Em 6 de outubro do ano passado, a juíza Elfrida Costa Belleza, de Teresina, nomeou uma defensora pública para representar os interesses do feto, a pedido da defensoria. No dia seguinte, Maria Luiza de Moura Mello e Freitas, juíza responsável pelo caso, proibiu a publicação de notícias sobre o processo no estado, também a pedido da defensoria. Freitas atua como juíza auxiliar no Tribunal Regional Eleitoral e, por conta das eleições, Belleza assumiu as determinações a partir daquela semana.
A nomeação de um curador para o “nascituro” está prevista no Estatuto do Nascituro, projeto de lei proposto por deputados conservadores que quase entrou na pauta de votação na Câmara no final do ano passado. Discutido há mais de 15 anos, o estatuto tornaria o aborto ilegal até em casos de estupro de crianças. Além de não estar em vigor, o estatuto não tem base legal diante da Constituição e do Código de Processo Civil, que asseguram que apenas as pessoas nascidas com vida podem ter direitos e deveres plenos na sociedade.
“A defensoria não está atuando na proteção da criança, cumprindo o Estatuto da Criança e do Adolescente, e está criando essa anomalia”, criticou a advogada Beatriz Galli, do Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos das Mulheres e do Ipas, duas das 10 organizações que denunciaram o caso à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos, a CIDH. “A gente não tem previsto que o direito à vida começa desde a concepção e que o nascituro teria os mesmos direitos de uma criança nascida. É bastante preocupante esse precedente”.
Ainda que não seja requisito legal para a realização do procedimento, já que o aborto em casos de estupro e risco à vida da mãe já é permitido pela lei brasileira, um alvará autorizando o procedimento foi expedido em 28 de outubro pela juíza Elfrida Costa Belleza, da 2ª Vara da Infância e da Juventude de Teresina. A decisão, porém, foi suspensa pelo desembargador José James Gomes Pereira, em 12 de dezembro, a pedido da mãe da menina e da defensora do feto. “O direito está previsto no Código Penal desde 1940, então não tem como ser revogado com uma sentença judicial”, explicou Galli.
Mesmo ciente de que a gravidez da menina é decorrente de estupro e oferece risco à sua vida, o desembargador argumentou contra o aborto ao revogar a autorização para o procedimento. “Uma intervenção médica destinada à retirada do feto do útero materno pode representar riscos ainda maiores tanto à vida da paciente quanto à da criança em gestação (que, a meu ver, já atingiu formação suficiente para eventual sobrevida após o nascimento)”, escreveu Pereira. “Uma intervenção médica, a esta altura, corresponderia a um verdadeiro parto, não havendo como se autorizar a realização do aborto”.
Rosemary Farias, advogada, integrante da Frente Popular de Mulheres Contra o Feminicídio do Piauí e do Coletivo Advocacia Popular Piauiense, questiona o fato de a defensoria ter atuado em duas frentes antagônicas: “A tese vencedora foi a da defensora que atuou pelos interesses do nascituro, tanto que foi revogada a decisão. Por que a defensoria não atuou de forma a garantir o interesse dessa criança, conforme o ordenamento jurídico nos permite?”.
Em sua decisão, o desembargador Pereira citou um relatório psicológico que apontou que a menina consentiu em manter a gravidez para entregar o recém-nascido para adoção. “A vítima mostrou-se equilibrada emocionalmente apresentando uma linguagem clara, objetiva e colaborativa. Durante o atendimento a adolescente relatou o desejo de continuidade da gravidez e de entregar a criança para adoção, trazendo a fala: ‘Não quero abortar’ e que a ideia de abortar a criança traz muito sofrimento”.
Três pessoas ligadas ao caso, no entanto, contestam o argumento e afirmam que a menina está abalada psicologicamente. Em 14 de setembro, após a constatação de que ela sofria estupros recorrentes, a criança foi acolhida no abrigo, onde passou a ser medicada, segundo a conselheira tutelar Renata Bezerra. “Percebi que a menina estava sendo dopada e questionei por que ela estava tomando medicação. As funcionárias responderam que ela havia tentado se matar. Eu perguntei à menina, e ela disse que não sabia por que estava tomando a medicação”, me contou a conselheira.
A advogada Jéssica Lima Rocha, membro da Comissão de Direitos Humanos da OAB do Piauí, também disse ter encontrado uma situação de estresse ao ir até o abrigo conversar com a menina. “Essa criança estava abraçada com uma boneca, se balançando de cabeça para baixo. Pouco ou nada ouvia do que eu falei ou do que eu tentei falar”.
Segundo o presidente do Conselho Municipal da Criança e do Adolescente, André Santos, a menina teve uma crise de ansiedade ao saber que os pais não aprovaram o aborto e precisou de medicação. “Ela trata o bebê [filho de 1 ano] como boneca, isso choca a gente. São tantos direitos violados, é um crime institucional. O Judiciário não fala, a Secretaria de Saúde não fala, ninguém fala sobre a situação, porque querem esconder a omissão do estado. Quem está sendo prejudicada é a criança, que tem prioridade absoluta”, afirmou.
Os relatos sobre o estado da menina são contemplados na denúncia feita à CIDH. Nela, afirma-se que há “evidências de automutilação e outros sintomas de efeitos na saúde mental da menina, sem clareza quanto ao atendimento médico recebido”. Segundo a conselheira tutelar Renata Bezerra, a criança precisou ser medicada para ansiedade por algumas semanas, mas já parou de tomar os remédios.
Procurada, a assessoria de comunicação do Tribunal de Justiça do Estado do Piauí informou que não se manifesta sobre o teor das decisões dos juízes ou desembargadores, ressaltando que, segundo a Lei Orgânica da Magistratura Nacional, os profissionais devem se manifestar apenas nos autos processuais.
Fonte (citado parcialmente): https://theintercept.com/2023/01/30/aborto-juiza-piaui-antecipa-estatuto-nascituro-crianca-estuprada/
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