudo recém-publicado calcula que, no país-sede da empresa, o grupo mais pobre da população toma 2,5 vezes mais refrigerantes que o grupo mais rico.

Durante a pandemia, diz Maranha, o social washing se intensificou. “Há muitas empresas distribuindo seus fast foods e chocolates, doações para profissionais de saúde, caminhoneiros, e isso com divulgação nas redes sociais, na mídia.” Sem mencionar o Solidariedade S.A., quadro fixo que passou a ser exibido diariamente pelo Jornal Nacional, o maior telejornal do país, valorizando doações feitas por essas empresas, sempre de maneira acrítica e sem relativizar o montante doado frente ao faturamento da empresa.

Para Maranha, o que se vê, “infelizmente, é que as empresas estão muito mais engajadas na promoção da imagem pública do que de fato em fazer ações concretas, na cadeia de produção desses alimentos, e alcançar esses objetivos, que seriam muito legítimos. Cada vez mais consumidores querem produtos de empresas que sejam limpas, sustentáveis, não discriminatórias”.

Em 18 de junho, o Carrefour realizou o lançamento do relatório de sustentabilidade de 2019. Em vez de um simples documento de PDF escondido em algum canto da página corporativa, a rede de supermercados optou por reunir o CEO e alguns dos principais diretores para uma transmissão online. Não estavam sozinhos: apresentaram agricultores-modelo e o coordenador de um projeto voltado a áreas de classe baixa.

O representante de relações institucionais, Stephane Engelhart, disse que a empresa tem a missão de levar comida de qualidade a todos os brasileiros e que é a maior compradora de carne do Brasil – com ênfase na garantia de que a origem não é de fazendas desmatadoras.

Em meio a preocupações dos consumidores sobre a qualidade e o rastro ambiental de legumes, frutas e verduras oferecidos nos supermercados, o Carrefour parecia querer se vacinar. Apresentou agricultores que moram próximos ao maior centro consumidor, a cidade de São Paulo, e que teceram juras de amor à empresa, em particular ao Atacadão, o braço de atacado, justamente onde é mais difícil encontrar alimentos frescos de qualidade.

Roberto Mussnich, CEO do Atacadão, falou sobre o propósito de “levar produtos de qualidade a preços baixos para todo o país”. Disse, ainda: “Procuramos fornecedores locais e buscamos incentivar a indústria local para gerar emprego e sustentabilidade. Amor pelo negócio, pela causa e pela maneira de fazer.”

Quando o encontro completou uma hora, os diretores não esconderam a empolgação ao apresentar Edson Leite, chef de cozinha e idealizador do projeto Gastronomia Periférica. Além de atuar nas franjas da capital paulista, onde se multiplicam as lojas do Atacadão, o projeto trabalha sobre uma agenda sensível do setor: o desperdício de alimentos, além de oferecer formação em culinária e oferecer refeições.

“Precisamos mostrar o universo periférico, que é gigantesco. É importante quando conseguimos ter esse espaço, fechar parcerias”, como a com o Carrefour. De acordo com ele, há um projeto de invisibilização da periferia, e o poder público não age para que isso seja diferente. “Sempre fizeram a gente acreditar que nossa comida, tudo nosso era ruim.”

O grupo de supermercados anunciou a doação de R$ 15 milhões em cestas básicas para ajudar famílias carentes diante da pandemia do novo coronavírus – boa parte garantida pelos fornecedores ou por doações de clientes. Enquanto bateu recorde de faturamento nas primeiras semanas da pandemia, a rede fez segredo sobre quantos funcionários se infectaram por Sars-Cov-2 no ambiente de trabalho.

Toda essa “preocupação” da rede supermercadista rendeu até uma reportagem num dos maiores jornais do país, a Folha de S. Paulo, com o sugestivo título “Carrefour reduz impacto ambiental e apoia democratização da alimentação saudável”.

“Tais investidas estão sendo feitas claramente para se melhorar a imagem das marcas na sociedade, como se estivessem preocupadas com questões sociais”, avalia Ana Paula Bortoletto, coordenadora do Programa de Alimentação Saudável do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec). “Mas na verdade elas representam uma grande contradição quando vamos ver o que de fato investem e comercializam em relação a produtos não saudáveis.”

