quinta-feira, 6 de abril de 2023

Anatomia de um pânico moral

De maneira mais ou menos explícita, setores importantes da sociedade sentem haver um grande e perigoso aumento de experiências trans, cujo horror alcança suas expressões máximas ao se aproximar da infância. Não é surpreendente notar como a infância e a sexualidade, sob o fantasma da inocência, voltaram a dominar o palco das eleições? Algo que já havíamos visto em 2018, mas que se repetiu em 2022, sob acusações de que quem não subscrevesse o projeto bolsonarista assumiria o risco de ver o Brasil autorizar desde “hormonização forçada de crianças” a banheiros unissex, passando pelo assassinato de fetos de mães adolescentes e abuso sexual de crianças na ilha de Marajó, supondo mutilações de toda espécie. No contexto brasileiro, a batalha da informação vê, na construção de certo ideal de infância e em seu avesso, uma capacidade infinita de incitação política. Projetos de mundo são impostos ou no mínimo negociados ao falarmos sobre crianças.

Embora o Brasil conviva há décadas com corpos adultos que desafiam a normatividade, parece que, ao sair do âmbito de programas de auditórios, personagens caricatos, prostituição e outros espaços subalternos, nunca tivemos tantas pessoas trans almejando participação igualitária da vida em sociedade e em família. O medo da presença de uma criança trans na família parece algo análogo ao medo branco da invasão da casa-grande pela senzala: anuncia que a barreira entre subalternizações e hegemonias não é intransponível. Mas as transidentidades têm dado o seu recado: estamos aqui.

Essa constatação pode parecer pequena, porém representa as diferentes fissuras que pessoas trans têm produzido para ter acesso a uma vida digna, ainda que muitas instituições estejam orientadas para o contrário. Medicina, direito e antropologia são apenas algumas das disciplinas que estão sendo convocadas a se refazer diante do deslocamento provocado pelas identidades trans e travestis. No entanto, alguns setores da saúde insistem em associar essa disputa por cidadania ao chamado “identitarismo” ou a uma suposta “epidemia trans”. Essa noção tem aparecido nos discursos médico-clínicos e feito com que o social reaja em tom de ameaça, como se essas formas de vida anunciassem o fim de uma estabilidade civil, da vida estruturada e do psiquismo saudável, seja lá o que isso tudo queira dizer. Parece que estamos diante de um número crescente de pessoas cuja proporção assusta e nos faz olhar para esse fenômeno com desconfiança. “Mais” pessoas trans seria igual a menos natureza, menos ordem, menos futuro. Será mesmo?

Para esse discurso, “ideologia de gênero” é aquilo que facilmente se reconhece como a separação entre homens e mulheres, na qual se pensa não haver continuidade para a vida. Basta ver o gozo com o qual famílias aguardam e filmam seus performáticos “chás de revelação” e o desespero quando estes não saem conforme o esperado. Essa compreensão dual, que imperou durante todo o século 20, foi responsável por antagonizar o masculino e o feminino, e considerar diabólica, mortífera, toda e qualquer tentativa de intercâmbio entre esses polos. Dito de modo simples, apagar a divisão binária despertaria uma sensação de ameaça, levando-nos a perseguir uma “verdade do sexo” que nunca foi responsável por amplas cidadanias, e sim pelo fortalecimento de hierarquias e assujeitamentos. O medo consegue dar forma a um corpo coletivo.

Transidentidades, que já foram tratadas como excepcionalidades clínicas, têm sido cada vez mais tomadas como a marca de um declínio social. Um sintoma das ruínas do mundo. Um pretenso sinal de que estamos em crise com a autoridade, com o pátrio poder, a família estruturada em que o pai trabalha e a mãe cuida, entre tantos outros. Mas ler a experiência trans como algo que “explica o mundo de agora” talvez seja um excesso de certeza ou de ingenuidade. Em busca de evitar essa confusão, talvez devêssemos refazer algumas perguntas: temos hoje mais pessoas trans do que já tivemos um dia? Se isso de fato for verdade, o que tem feito com que as pessoas se sintam mais facultadas a exercer uma transição? Longe de ser lida como uma decisão simples, por que um processo ético, estético e político seria reduzido a um conluio midiático para debilitar a “paz” dos verdadeiros cidadãos? Nós estávamos mesmo vivendo “vidas felizes e realizadas” antes das transidentidades surgirem em cena? Quem de nós?

Quando dizem “nós nos sentimos ameaçados com a epidemia trans”, é criada uma oposição em que as vítimas, as próprias pessoas trans, passam a ser vistas como criminosas. É como se dissessem: “nós nos sentimos ameaçados porque essas ‘ameaças’ não deixam de existir, mesmo que sejam expostas a um combate sistemático operado por… nós”.