Bortoletto também afirma que “o cruel é que essas marcas ampliam seus mercados junto a camadas mais vulneráveis e isso acaba aumentando o risco de desenvolvimento de doenças crônicas na população”.

Além da intensificação das ações virtuais, patrocínios de lives e estratégias com influenciadores, Bortoletto afirma que se aprofundou a pressão política dessas empresas para aprovação de leis. Isso se traduziu na recente aprovação da lei que flexibiliza a doação de alimentos, sancionada em 23 de junho (Lei 14.016/20), que pretende evitar o desperdício e incentivar a doação de alimentos e refeições.

Embora pareça positiva diante do contexto, na prática facilita o aumento de doações de alimentos processados e ultraprocessados. “Ao se oferecer alimentação de baixa qualidade à população, está se aumentando o problema, e não ajudando.”

A tentativa de manter uma boa imagem por meio de ações de responsabilidade social corporativa não é novidade. Nos anos 1980 e 1990, popularizou-se a expressão greenwashing, ou maquiagem verde, para se referir a empresas que destroem a natureza, mas vendem a tese da sustentabilidade em seus discursos.

O movimento feminista cunhou a expressão maquiagem lilás, purple washing, para as empresas que se apropriam do discurso do empoderamento e diversidade em suas campanhas. “Chamamos assim quando as empresas adotam argumentos, as lutas do movimento feminista, para encobrir outros tipos de práticas. E aí a primeira coisa que a gente olha é como é o funcionamento da empresa, a relação de trabalho interna que eles têm”, afirma Miriam Nobre, da Marcha Mundial das Mulheres e da Sempreviva Organização Feminista.

“Essas mesmas empresas que usam esse discurso enriquecem com base na exploração do trabalho feminino por meio da terceirização e no trabalho precário realizado pelas mulheres na condição de trabalhadoras por conta própria ou no trabalho a domicílio, no controle dos territórios e da água”, aponta a Marcha Mundial das Mulheres.

“Nada deve impedir o orgulho de ser quem somos, né? #SeuOrgulhoNinguémPara #TodoMundoÉBemVindo.” Dá para adivinhar de qual empresa é essa campanha? Chega a ser irônico, mas é a frase de uma campanha da Uber Eats para o mês do orgulho LGBTQIA+. Em parceria com o Burger King, a Uber Eats anunciou que de 22 a 28 de junho parte do lucro das vendas de dois combos seria doada para ONGs que apoiam a comunidade.

Irônico porque, juntamente com outras empresas de aplicativos de entrega de alimentos, como Rappi e iFood, a UberEats se recusa a reconhecer os direitos trabalhistas dos entregadores. Mas todas vêm realizando uma série de iniciativas de suposta responsabilidade social, enquanto os trabalhadores em vários países organizam paralisações por melhores condições. Motoboys e ciclistas reivindicam mais segurança, taxas justas nos pagamento de corridas, alimentação durante a jornada e licença remunerada em casos de acidentes.

“Essa relação ambígua e tensa com o mercado marca o movimento desde sua origem. Há setores do movimento que criticam esse tipo de mercantilização e o esvaziamento da pauta”, diz Renan Quinalha, professor de Direito da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e ativista de direitos humanos e diversidade sexual.

A Rappi também promoveu uma campanha no mês do orgulho LGBTQIA+. Em suas redes, anunciou que, até 30 de junho, na compra de qualquer produto Skol Beats em seu aplicativo, o usuário receberia uma bandeira com as cores do arco-íris, símbolo do movimento, para estender na sua janela. E que parte do faturamento da Rappi, 20%, seria doado à ONG Casa Chama, espaço coletivo de cuidados LGBTQIA+.

A partir do início das paradas do orgulho LGBT na década de 1970 em várias cidades dos Estados Unidos e de todo o mundo, “empresas passaram a ter uma postura mais agressiva para ter visibilidade e colocar suas marcas [nos eventos]”, complementa Quinalha. “O problema é que elas somem durante o ano inteiro, e, mais que isso, fazem campanhas para ajudar em determinado momento e, quando passa, há episódios de LGBTfobia dentro das empresas, em relação a funcionários, prestadores, no caso da Uber, ou com terceiros, e a empresa não responde adequadamente e de forma rápida.”