As transidentidades, contudo, emergem na cena pública como o reconhecimento de que pessoas trans também podem fazer política, não apenas se submeter a ela. Esse debate tampouco está longe da crítica feita à branquitude e à heteronormatividade. Geralmente explicada como um estado de harmonia, a cisgeneridade depende de uma suposta coerência para se sustentar. “Cis” não é só uma expressão acionada para pensar quem está de acordo com o gênero designado no nascimento: é o resultado de um processo de subjetivação que entende a anatomia como um dado prestigiado. A cisgeneridade se aproxima muito mais da ideia de uma instituição. Ela produz valores, roteiros e condições para criar uma noção de grupo ou de comunidade.

Assim, seria de fato a experiência trans uma crise que perturba um tempo anterior idílico? Começamos a sofrer quando as categorias homem e mulher passaram a ser diluídas ou já estávamos muito mal quando elas nos acompanhavam ativamente? Ao invés da crise da normalidade, podemos falar sobre uma normalidade em crise? Isso nos convoca a pensar novamente a natureza de nossas questões. O incômodo que sentimos quando percebemos um mundo com “mais” pessoas trans se dá em razão de quê? Talvez parte do desconforto nessa “epidemia de transições” seja porque estejamos vendo pessoas trans em lugares que não esperávamos – e isso também diz muito sobre nós. Mais ainda, elas indicam que talvez não saibamos muito bem o que é ou o que pode um corpo. Todas as sociedades humanas performam algum tipo de modificação culturalmente chancelada. O que o pensamento contemporâneo declara ao acusar uma “epidemia” é que ele não suporta ver modificações corporais que exponham contingências históricas, políticas e culturais responsáveis por definir o contorno dado à noção de corpo, em especial quando se trata de crianças. O corpo nos traz angústia.

Durante a organização deste dossiê sobre Transidentidades, o protagonismo da infância não se deu acidentalmente, tampouco o debate com a psicanálise. É em “defesa” das crianças que se proíbe o casamento igualitário, que se regula a sexualidade da mulher, que são defendidos os armamentos e a necessidade de “mais” segurança. A infância tem sido a sobrevida, uma espécie de último suspiro desse modelo de família nuclear, que se sente nostálgico em relação a um mundo passado onde crianças não tinham voz, participação social. Onde não podiam produzir questões. Da mesma feita, foi a psicanálise a primeira a denunciar que toda sexualidade tem uma matriz infantil, e a construção de um ideal de infância angelical, cis-heteronormativa e universal é, acima de tudo, uma defesa adulta contra o caráter disruptivo da pulsão. Contudo, alguns desdobramentos contemporâneos do saber psicanalítico parecem ter esquecido o espírito do velho Freud e se alinham aos discursos mais conservadores e reacionários em matéria sexual e política.

As transidentidades não devem soar como se fossem somente outra forma de se aculturar e de fazer o laço social. Elas são – e entender isso é da maior importância – uma forma de deslocar nosso olhar para sujeitos que sofrem um dano, o que também significa dizer que elas podem nos auxiliar a reconhecer a relação, muitas vezes apagada, entre ciência e política, inclusive para a psicanálise. A quem interessa manter invisível essa relação? Esse não é um debate dedicado apenas aos limites do corpo ou das intervenções feitas nele. Trata-se de um debate sobre os saberes do nosso tempo.

Não estamos todos submetidos à lógica do corpo na contemporaneidade? Não há corpo médico, analítico e jurídico? Somente quem transiciona altera algo em relação a si mesmo? Há uma grande facilidade em capturar o avanço da diversidade como um presságio ruim, e, diante do tom que esse debate tende a ter, pensamos em apresentar um time de pessoas engajadas em complexificar nossos medos. Afinal, por trás de todo medo, há um desejo de transformação que ainda não pode ser reconhecido como tal. Com textos de João Gabriel Maracci e Emilia Braz, Rafael Cavalheiro e Helena Vicente, Beatriz Bagagli e Thayz Athayde, além de uma entrevista com Lucas Matos, criança trans, a composição do dossiê é uma aposta não apenas conceitual e política, mas, igualmente, de alianças contra o medo: seja em sua organização, uma vez que cada um dos textos conta com autorias trans e cis de diversos lugares do Brasil, para além do circuito Sul-Sudeste, seja pela interlocução entre saberes clínicos e culturais, e, sobretudo, pelo compromisso em sustentar certo grau de otimismo àquilo que a cultura da hegemonia trata com tamanha hostilidade. Algo de que falamos não por um suposto bom-mocismo pós-moderno, e sim para demonstrar que os espantalhos segregacionistas do suposto “identitarismo” são o espelho do espectro da epidemia trans: falsidades passadistas criadas para impedir o novo de nascer – um novo plural, que encare a diferença não pela expulsão, mas pela hibridez. Assim, que venha com dúvidas, criativo e potente, tal como uma criança.

Fonte (citado parcialmente): https://outraspalavras.net/descolonizacoes/transexualidade-anatomia-deum-panico-moral/

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