Para Quinalha, essas empresas precisam ser cobradas por campanhas não só para destinarem parte do que estão lucrando, mas também para assumirem um compromisso efetivo. “Que tipo de política interna há para LGBTS, onde estão, em qual posição de liderança na empresa, tem possibilidade de inserção, tem pessoas trans trabalhando nas empresas? Elas [empresas] precisam se posicionar muito além de colocar um carro, pagar uma conta. Precisam se comprometer com uma mudança que é cultural e isso precisa começar dentro das empresas e perante a sociedade. Essa é uma maneira de buscar coerência que muitas vezes tem faltado para essas empresas que aparecem só no mês de junho.”

O professor da Unifesp também avalia que é preciso considerar outras pautas, pois “o movimento LGBT não é só uma agenda pela libertação sexual e pelo direito à identidade de gênero e livre orientação sexual. É um movimento que busca inclusão, acesso à educação, saúde, e renda, que toque em questões de desigualdade econômica, de relações de trabalho. Então, é muito problemático que empresas que precarizam trabalho, que não respeitam o meio ambiente, questões alimentares, apropriem-se disso. São pautas que estão cruzadas, a pauta LGBT não está descolada de todas essas agendas”.

A PepsiCo aproveitou o amplo portfólio de marcas de ultraprocessados para se aproximar de diferentes bandeiras. A corporação é dona das linhas eQlibri, Quaker, Toddy, Toddynho, Ruffles, Doritos, Cheetos, Fandangos e Pepsi. Além da doação de produtos com excesso de sal e açúcar para governos e organizações da sociedade, apoiou um projeto de valorização da música brasileira.

Em outra frente, a linha de salgadinhos eQlibri, que “traduz externamente a sua proposta de valorização e reconhecimento da força das mulheres”, doou mais de 1.200 cestas básicas de alimentos para famílias carentes chefiadas por mulheres e doou produtos para a Associação de Mulheres de Paraisópolis, uma das maiores comunidades pobres de São Paulo.

Já a Nestlé investiu forte na substituição do aleitamento materno. No México, a empresa se associou à FEMSA, fabricante da Coca-Cola, para fazer publicidade sugerindo a doação de fórmulas infantis, uma prática proibida pela Organização Mundial de Saúde (OMS).

No Brasil, a estratégia foi semelhante. A corporação chegou a anunciar a live “A vida não para”, direcionada a profissionais de saúde, para o lançamento da fórmula infantil para NAN Supreme. O evento teria a presença da cantora Maria Rita, o que, de novo, é proibido pela OMS por se tratar de uma estratégia publicitária. Organizações se reuniram nas redes sociais para um tuitaço com a hashtag #DesisteMariaRita. A artista decidiu não participar, mas a live foi realizada.

A empresa também estreitou laços com a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) num programa “para capacitar residentes” em um curso no qual projeta chegar a 1.700 profissionais. Os participantes foram selecionados de acordo com indicações de médicos e professores experientes. A corporação prometeu ainda uma residência em Boston, nos Estados Unidos, e pagar a anuidade dos profissionais na SBP.

Em carta enviada à SBP, a Rede Internacional em Defesa do Direito de Amamentar – IBFAN-Brasil criticou a parceria, afirmando que o único objetivo é beneficiar uma corporação em detrimento da proteção do aleitamento materno. “A estreita relação que se pretende estabelecer entre médicos em formação e a mencionada indústria, que lança no mercado produtos que serão alvo da prescrição desses profissionais aos seus futuros pacientes, não pode ser vista como ética.”

Ética. Uma palavra tão relevante quanto desgastada em tempos nos quais corporações se apropriam até mesmo de uma tragédia ímpar na história da humanidade. A pandemia acelerou o processo de captura de bandeiras legítimas da sociedade. Acelerará, também, a resistência por parte de movimentos e dos cidadãos?

Fonte: https://bocado.lat/pt/socialwashing-ou-marketing-disfarcado-de-filantropia-versao-covid/

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